A Polônia nas origens da segunda guerra mundial e do holocausto

Resenha de Terra Negra. O Holocausto como História e Advertência, de Timothy Snyder

Quando se fala do acordo Molotov-Ribbetropp, assinado em 23 de agosto de 1939, em Moscou, que partilhou a Polônia entre alemães e soviéticos e cedeu os países bálticos à URSS, permitindo a Hitler começar a invasão que deu início à segunda guerra mundial, costuma-se esquecer que durante quase dois anos, até junho de 1941, Hitler só teve o Reino Unido como adversário, além do governo polonês no exílio em Londres.

A Polônia, França, Bélgica e Países Baixos estavam ocupados pelos alemães e os EUA não haviam entrado na guerra. A URSS mantinha um pacto com a Alemanha e colaborava com a destruição da Polônia. Entre o início da guerra, em 1º de setembro de 1939, e a invasão alemã da URSS, em junho de 1941, Hitler e Stálin permaneceram como aliados. Stálin ocupou a Polônia oriental, a Galícia, hoje parte da Ucrânia, e os países bálticos.

O livro Terra Negra. O Holocausto como História e Advertência, de Timothy Snyder (São Paulo, Companhia das Letras, 2016), faz uma análise fundamental sobre as origens da segunda guerra mundial, o projeto de extermínio dos judeus e a importância da Polônia, onde moravam três milhões de judeus, nesse processo.

Snyder começa por situar a ideologia de Hitler como uma noção de luta biológica entre raças, dentre as quais os eslavos eram considerados como uma sub-raça, a ser escravizada, e os judeus como uma antirraça, a ser eliminada.

A condição apátrida de muitos judeus, seu cosmopolitismo e sua assimilação desigual às sociedades nacionais os tornavam um foco dos valores universalistas, em contraste com o particularismo de todos os nacionalismos: “Qualquer atitude não racista era judaica, pensava Hitler, e qualquer ideia universal era um mecanismo de domínio dos judeus […]. O comunismo era o exemplo mais imediato da afirmação hitlerista de que todas as ideias universais eram judaicas e todos os judeus estavam a serviço das ideias universais” (p. 36), e, por isso, “o bolchevismo é filho ilegítimo do cristianismo. Ambos são invenções dos judeus” (p. 20).

O “mito judaico-bolchevique” de que o comunismo era uma invenção judaica e de que todo comunista era judeu foi a justificativa do projeto de invasão da URSS, explícito desde o Mein Kampf.

O extermínio mais brutal e assassino, entretanto, foi, além de na própria Rússia, nas regiões do antigo Império Russo, especialmente na Polônia, recém-emancipada, em 1918, de uma opressão czarista e dos austríacos e prussianos que haviam conjuntamente suprimido essa nação entre 1772 e 1795. A Polônia era o país da Europa com o maior número de judeus, cerca de 3 milhões, o que incluía a atual Ucrânia ocidental, a Galícia, que, entre 1918 e 1939, também fazia parte da Polônia.

Para Hitler, os alemães precisavam da Ucrânia para não passar fome e, como a Alemanha quase não tem colônias de além-mar, “o nosso Mississipi deve ser o Volga, e não o Níger”, escreveu ele. Nessas regiões, os eslavos deveriam trabalhar para a Alemanha e os judeus serem expulsos.

Três atitudes, segundo Snyder, vão caracterizar, assim, respectivamente, os estados da Alemanha, da URSS e da Polônia durante os anos 30: recolonialista, autocolonialista e descolonialista.

A Alemanha buscava na recolonização seu lebesraum no leste. A URSS fazia a coletivização forçada das terras levando milhões de camponeses à morte, numa endocolonização. A Polônia buscava manter sua independência e estimulava a rebelião de algumas das nacionalidades oprimidas do leste europeu para garantir sua descolonização recentemente conquistada.

Para o ditador nacionalista polonês Pilsudski, de origem socialista, a Polônia era um Estado e não uma raça, mas também estimulava a imigração judia para a Palestina combinando o antissemitismo com uma válvula para o suposto excedente de população. Foi das organizações judaicas polonesas apoiadoras de Pilsudski, como a Betar que surgiram depois os grupos Irgun e a Lehi, de Avraham Stern. O governo polonês armou e treinou essas milícias judaicas sionistas, ajudando em seu estabelecimento na Palestina. Após a morte de Pilsudski, em 1935, o novo governo adotou leis restritivas de direitos aos judeus poloneses, mas continuou incentivando oficialmente a imigração e fornecendo armas para a Haganah clandestinamente.

A crise econômica e social se agravara no início dos anos 30, quando a fome na URSS se tornou uma epidemia e matou um milhão de pessoas no Cazaquistão e mais de 3 milhões na Ucrânia, especialmente entre 1932 e 1933.

Nesse momento, observa Snyder, “a fome por razões políticas na Ucrânia Soviética realinhou as potências regionais, preparando o cenário para a segunda guerra mundial” (p. 74). A Ucrânia já estava sofrendo um verdadeiro genocídio provocado pelas expropriações de grãos ordenadas por Stálin, quando Hitler subiu ao poder, em 1933.

A Polônia, que buscava sobreviver diante dos dois impérios que a ameaçavam, estabeleceu um tratado com a URSS, em 1932, e outro com a Alemanha, em 1934. A partir de então, a diplomacia alemã pressionou fortemente a Polônia para que, aliada a Hitler, entrasse em guerra contra a URSS.

A União Soviética, na década de 1930, cometeu dizimação em populações de suas fronteiras; na Ucrânia, a grande fome de 1932/33; em toda a URSS, o Grande Terror de 1937/38, quando mais de meio milhão de opositores e bodes expiatórios políticos foram mortos num processo de deportações e fuzilamentos. Na fronteira soviética com a Polônia, a Operação Polonesa, nesse mesmo período, foi “a maior e mais sangrenta das ações étnicas soviéticas durante o Grande Terror. Mais de 100 mil cidadãos soviéticos foram fuzilados por espionagem a favor da Polônia. Foi a maior campanha de fuzilamentos étnicos em tempos de paz em toda a história” (p. 75).

Enquanto isso, os judeus alemães saíam de seu país, cerca de 50 mil em direção à Palestina, o que levou à greve geral árabe de 1936. Na Polônia, o plano de evacuação sionista foi elaborado pelo judeu polonês Jabotinsky. Além da Palestina, a proposta de envio dos judeus para Madagáscar também era debatida seriamente entre os governos polonês e alemão.

A partir de 1938, com a Anschluss, a anexação da Áustria, em 11 de março, e a Cristallnacht, em 9 de novembro, o confinamento em guetos e a perseguição aos judeus foi desencadeada de forma intensiva, mas ainda não se tratava do assassinato em massa sistemático.

A invasão e o bombardeamento da Polônia começaram em 1º de setembro de 1939 e, a partir daí, “o bombardeio de civis, tática que os europeus costumavam ver como legítima quando usada em possessões coloniais, agora estava sendo aplicada na própria Europa. No bombardeio terrestre de Varsóvia, em setembro de 1939, foram mortos mais judeus do que em decorrência de todas as políticas aplicadas nos seis anos seguintes à ascensão de Hitler ao poder” (p. 127).

Com a destruição da Polônia começou a pior forma do nazismo, com a destruição de estados, condenados a desaparecer. Houve estados que foram aliados da Alemanha (Itália, Romênia, Hungria, Bulgária); outros foram derrotados e ocupados (França, Países Baixos, Grécia); alguns foram criados por Hitler, como estados fantoches (Croácia e Eslováquia). Mas pior que isso foram os estados destruídos, como a Polônia (e também os países bálticos), por uma dupla ocupação: soviética e alemã e, depois, só alemã e, finalmente, soviética de novo. Nessas áreas morava a maioria dos judeus e foi nelas que o holocausto de fato começou.

A Polônia, a partir de então, “não existia, não tinha existido, nem existiria como Estado soberano”. No território “virgem”, a ser colonizado, como uma África dentro da própria Europa, tanto os alemães como os soviéticos se dedicaram ao extermínio da intelligentsia polonesa com dezenas de milhares de fuzilados. Os judeus da Polônia foram confinados em guetos, com trabalho obrigatório a partir de 1940, deportados para outros campos de trabalho forçado, em 1941, que foram importantes no esforço industrial militar alemão, e, a partir de 1942, enviados para os centros de extermínio.

Os poloneses se tornaram, assim, não só as primeiras vítimas, mas também as mais dizimadas, tanto por alemães como por soviéticos: “quando alemães e soviéticos empreenderam a invasão conjunta da Polônia, em setembro de 1939, os soviéticos eram os parceiros mais versados em violência política. A polícia secreta do Estado soviético, a NKVD, tinha uma experiência de extermínio em massa que não encontrava rival em nenhuma instituição alemã. No total, 681.692 cidadãos soviéticos foram presos, fuzilados e sepultados em valas comuns durante o Grande Terror de 1937 e 1938.” (p. 142).

Em 17 de setembro de 1939, o exército soviético invadiu e ocupou o leste da Polônia (atual Ucrânia ocidental). Em fevereiro de 1940, na primeira onda de deportações, 139.794 pessoas foram levadas para o Gulag, especialmente no Cazaquistão, totalizando nos meses seguintes ao menos meio milhão de poloneses deportados. Em abril de 1940, na floresta de Katyn, as forças soviéticas fuzilaram 21.892 prisioneiros poloneses. Enquanto isso, a URSS fornecia petróleo, minérios e grãos para o esforço de guerra alemão.

Após a invasão alemã da URSS, com a ruptura do pacto de não agressão, em junho de 1941, começaram a pior fase dos crimes de guerra e o holocausto propriamente dito, ou seja, o extermínio sistemático de todos os judeus – homens, mulheres e crianças.

Para Snyder, o holocausto começou nas “zonas sem estado” resultantes da “dupla ocupação”, especialmente na Lituânia e na Letônia nos seis meses que se seguiram à operação Barbarossa, onde a “mortandade de aparência caótica se encaminhava para uma Solução Final sistemática.” (p. 187). Os diversos setores militares alemães (SS, soldados, polícia) arregimentaram grupos de colaboradores locais, que passaram a executar em massa no segundo semestre de 1941.

O grau de coparticipação dos setores locais deu-se pela expectativa de se libertar do domínio anterior soviético, mas também por pragmatismo colaboracionista com a nova ocupação estrangeira: “os lituanos perceberam que o mito judaico-bolchevique equivalia a uma anistia política em massa pela colaboração anterior com os soviéticos, além da possibilidade mais ampla de reivindicar todas as empresas que os soviéticos tomaram dos judeus” (p. 188).

No oeste da Ucrânia, os alemães puderam contar com as insatisfações durante vinte anos de domínio polonês e dois anos de ocupação soviética, que levaram muitos nacionalistas ucranianos a colaborar inicialmente com a invasão nazista.

Essa dinâmica de colaboração local no extermínio dos judeus deu-se de forma muito mais aguda em toda a Europa do Leste do que na Europa ocidental, onde os judeus conseguiram escapar, se proteger e se esconder em proporção muito maior.

O livro de Snyder recolhe tanto os exemplos mais escabrosos de cumplicidades nas atrocidades nazistas quanto o seu oposto, os casos mais heroicos de sacrifícios abnegados e de salvamento de judeus por desconhecidos que os abrigavam escondidos por longos períodos, sob o risco da própria vida e dos familiares.

Em 12 de agosto de 1941, o chefe da SS, Himmler, teria dito a Friedrich Jeckeln, o comandante supremo da SS e da polícia para o sul da Rússia, ou seja, a Ucrânia, que “mulheres e crianças judias deviam ser mortas” (p. 198). Em 24 de setembro de 1941, em Kiev, na ravina de Babyn Yar, foram fuzilados, sob ordens de Jeckeln, 33.761 judeus, empilhados deitados em valas. Jeckeln inaugura assim uma técnica industrial de assassinato em massa que ele levará também para a Letônia, onde terá a ajuda de forças policiais locais. O letão Viktors Bernhard Arãjs, por exemplo, seria “um dos mais eficientes assassinos em massa da história da Europa”.

Antes dos campos de concentração, um milhão de judeus já tinham sido fuzilados e 2 milhões de soviéticos morreriam de fome, meio milhão só em Leningrado sitiada. Uma parte dos prisioneiros soviéticos foi usada para construir e vigiar os campos da morte de Belzec, Sobibór e Treblinka, onde, durante 1942, 1,3 milhão de judeus poloneses foram mortos. A partir do final de 1941, as vans para execução com monóxido de carbono começaram a ser usadas na Bielorrúsia e Polônia.

Auschwitz, no sul da Polônia, tornou-se entre 1943 e 1944 o maior lugar de assassinato de judeus. Criado inicialmente como campo de trabalho forçado, tornou-se a epítome do campo com uso da terceira técnica de execução, depois dos fuzilamentos e do gás de motores de combustão, que foi o uso do gás hidrocianídrico, o Zyklon B, que matou cerca de um milhão a mais de judeus.

Só em dezembro de 1942, a partir de denúncias e pressões diplomáticas polonesas, os governos aliados britânico, estadunidense e soviético emitiram uma declaração oficial conjunta exigindo que os alemães parassem o morticínio de judeus.

Ao mesmo tempo que o esforço de guerra alemão na URSS se frustrava, aumentavam os empreendimentos de extermínio. Em Varsóvia, em abril de 1943, ocorre o desesperado levante do gueto. Um ano depois, com as tropas soviéticas às portas da capital polonesa, em agosto de 1944, acontece o Levante de Varsóvia, esmagado pelos alemães e com a passividade das tropas russas estacionadas a pouca distância. O Exército da Pátria polonês queria libertar Varsóvia antes dos soviéticos, mas não conseguiu.

Depois de um detalhado exame das condições particulares de cada região, Snyder conclui o livro com considerações sobre as crises do presente século XXI e sobre os riscos de elas desencadearem novos extermínios de bodes expiatórios, especialmente diante do agravamento da emergência climática e socioambiental.

A derrota nazista no leste da Europa serviu para tentar esconder na historiografia soviética a responsabilidade e cumplicidade de Moscou na invasão alemã da Polônia. Assim também foi escamoteada a especificidade do extermínio judeu; nem sequer os monumentos soviéticos, como em Babyn Yar, por exemplo, mencionavam ter sido a condição judaica a causa do massacre, e o levante de Varsóvia de 1944 foi apresentado na historiografia soviética como “fascista e condenado ao esquecimento” (p. 317).

Na conclusão do livro, publicado em 2015, Snyder adverte que “num novo colonialismo russo que começou em 2013, governantes e propagandistas locais imaginavam os vizinhos ucranianos como inexistentes e os apresentavam como sub-russos. Em caracterizações que lembram o que Hitler dizia dos ucranianos (e dos russos), os líderes russos falavam da Ucrânia como de uma entidade artificial, sem história, cultura ou língua, sustentada por algum aglomerado global de judeus, gays, europeus e americanos”. E ressalta que o apoio de Putin à extrema direita europeia “procura romper e desintegrar a ordem mais pacífica e próspera do começo do século XXI – a União Europeia. Em 2014, Putin reabilitou o Pacto Molotov-Ribbentrop, o acordo entre a Alemanha nazista e a União Soviética que deu início à Segunda Guerra mundial e criou algumas das precondições para o Holocausto.” (p. 365).

A retomada da guerra na Europa com a agressão e invasão russa à Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, mostra o conteúdo premonitório desse último trecho e indica que, infelizmente, o risco dos massacres, do ódio étnico e da destruição de estados retomou sua atualidade na Europa contemporânea após tantas advertências de que isso não deveria acontecer “nunca mais”.

Henrique Soares Carneiro

Historiador, professor de História Moderna na USP, coordenador do LEHDA (Laboratório de Estudos Históricos de Drogas e Alimentação).

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