“À semelhança de Nietzsche, Foucault opta por um brilho atordoante, que ao leitor deixa a escolha entre sentir-se fascinado ou reconhecer-se um imbecil.”
Luiz Costa Lima
[Mímesis: Desafio ao Pensamento Civilização Brasileira; p. 249]
L’ordre du discours1 – sob esse título, Michel Foucault (1926-1984) pronuncia, em 2 de dezembro de 1970, sua aula inaugural no Collège de France, ao assumir a cátedra que fora ocupada por Jean Hippolite, a quem rende comovida homenagem.
I – Onde, afinal, está o perigo?
Foucault começa expondo as hesitações, a inquietação, o mal-estar que não é apenas seu, mas do orador instado a dizer as palavras iniciais de qualquer discurso, a introduzir a discussão, a abrir o debate de não importa qual tema, sobretudo pelo que esse ato possa “ter de singular, de terrível, talvez de maléfico”.[p. 6] A isso, diz ele, “a instituição responde de modo irônico; pois que torna os começos solenes, cerca-os de um círculo de atenção e de silêncio, e lhes impõe formas ritualizadas, como para sinalizá-los à distância”.[p. 7]
O desejo do orador é esquivar-se à “ordem arriscada do discurso”, ao que ele “tem de categórico e decisivo”; mas em vão: “o discurso está na ordem das leis”. E mais: “lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma”.[p. 7] Isto é, o discurso não vale por si mesmo, mas pelo poder que a instituição lhe confere – subsunção do discurso à instituição.
Foucault aventa a hipótese de que esse desejo de esquiva não seja mais do que a outra face da ação profilática da instituição – desejo e instituição colocados diante de uma mesma “inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas palavras cujo uso há tanto tempo reduziu as asperidades”. E lança o repto: “Mas o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” [p. 8]
II – Os procedimentos de controle do discurso
Foucault examina de que maneira “a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.[p. 8-9]
Os primeiros desses procedimentos são os de exclusão, que podem ser de interdição (“não se tem o direito de dizer tudo”[p. 9]), de separação e rejeição (“a oposição razão e loucura”[p. 10]), de vontade de verdade (“oposição do verdadeiro e do falso” [p. 12]).
Os procedimentos de exclusão “se exercem de certo modo do exterior” e “concernem, sem dúvida, à parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo”.[p. 21]
Formam um segundo grupo os “procedimentos internos”. Estes “funcionam, sobretudo, a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição”, e visam “submeter outra dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso”.[p. 21]
Existe ainda um terceiro grupo de procedimentos de controle dos discursos que não trata “de dominar os poderes que eles têm, nem de conjurar os acasos de sua aparição”, mas “de determinar as condições de seu funcionamento”.[p. 36] Foucault precisa: “rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam”.[p. 37]
III – O poder do desejo e o desejo do poder
Foucault indica três tipos de interdições: “tabu do objeto”;[p. 9] “ritual da circunstância”;[p. 9] “direito privilegiado ou exclusivo do sujeito”[p. 9]. E aponta “as regiões da sexualidade e da política”[p. 9] como seus alvos por excelência.
Desse modo, as interdições ao discurso “revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder”.[p. 10] E não sem razão. De um lado, “o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo”.[p. 10] De outro, “isto a história não cessa de nos ensinar, o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”.[p. 10]
IV – A loucura do louco
Foucault observa que “era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco”, e que, portanto, “elas eram o lugar onde se exercia a separação”.[p. 11] Palavra que, durante séculos, foi considerada de um modo paradoxal: ou era nula, “não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo”; [p. 11] ou era investida de “estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber”.[p. 11]
Vale sublinhar a ironia do paradoxo do paradoxo: ao louco não lhe era permitido sequer “fazer do pão um corpo”. Delírios, alucinações…
Segregação: “a palavra só lhe era dada simbolicamente, no teatro onde ele se apresentava, desarmado e reconciliado, visto que representava aí o papel de verdade mascarada”.[p. 12] Segregação que ainda hoje persiste, “basta pensar em todo o aparato de saber mediante o qual deciframos essa palavra”[p. 12] – médico, psicanalista… “E mesmo que o papel do médico não fosse senão prestar ouvido a uma palavra enfim livre, é sempre na manutenção da cesura que a escuta se exerce.”[p. 13]
V – A vontade de verdade
Foulcaut sinaliza que, “ainda nos poetas gregos do século VI”,[p. 14] verdadeiro “era o discurso que pronunciava a justiça e atribuía a cada qual a sua parte; era o discurso que, profetizando o futuro, não somente anunciava o que ia se passar, mas contribuía para a sua realização, suscitava a adesão dos homens e se tramava assim com o destino”.[p. 15] Mas que, “entre Hesíodo e Platão”, decorrido um século, a verdade se deslocara da enunciação para o enunciado, desvinculando-se do exercício do poder: “o sofista é enxotado”.[p. 15] “Essa divisão histórica deu sem dúvida sua forma geral à nossa vontade de saber.”[p. 16]
Foucault nos remete à história da ciência (o empirismo dos sécs. XVI e XVII na Inglaterra) e diz que a vontade de verdade (como vontade de saber) apoia-se em instituições e práticas como a pedagogia, os sistemas de livros, de edição, de bibliotecas, “as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje”, mas “é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído”.[p. 17]
Esta vontade de verdade exerce sobre os outros discursos “uma espécie de pressão” e “um poder de coerção”[p. 18] que se manifesta: “na maneira como a literatura ocidental teve que buscar apoio, durante séculos, no natural, no verossímel, na sinceridade, na ciência também – em suma, no discurso verdadeiro”;[p. 18] “na maneira como as práticas econômicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente como moral, procuraram, desde o século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se a partir de uma teoria das riquezas e da produção”;[p. 18] “na maneira como um conjunto tão prescritivo quanto o sistema penal procurou seus suportes ou sua justificação, primeiro, é certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade”.[p. 18-19]
A vontade de verdade assujeita os outros dois sistemas de exclusão que atingem o discurso, a saber: a palavra proibida e a segregação da loucura. Estas buscam sua legitimação naquela. E, chamando a atenção para esse ponto, Foucault sublinha a vontade de verdade “como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade, lá justamente onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdição e definir a loucura”.[p. 20]
VI – Os princípios de rarefação do discurso
Há que considerar também, como procedimentos internos de controle e delimitação do discurso, os “princípios de classificação, de ordenação, de distribuição”.[p. 21] Relacionados a esses estão o que Foucault chama de princípios de rarefação do discurso: o comentário, o autor, a disciplina.
VII – O comentário
Foucault distingue dois tipos de discursos: “os discursos que ‘se dizem’ no correr dos dias e das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou”;[p. 22] “os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer”[p. 22] Do segundo tipo são os “discursos fundamentais ou criadores”; do primeiro, os que “repetem, glosam e comentam”.[p. 23] Pode ocorrer, no entanto, um deslocamento: “por vezes, comentários vêm ocupar o primeiro lugar”.[p. 23] Nesse sentido, vale notar que “uma mesma obra literária pode dar lugar, simultaneamente, a tipos de discurso bem distintos: a Odisseia como texto primeiro é repetida, na mesma época, na tradução de Bérard, em infindáveis explicações de texto, no Ulysses de Joyce”.[p. 24]
“O desnível entre texto primeiro e texto segundo”,[p. 24] permite: “construir (e indefinidamente) novos discursos”;[p. 25] “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito”;[p. 25] “e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito”.[p. 25] Desse modo, o comentário permite dizer “algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado”.[p. 26]
VIII – O autor
O autor como foco da coerência do discurso não voga nas conversas cotidianas (logo apagadas), nem nos decretos ou contratos (têm signatários, não autores), nem nas receitas domésticas ou técnicas (anônimas), etc. Mas vige nos discursos de autoria: “literatura, filosofia, ciência”.[p. 27]
Na Idade Média, a autoria era indispensável como indicador de verdade no discurso científico, enquanto as obras literárias podiam circular anonimamente. Em contrapartida, desde o séc. XVII, a função do autor vem se enfraquecendo no discurso científico, ao passo que foi se tornando indispensável no literário: “o autor é aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real”.[p. 28]
IX – A disciplina
“O comentário limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu.”[p. 29] Para Foucault, “a organização das disciplinas se opõe tanto ao princípio do comentário como ao do autor”.[p. 30] Uma disciplina se define por: “um domínio de objetos”;[p. 30] “um conjunto de métodos”;[p. 30] “um corpus de proposições consideradas verdadeiras”; [p.30] “um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos”.[p. 30] A disciplina se opõe ao princípio do autor, pois “constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele”.[p. 30] E se opõe ao princípio do comentário: neste, “é um sentido que precisa ser redescoberto” ou “uma identidade que deve ser repetida”; enquanto, na disciplina, o ponto de partida “é aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados”, posto que ela pressupõe “a possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, proposições novas”.[p. 30]
Advirta-se, no entanto, que “uma disciplina não é tudo o que pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa”.[p. 31] E isso por duas razões: as disciplinas “são feitas tanto de erros como de verdades”;[p. 31] uma proposição, “antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M.Canguilhem, ‘no verdadeiro'”.[p. 34]
Foucault alinha diversos exemplos: até o séc. XVI, a botânica preservara “os valores simbólicos” que as plantas traziam da antiguidade; a partir do fim do séc. XVII, só era botânica o que “dissesse respeito à estrutura visível da planta, ao sistema de suas semelhanças próximas ou longínquas ou à mecânica de seus fluidos”;[p. 32] a partir do séc. XIX, a proposição médica não podia usar mais metáforas “como as de engasgo, de líquidos esquentados ou de sólidos ressecados”; mas podia usar as noções igualmente metafóricas de outro modelo funcional e fisiológico: “era a irritação, a inflamação ou a degenerescência dos tecidos”;[p. 32-33] até o séc. XVIII, “a busca da língua primitiva”[p. 33] era um tema perfeitamente legítimo da Linguística; na segunda metade do séc. XIX, já se tornara inadmissível; quando Schleiden nega a sexualidade vegetal em pleno séc. XIX, “mas conforme as regras do discurso biológico, não formula senão um erro disciplinado”;[p. 35] do mesmo modo, quando Naudin “sustentara a tese de que os traços hereditários eram descontínuos”,[p. 34] embora parecesse estranho, situava-se como um enigma no interior do discurso biológico; mas, quando Mendel (1865) destacou os traços hereditários da espécie e do sexo que os transmite, e os observou no domínio de uma série indefinidamente aberta de gerações, segundo regularidades estatísticas, “dizia a verdade, mas não estava ‘no verdadeiro’ do discurso biológico de seu tempo”.[p. 35] E conclui que “a disciplina é um princípio de controle do discurso”; acrescentando: “ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”.[p. 36]
X – A rarefação dos sujeitos
Foucault observa que o acesso a algumas regiões do discurso é relativamente livre, enquanto a outras é muito restringido. Nestas últimas, “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo”.[p. 37]
O filtro de acesso dos sujeitos às regiões mais ou menos fechadas do discurso se faz através do que Foucault chama de “os grandes procedimentos de sujeição do discurso”, quais sejam: “os rituais da palavra, as sociedades do discurso, os grupos doutrinários e as apropriações sociais”.[p. 44]
XI – O ritual
O ritual define: “a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados)”;[p. 39] “os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso”;[p. 39] “a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção”.[p. 39] Para Foucault, “os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e, em parte, também os políticos não podem ser dissociados dessa prática”.[p. 39]
XII – A sociedade do discurso
Foucault decalca a noção de sociedade do discurso do modelo arcaico dos grupos de rapsodos. Eles “possuíam o conhecimento dos poemas a recitar ou eventualmente a fazer variar e a transformar”. A memorização desses poemas “fazia estar ao mesmo tempo em um grupo e em um segredo”. E o que é significativo: “entre a palavra e a escuta os papéis não podiam ser trocados”.[p. 40]
Modernamente, Foucault vê na instituição do escritor “uma ‘sociedade do discurso’ difusa, talvez, mas certamente coercitiva”,[p. 40-41] cujos traços são: “a diferença do escritor, sem cessar oposta por ele mesmo à atividade de qualquer outro sujeito que fala ou escreve”;[p. 41] “o caráter intransitivo que empresta a seu discurso”;[p. 41] “a singularidade fundamental que atribui há muito tempo à ‘escritura'”;[p. 41] “a dissemetria afirmada entre a ‘criação’ e qualquer outra prática do sistema lingüístico”.[p. 41]
Há muitas outras formas atuais de sociedade do discurso: “lembremos o segredo técnico ou científico, as formas de difusão e de circulação do discurso médico, os que se apropriam do discurso econômico ou político”.[p. 41]
XIII – O grupo doutrinário
Contrariando o hermetismo da sociedade do discurso, o grupo doutrinário (religioso, político, filosófico) tende à expansão pela difusão da doutrina.
Foucault assinala que “a pertença doutrinária questiona ao mesmo tempo o enunciado e o sujeito que fala, e um através do outro”[p. 42]: “questiona o sujeito que fala através e a partir do enunciado, como provam os procedimentos de exclusão e os mecanismos de rejeição que entram em jogo quando um sujeito que fala formula um ou vários enunciados inassimiláveis”; [p. 42] “questiona os enunciados a partir dos sujeitos que falam, na medida em que a doutrina vale sempre como o sinal, a manifestação e o instrumento de uma pertença”.[p. 43]
Desse duplo questionamento tira-se uma dupla lição: “a heresia e a ortodoxia não derivam de um exagero fanático dos mecanismos doutrinários, elas lhes pertencem fundamentalmente”;[p. 42] há sempre “uma pertença prévia – pertença de classe, de status social ou de raça, de nacionalidade ou de interesse, de luta, de revolta, de resistência ou de aceitação”.[p. 43]
Assim, “a doutrina realiza uma dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao menos virtual, dos indivíduos que falam”.[p. 43]
XIV – A apropriação social
Em escala muito mais ampla, Foucault reconhece os grandes planos em que se dá “a apropriação social do discurso”.[p. 43] Nessa questão, ele enfatiza o sistema educacional: a educação “segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais”.[p. 43-44] Para ele, “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”.[p. 44] Foucault, finalmente, identifica todos os grandes procedimentos de sujeição do discurso no sistema de ensino como um grande edifício que é: “uma ritualização da palavra”;[p. 44] “uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam”;[p. 44] “a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso”;[p. 44] “uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes”.[p. 44-45]
XV – A filosofia
Foucault questiona se certos temas da filosofia não respondem a “esses jogos de limitações e exclusões” e os reforçam [p. 45] A resposta da filosofia se daria: “propondo uma verdade ideal como lei do discurso e uma racionalidade imanente como princípio de seu desenvolvimento”; e “reconduzindo uma ética do conhecimento que só promete a verdade ao próprio desejo de verdade e somente ao poder de pensá-la”.[p. 45] E, o reforço, “por uma denegação que recai desta vez sobre a realidade específica do discurso em geral”‘.[p. 46]
Foucault considera que “desde que foram excluídos os jogos e o comércio dos sofistas, desde que seus paradoxos foram amordaçados”, deu-se uma “elisão da realidade do discurso no pensamento filosófico”.[p. 46] E, não obstante, “o discurso nada mais é do que um jogo”: “de escritura”, “de leitura”, “de troca”. Um jogo de escritura, “em uma filosofia do sujeito fundante”. Um jogo de leitura, “em uma filosofia da experiência originária”. Um jogo de troca, “em uma filosofia da mediação universal”.[p. 49]
Foucault diz que “essa troca, essa leitura e essa escritura jamais põem em jogo senão os signos”; concluindo que “o discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se na ordem do significante”.[p. 49] E seria desse modo porque, sob uma “aparente veneração do discurso, sob essa aparente logofilia”, vicejaria “uma profunda logofobia, uma espécie de temor surdo”.[p. 50]
Para analisar essa questão, Foucault propõe: “questionar nossa vontade de verdade”; “restituir ao discurso seu caráter de acontecimento”; “suspender, enfim, a soberania do significante”.[p. 51]
XVI – O método
Foucault formula um método de análise que exige quatro regras: inversão, descontinuidade, especificidade, exterioridade. “Inversão”: “nessas figuras que parecem desempenhar um papel positivo como a do autor, da disciplina, da vontade de verdade, é preciso reconhecer, ao contrário, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso”.[p. 51-52] “Descontinuidade”: “os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem”.[p. 52-53] “Especificidade”: “não imaginar que o mundo nos apresenta uma face legível que teríamos de decifrar apenas”; “deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhe impomos”; “e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade”.[p. 53] “Exterioridade”: “a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade, passar às suas condições externas de possibilidade”; “àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras”.[p. 53]
Dessas regras deduzem-se as quatro noções que servem de princípio regulador da análise: “a noção de acontecimento”; “a de série”; “a de regularidade”; e “a de condição de possibilidade”. E os quatro pares opositivos: “o acontecimento” se opõe “à criação”; “a série” se opõe “à unidade”; “a regularidade” se opõe “à originalidade”; “a condição de possibilidade” se opõe “à significação”.[p. 54]
Foucault considera que “estas quatro últimas noções (significação, originalidade, unidade, criação) de modo geral dominaram a história tradicional das ideias onde, de comum acordo, se procurava”: “o ponto da criação”; “a unidade de uma obra, de uma época ou de um tema”; “a marca da originalidade individual”; “e o tesouro indefinido das significações ocultas”.[p. 54]
XVII – A condição de possibilidade
Foucault fala de “condição de possibilidade”.
Marx registrou em A Ideologia Alemã (1845) que a ideologia não tem história: “A moralidade, a religião, a metafísica, todo o resto da ideologia e suas correspondentes formas de consciência perdem assim sua aparência de autonomia. Elas não têm história, nem desenvolvimento; porém os homens, desenvolvendo sua produção e interação materiais, alteram junto com isso sua existência real, seu pensamento e os produtos dele. A vida não é determinada pela consciência, mas a consciência pela vida”.
XVIII – A concepção da história
Foucault propõe articular a análise do discurso ao seu contexto, o que pressupõe uma concepção da História que ele explicita: abandona os conceitos fundamentais de sujeito e continuidade, com seus correlatos de liberdade e causalidade; não se quer estruturalista, descartando o signo e a estrutura; diz que o acontecimento e a série é que são as noções que permitem a abordagem histórica. O acontecimento singular é o elemento constitutivo da série histórica – “das variações cotidianas de preço chega-se às inflações seculares”[p. 55] –, a qual apresenta os traços de “regularidade, casualidade, descontinuidade, dependência, transformação”.[p. 57]
XIX – O acontecimento discursivo
Foucault diz que “os acontecimentos discursivos devem ser tratados como séries homogêneas, mas descontínuas umas em relação às outras”.[p. 58] E que a análise do discurso focada no acontecimento discursivo “consiste em tratar, não das representações que pode haver por trás dos discursos, mas dos discursos como séries regulares e distintas de acontecimentos”, implicando “o acaso, o descontínuo e a materialidade”.[p. 59]
XX – O conjunto crítico e o conjunto genealógico
A análise do discurso, para Foucault, se dispõe em dois conjuntos: conjunto crítico (princípio de inversão) e conjunto genealógico (princípios de descontinuidade, especificidade, exterioridade). O conjunto crítico faz “a análise das instâncias de controle discursivo”. O conjunto genealógico analisa a “formação efetiva dos discursos”. “A crítica analisa os processos de rarefação, mas também de reagrupamento e de unificação dos discursos; a genealogia estuda sua formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular.”[p. 65-66] Mas Foucault adverte que a distinção é apenas metodológica: “não há, de um lado, as formas da rejeição, da exclusão, do reagrupamento ou da atribuição; e, de outro, em nível mais profundo, o surgimento espontâneo dos discursos que, logo antes ou depois de sua manifestação, são submetidos à seleção e ao controle”.[p. 66] “Entre o empreendimento crítico e o empreendimento genealógico, a diferença não é tanto de objeto ou de domínio mas, sim, de ponto de ataque, de perspectiva e de delimitação.”[p. 66-67] “Assim, as descrições críticas e as descrições genealógicas devem alternar-se, apoiar-se umas nas outras e se complementarem.”[p. 69]