A formação social brasileira teve sua gênese histórico-social no período das grandes navegações, época do predomínio do capital mercantil, de criação de um mercado mundial. O modo de produção que aqui se estabeleceu se fundava no trabalho escravo de mão-de-obra deslocada da África. Nesse modo de produção, a extração de sobretrabalho se baseava na coação extraeconômica, a começar pelo sequestro da mão-de-obra em terras africanas. Tratava-se, portanto, de um modo de produção não capitalista, mas subordinado à lógica do capitalismo europeu 1. Podemos ir além e dizer que se tratava de um modo de produção pré-capitalista, periférico, fadado em sua evolução histórica a ser modificado por força da atração exercida pelo centro do sistema.
Essa tendência globalizante do sistema capitalista, que a tudo transforma, foi apontada por Marx e Engels no Manifesto Comunista:
“Em lugar das antigas necessidades satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua satisfação produtos de regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento das nações que se bastavam a si próprias, desenvolve-se um tráfico universal, uma interdependência das nações. O mesmo acontece com a produção intelectual. A produção intelectual de uma nação torna-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada dia mais impossíveis, e das numerosas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura universal.”
MARX, 2001: 55
Desse modo, a subsunção formal (restrita à esfera da circulação) do modo de produção periférico ao sistema capitalista europeu, tende à subsunção real. Nesse sentido, Lênin, referindo-se ao sul dos Estados Unidos, observou que “as sobrevivências econômicas do escravismo não se distinguem absolutamente em nada das do feudalismo” 2 e que encontra-se aí “a passagem da estrutura escravista – ou feudal, o que dá no mesmo – da agricultura para a estrutura mercantil e capitalista” 3 Cabe sublinhar que a indiferenciação apontada se limita à transição da subsunção formal à real, mas não equipara escravismo a feudalismo como poderia sugerir uma leitura apressada. A esse respeito, Perry Anderson, entre outros, registra o estímulo ao aumento da produtividade no feudalismo, em contraste com o bloqueio tecnológico do escravismo. ( Apud COUTINHO, 1980: 66) E Carlos Nelson Coutinho, por sua vez, vai insistir na “marca escravista sobre a estrutura de classes”, dizendo que
“a degradação do trabalho manual, que é muito mais intensa no escravismo que no feudalismo, opera no sentido de criar faixas ‘médias’ marginalizadas pelo sistema (tanto nas cidades como no campo), que só podem se reproduzir através do ‘favor’ dos poderosos”
COUTINHO, 1980: 67
Nesse contexto, ganha relevância a questão das ideias fora de lugar ou da ideologia de segundo grau. Como se sabe, Roberto Schwarz apontou “as ideias fora de lugar” como uma característica da formação ideológica em nosso país. Mostrou como o nosso liberalismo era uma ideologia de segundo grau, retórica, enquanto o mecanismo do favor operava as relações entre a classe dominante e a classe média na zona de hegemonia da formação social brasileira, ao passo que a dominação com base no assujeitamento pela força, típico da escravidão, prescindia da mediação ideológica nas relações de produção.
Essa questão da ideologia de segundo grau demanda uma explicação. Como observa Carlos Nelson Coutinho, no Brasil, mesmo na época da subsunção formal, (quando o modo de produção interno ainda não era capitalista), as classes dominantes de nossa formação social encontravam suas expressões ideológicas e culturais na Europa burguesa. (COUTINHO, 1980: 67) É nesse sentido que se pode dizer que as ideias estavam fora de lugar e constituíam uma ideologia de segundo grau. É porque não encontravam correspondência nas relações de produção escravistas então dominantes na formação social brasileira. Adverte-se aí uma incongruência constitutiva da formação ideológica. Essa incongruência entre a base material (escravista) e a superestrutura (liberal) deixa suas marcas na formação ideológica mesmo depois de efetuada a transição da subsunção formal para a subsunção real do modo de produção interno. Essa incongruência pode favorecer uma espécie de hipocrisia ou até mesmo de cinismo. Talvez fosse essa a razão pela qual a opinião de que não havia nada mais parecido com um conservador do que um liberal no governo se tornara corrente na apreciação sobre os gabinetes do Império.
Carlos Nelson Coutinho esclarece que
“Com o início da industrialização, ou, mais precisamente, com a transição do modo de produção interno à fase propriamente capitalista (o que já se verifica também em certos setores da agricultura na época da abolição da escravatura, ainda que isso se dê de modo “prussiano”, ou seja, com a conservação de traços pré-capitalistas), as ideias importadas vão cada vez mais “entrando em seu lugar”, tornando-se mais aderentes às realidades e aos interesses de classe que tentam expressar. E isso porque a estrutura de classes da sociedade brasileira vai se tornando essencialmente análoga à estrutura de classes da sociedade capitalista em geral. Com isso, as contradições ideológicas que marcam a vida cultural brasileira do século XX aproximam-se cada vez mais – ainda que sem jamais se igualarem inteiramente – das contradições ideológicas próprias da cultura universal do período.”
COUTINHO, 1980:49
Carlos Nelson Coutinho observa que, no século XIX, por um lado, “o liberalismo dá expressão a interesses efetivos das camadas dominantes”. Ele enumera entre esses interesses: “livre-cambismo no comércio internacional, cálculo racional na comercialização dos produtos de exportação, garantia da igualdade jurídico-formal entre os membros da oligarquia rural e comercial, etc.” (COUTINHO, 1980: 69) A ideologia liberal convinha também à camada intermediária dos homens livres mas não proprietários, pois estes tinham no liberalismo a proclamação de “seus direitos formais à igualdade com os senhores e sua diferença em face dos escravos”. O desajuste se apresenta “diante do fenômeno da escravidão, da desigualdade estabelecida como fato natural, do trabalho fundado sobre a coação extraeconômica”. Esse desajuste contamina também a relação entre os grandes proprietários e os homens livres sem propriedade: “O ‘favor’, que marca tal relacionamento, consagra vínculos de dependência pessoal, de tipo pré-capitalista; é, por conseguinte, um modo de relacionamento autoritário (mesmo quando paternalista) e antiliberal”. (COUTINHO, 1980: 70). E “o favor” constitui uma marca específica da mentalidade de classe média na formação social brasileira.
A ideia de classe média, em qualquer formação social, implica uma conceituação topológica: toda classe média situa-se entre “os de cima” e “os de baixo”. Como se sabe, a noção de classe média (middle class) vem da literatura política inglesa para designar uma classe que, numa estrutura social hierarquizada, ocupa uma posição intermediária entre a classe alta (hight class) e a classe trabalhadora (working class); vale dizer: a burguesia ascendente, que se situaria hierarquicamente entre a aristocracia e o proletariado, nos primórdios da revolução industrial inglesa. Essa origem deixou o seu rastro na Inglaterra contemporânea e é particularmente visível em instituições como a Câmara dos Lordes e a Coroa.
A classe média brasileira tem outra gênese histórica: seus fundamentos remontam ao nosso passado colonial-escravista.
“Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o ‘homem livre’, na verdade dependente. […] Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande. […] O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm. Note-se ainda que entre estas duas classes é que irá acontecer a vida ideológica, regida, em consequência, por este mesmo mecanismo. Assim, com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a relação produtiva de base, esta assegurada pela força. […] O favor é a nossa mediação quase universal– e sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção.”
SCHWARZ, 1977, p. 16
Dá para perceber a abissal distância que medeia entre a nossa classe média e a middle class dos ingleses. Sobre essa questão, vale sublinhar que a nossa classe média constitui um entrelugar que se cristaliza; ao passo que a middle class deles, ao se constituir como classe dominante, supera o seu. Mas, o mais decisivo, é notar que a mentalidade de classe média, burocrática, tributária do favor dos poderosos e vocacionada para o emprego público, tão importante na formação ideológica brasileira, nem de longe se assemelha à mentalidade burguesa – vale dizer, empreendedora, capitalista, voltada para a organização dos fatores de produção – da middle class inglesa.
Talvez seja conveniente esclarecer alguns pontos de modo a dissipar possíveis mal-entendidos. Quando nos referimos à constituição de uma mentalidade de classe média que cimenta camadas intermediárias cuja gênese histórico-social está enraizada no escravismo, não estamos apontando para a formação da burguesia brasileira ou de uma pequena burguesia assentada na pequena produção mercantil, nem mesmo para um tipo de classe fundamental de qualquer modo de produção. A nossa mentalidade de classe média que viceja nas camadas intermediárias forjadas na esfera do favor, é típica de um setor social que se constitui de frente para o consumo e de costas para a produção de bens materiais.
Boa parte da intelectualidade brasileira, que não dispunha de fonte de renda própria, era caudatária dessa mentalidade de classe média forjada na esfera do favor. Vale sublinhar a propósito que só com a Constituição de 1988 se passou a exigir concurso público para ingressar no serviço público, que era o meio de sobrevivência de muitos intelectuais. Talvez, por isso, embora fascinada pela competência do burguês exitoso, essa intelectualidade refugue a moral burguesa quando “a engrenagem do dinheiro e do interesse ‘racional’ faz o seu trabalho, anônimo e determinante, e imprime o selo contemporâneo”. Insuportável para essa intelectualidade de classe média “são as consequências, na perspectiva do individualismo burguês, da generalizada precedência do valor-de-troca sobre o valor-de-uso – também chamada alienação – a qual se transforma em pedra de toque para a interpretação dos tempos”. (SCHWARZ, 1977, p. 41).
O teatro de Nelson Rodrigues é paradigmático nesse sentido. Não conseguindo um emprego público para si, reprovado no exame de saúde, Nelson conseguiu-o para a sua primeira mulher. Por um lado, ele não padece de nenhuma ambiguidade ideológica. Não disfarça o seu conservadorismo sob uma fachada “liberalizante”, conciliadora; ao contrário, é um conservador assumido que apoiou ativamente a ditadura militar de 1964. Nesse sentido, ele vive os seus valores com autenticidade. Por outro lado, em sua arte, crítica a incongruência ideológica, a hipocrisia e o cinismo próprios da alienação que viceja na mentalidade de classe média entre nós.
Bibliografia:
COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. 3. e. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980.
LÊNIN, V. I. Nouvelles Données sur les Lois du Dévelopement du Capitalisme dans l’Agriculture. In Oeuvres, vol. 22. Tradução francesa. Paris: Editions Sociales; Moscou: Editions em Langues Etrangeres, 1960
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Comentado por Chico Alencar. 3.e. Rio de Janeiro: Garamond, 2001
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977
Referências
- “Um escravismo certamente peculiar, já que articulado no nível internacional com o capitalismo, com suas exigências mercantis e, portanto, capaz de ‘importar’ um certo tipo de cultura (e de instituições) próprias do capitalismo liberal (…)” (COUTINHO, 2005: 22)
- “(…) les survivances économiques de l’esclavagisme ne se distinguent absolument en rien de celles du féodalisme (…)” (LENIN, 1960: 21)
- “Nous y trouvons, d’une part, le passage de la structure esclavagiste – ou féodale, ce qui revient au même en l’occurrence – de l’agriculture à la structure marchande et capitaliste (…)” (LÊNIN, 1960:106)