A questão da cidadania

“Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova.” — Karl Marx

Em termos simplificados, podemos definir o cidadão como uma pessoa que é titular de direitos. É claro que cada um desses direitos tem uma longa história, é resultado de lutas de classe que se travaram no decorrer dos processos históricos.

Segundo o sociólogo britânico T. H. Marshall (1893–1981) em seu célebre ensaio Cidadania e Classe Social (1949), os direitos podem ser classificados em três tipos: políticos, civis e sociais. Políticos são os direitos que dizem respeito à participação dos cidadãos na esfera pública. Civis (ou cívicos) são os relativos às liberdades individuais; têm a ver com a vida privada de cada um. Direitos sociais se configuram na regulação das relações que os homens estabelecem entre si e constituem garantias de solidariedade na comunidade humana.

A cidadania dos antigos

A Grécia do período homérico conformou-se nos séculos XII a VIII a.C. como comunidades gentílicas. Seu regime econômico-social era um comunismo primitivo, agrário, de autossubsistência. Sua organização se dava sob a autoridade de um patriarca, o qual exercia o pater poder enfeixando as funções administrativa, judicial e religiosa da comunidade.

O crescimento demográfico pressionou a produção agropecuária e evidenciou a escassez de terras, provocando a desagregação da comunidade gentílica. Assim produziram-se novas configurações sociais. Na reorganização operada, a comunidade gentílica cindiu-se em classes. Os descendentes diretos do patriarca constituíram a classe dos Eupátridas, “os bem nascidos”. Os Georgoi, “agricultores”, formaram a classe dos pequenos proprietários camponeses. E os Thetas, “marginais”, em grande número, sobraram como classe dos despossuídos.

Os Eupátridas assumiram as responsabilidades políticas, o gerenciamento das instituições e a organização da produção. Desse modo, tornaram-se uma aristocracia, que concentrava o poder e a posse da terra. Na medida em que as disputas pelo poder e pela posse da terra se acirraram, surgiram as frátrias, que em seguida se aglutinaram em tribos. Estas, sob a égide dos Eupátridas, fundaram as polis gregas como Cidades-Estado. Atenas foi uma dessas polis, cujo povoamento se estabelece em torno da Acrópole (“cidade alta”), o espaço culminante da cidade.

A cidadania, como conceito e práxis, tem sua gênese em Atenas, no período clássico dos séculos V e IV a.C. Foi gestada através de um longo processo de lutas de classe entre o povo e a aristocracia, resultando inicialmente na distribuição de justiça com base em leis escritas. Antes das leis escritas, o direito era transmitido oralmente entre as gerações e estava sujeito à interpretação da aristocracia, que era a guardiã da tradição.

A cidadania dos antigos era modelada por traços bem característicos. Em primeiro lugar, só uma minoria era dotada de direitos: cerca de 25% da população adulta, constituída pelos homens livres. A cidadania ateniense excluía as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Em segundo lugar, restringia-se aos direitos políticos, desconhecendo os direitos civis e sociais. Em terceiro lugar, os direitos políticos dos atenienses implicavam deveres com a polis: o cidadão tinha não só o direito mas a obrigação de participar da vida pública da Cidade-Estado. Por isso, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), em sua Política, prescreve que “o bom cidadão deve ter os conhecimentos e a capacidade indispensáveis tanto para ser governado como para governar; e o mérito de um bom cidadão está em conhecer o governo de homens livres sob os dois aspectos”.

Esse era o substrato ideológico da República ateniense. Todavia, na polis grega constituiu-se uma democracia muito diferente da dos modernos, pois a participação política prescindia de mediação, dava-se sem intermediários: os cidadãos reuniam-se periodicamente na Ágora, a praça na parte baixa da cidade, onde debatiam as questões públicas e decidiam no voto por maioria dos presentes. Tratava-se, pois, de uma democracia direta, sem traços da moderna democracia representativa.

Outra característica que distingue a democracia dos antigos é que ela, ao desconhecer os direitos civis, modelava uma ditadura da maioria extremamente intolerante com a diversidade, reprimindo com rigor qualquer tipo de pluralismo. Sócrates, por exemplo, foi condenado à morte, por ingestão de cicuta, acusado de corromper a juventude, por professar opiniões heterodoxas em relação à doutrina religiosa oficial.

Direitos civis

A cidadania dos modernos surge na Inglaterra do séc. XVII. Porém, diferentemente da dos antigos, não como conquista de direitos políticos, coletivos, que se dão no espaço público, mas de direitos civis, individuais, restritos à esfera privada.

Eles se inscrevem na tradição jusnaturalista, quer dizer, são concebidos como direitos naturais invioláveis, de que todas as pessoas seriam dotadas desde o nascimento. Contrapondo-se ao Estado absolutista, John Locke (1632–1704) foi o teórico da cidadania como direito natural do indivíduo, em sua vida privada, face ao poder estatal. Foi ele o principal ideólogo da Gloriosa Revolução, a qual instituiu a monarquia constitucional entre os ingleses em 1688.

A esse respeito, Leandro Konder (1936–2014), no ensaio Liberalismo e Democracia(1982), sinaliza: “Era uma época tumultuada, na qual nasciam, quase ao mesmo tempo, a instituição do habeas corpus e a especulação imobiliária. Londres fora bastante destruída por um incêndio, precisava ser reconstruída e os capitais que afluíram para a construção civil forçaram uma valorização desmesurada dos imóveis. Enquanto isso, as pessoas — sobretudo as que enriqueceram — exigiam garantias contra abusos de poder por parte do Estado”.

Para Locke, são direitos naturais inalienáveis da pessoa humana o direito à vida, o de ir e vir, o de pensamento e o de propriedade. Entre esses direitos, Locke, no Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1689), prioriza o direito à propriedade, incluindo aí o direito sobre os bens materiais adquiridos com o trabalho, mas também o direito a dirigir sua vida privada e a dispor da sua liberdade individual. E ele amplia o direito de propriedade para além dos bens materiais adquiridos com o próprio trabalho, assumindo como propriedade do empregador os bens produzidos pelo trabalho assalariado de seus empregados. Essa é a base doutrinária do liberalismo, ideologia da burguesia.

A Declaração dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, se insere na tradição jusnaturalista. Hegel (1770–1931) critica o jusnaturalismo ao dizer, em Princípios da Filosofia do Direito (1820), que só há direito efetivo no marco do Estado, no contexto da vida pública, ou seja, como decorrência de um processo que não é natural mas histórico-social. Marx (1818–1883) vai além e critica a natureza classista, burguesa, do jusnaturalismo. Em Para a Questão Judaica (1844), caracteriza os direitos civis como instrumentos ideológicos de consolidação da sociedade capitalista. Esse questionamento aponta as limitações dos direitos civis com vistas à exigência da “emancipação humana” posta por ele.

As Constituições modernas, de um modo geral, inscrevem os direitos civis em um capítulo dedicado especificamente às liberdades e garantias individuais.

A Constituição jacobina, de 1793, em seu art. 2º, inscreve na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como direitos naturais imprescritíveis, “a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade”.

A Declaração dos Direitos Humanos de 1791 prescrevia: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o outro”. O que era ecoado pela Constituição de 1793, em seu art. 6º: “A liberdade é o poder que pertence ao homem de fazer tudo o que não prejudique os direitos de outrem”. Que também delineava em seu art. 16: “O direito de propriedade é aquele que pertence a todo cidadão de gozar e de dispor à sua vontade dos seus bens, dos seus rendimentos, do fruto do seu trabalho e da sua indústria”. Definindo em seu art. 8º: “A segurança consiste na proteção concedida pela sociedade a cada um dos seus membros para a conservação da sua pessoa, dos seus direitos e das suas propriedades”. Marx, irônico, concluiu que, assim sendo, “a segurança é o supremo conceito social, o conceito da polícia”.

No Manifesto Comunista (1848), Marx e Engels denunciam a hipocrisia da ideologia liberal ao questionar os burgueses na questão chave do direito de propriedade: “Vocês se horrorizam com o fato de que queremos abolir a propriedade privada. No entanto, a propriedade privada foi abolida para nove décimos dos integrantes da sua sociedade; ela existe para vocês exatamente porque para nove décimos ela não existe”.

Com efeito, algo só é direito quando é universal; caso contrário, se vale para uns mas não para outros, é privilégio. E é esse o limiar que o direito burguês não pode franquear sem negar seu conteúdo de classe. Nesse sentido, Carlos Nelson Coutinho anota com precisão que o direito de propriedade sob o capitalismo é, na verdade, um privilégio de classe. Para transformar-se em direito efetivo, em algo acessível a todos, a propriedade precisaria deixar de ser privada para se tornar social.

E como ficou a igualdade? “A igualdade consiste em que a lei — quer proteja, quer castigue — é a mesma para todos”, rezava o art. 3º da Constituição de 1795. Essa igualdade jurídica, formal, daria a ocasião para que Anatole France (1844–1924) fustigasse as consciências bem-pensantes ao observar com arguto sarcasmo que a lei, na sua peculiar equanimidade, proíbe tanto ao rico quanto ao pobre roubar um pão, pedir esmolas ou dormir embaixo das pontes.

Mas, se, por um lado, a propriedade, para se universalizar, precisa transitar da esfera privada para a pública, por outro, para que “o privilégio da fé”, como sublinhou Marx, seja “um direito humano universal” é requerido o trânsito inverso: “O homem emancipa-se politicamente da religião — ao bani-la do Direito público para o Direito privado”. Assim, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1791, reza em seu artigo 10: “Ninguém deve ser molestado pelas suas opiniões, mesmo religiosas”. E o Título 7º da Constituição de 1791 reconhece “a liberdade de qualquer homem exercer o culto religioso ao qual está ligado”. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão também garante “o livre exercício dos cultos”. O que é corroborado pelo Título XIV, art. 354 da Constituição de 1795: “Conformando-se às leis, ninguém pode ser impedido de exercer o culto que escolheu. Ninguém pode ser forçado a contribuir para as despesas de nenhum culto. A república não salaria nenhum deles”. Está aí, claramente, o princípio do Estado laico: a separação entre o Estado e a Igreja.

Esses mesmos princípios estavam presentes nas Constituições estadunidenses. Na Constituição da Pensilvânia, em seu at. 9º, parágrafo 3º: “Todos os homens receberam da natureza o direito imprescritível de adorar o Todo-Poderoso segundo as inspirações da sua consciência e ninguém pode ser legalmente constrangido a seguir, instituir ou apoiar, contra a sua vontade, qualquer culto ou ministério religioso. Nenhuma autoridade humana pode, em caso algum, intervir nas questões de consciência e controlar os poderes da alma”. E é de idêntico teor o direito à liberdade de consciência na Constituição de New Hampshire.

No Brasil, após a Questão Religiosa no II Império, a República consagrou a separação entre a Igreja e o Estado, tornando-o laico.

Atualmente, os direitos civis se ampliaram de modo considerável. Novos direitos surgiram na esteira dos movimentos sociais suscitados pelas questões de gênero e de orientação sexual (movimentos feminista, LGBT) e pelas reivindicações antiproibicionistas (descriminalização do aborto, da maconha etc.).

Direitos políticos

Marx registrou em A Ideologia Alemã (1845) que a ideologia não tem história: “A moralidade, a religião, a metafísica, todo o resto da ideologia e suas correspondentes formas de consciência perdem assim sua aparência de autonomia. Elas não têm história, nem desenvolvimento; porém os homens, desenvolvendo sua produção e interação materiais, alteram junto com isso sua existência real, seu pensamento e os produtos dele. A vida não é determinada pela consciência, mas a consciência pela vida”.

Mais concretamente, Marx razoa alhures (carta a Pavel Annenkov, 18/12/1846): “Coloque um certo estado de desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens e você terá uma tal forma de comércio e de consumo. Coloque certos graus de desenvolvimento da produção, do comércio, do consumo e você terá tal forma de constituição social, tal organização da família, das ordens ou das classes, em uma palavra, tal sociedade civil. Coloque tal sociedade civil e você terá tal estado político, que é a expressão oficial da sociedade civil.”

Engels (1820–1895), em carta a J. Bloch (21–22/09/1890), precisa que, se, por um lado, “a situação econômica é a base”, por outro, “os diversos elementos da superestrutura, as formas políticas da luta de classes e seus resultados — as constituições estabelecidas uma vez a batalha ganha pela classe vitoriosa, etc. -, as formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, concepções religiosas e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos, exercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, as determinam de maneira preponderante na forma”.

Assim, a democracia dos antigos permanece como uma fantasmagoria que assombra os modernos. “A tradição de todas as gerações mortas pressiona pesadamente o cérebro dos viventes” — anota Marx em O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte (1852). “E mesmo quando eles parecem ocupados em transformar a si mesmos e às coisas, em criar algo totalmente novo, é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que eles evocam temerosamente os espíritos do passado, que eles lhes tomam emprestado seus nomes, suas palavras de ordem, seus costumes, para aparecer sobre a nova cena da história sob esse disfarce respeitável e com essa linguagem tomada de empréstimo”.

De modo que, hodiernamente, os direitos políticos reapareceram, mas transfigurados por novas determinações.

Sob a égide da ideologia liberal, a primeira Constituição da Revolução Francesa, a de 1791, estabelecia duas classes de cidadãos: os ativos e os passivos. Aos cidadãos ativos eram assegurados os direitos políticos, vale dizer, o de eleger e ser eleito. Aos cidadãos passivos só restavam os direitos civis. A Constituição jacobina, a de 1793, que durou apenas um ano, aboliu essa distinção, que foi, entretanto, restaurada nas constituições posteriores. E essa discriminação perduraria até 1848. O voto censitário, quer dizer, o sufrágio restrito a proprietários e contribuintes (os que pagavam imposto de renda) está em todas as constituições liberais do séc. XIX, inclusive a brasileira, e a discriminação se estendia à diferença de gênero, pois também excluía as mulheres.

Na Inglaterra, o movimento pelo sufrágio universal adquiriu um marcante caráter de massas. A classe operária inglesa protagonizou, nos anos 40 do séc. XIX, o movimento cartista, que tinha por bandeiras a conquista do sufrágio universal e da jornada de trabalho máxima de 10 horas.

A inglesa Emily Wilding Davison (1872–1913), que se atirou à frente do cavalo do rei no célebre Derby de 1913, foi a primeira mártir do movimento sufragista, que conquistou, com a aprovação do Representation of the People Act de 1918, o voto feminino no Reino Unido, tornando o sufrágio universal.

Fruto das lutas do movimento feminista (dito sufragista), o voto feminino no Brasil foi reconhecido plenamente no Código Eleitoral de 1932, embora ainda persistisse uma distinção de gênero: enquanto o voto do homem era obrigatório, o da mulher era facultativo. Mas a conquista do sufrágio universal no Brasil só se completou com a promulgação da Constituição de 1988, que, ao lado do voto obrigatório para os maiores de 18 anos e do voto facultativo para os maiores de 16 anos, estendeu o direito de voto (facultativo) aos analfabetos.

O sufrágio universal foi arrancado pelas lutas do movimento operário contra os liberais, que eram defensores do voto censitário. Mas, por si só, não resolvia a questão democrática, que é a da participação dos cidadãos no governo da sociedade. Ironizando a democracia dos ingleses, Rousseau (1712–1778), em O Contrato social (1762), comentaria que os ingleses pensam que são livres, mas só o são no dia das eleições. Eleito o Parlamento, a soberania popular é alienada.

Marx anotaria em Para a questão judaica que “por meio do Estado o homem se liberta politicamente de uma barreira, ao elevar-se acima dessa barreira de um modo abstrato e limitado, de um modo parcial”. E que “é por um desvio, por um medium (ainda que por um medium necessário) que o homem se liberta, ao libertar-se politicamente”, pois aí “o Estado é o mediador entre o homem e a liberdade do homem”. Isso fica claro na questão do sufrágio universal: “O Estado como Estado anula, por exemplo, a propriedade privada, o homem declara como suprimida (de modo político) a propriedade privada assim que suprime o censo para a elegibilidade ativa e passiva, como aconteceu em muitos Estados norte-americanos”. Marx indaga: “Não é a propriedade privada suprimida idealmente, quando o não possuinte se tornou legislador do possuinte?” E responde: “O censo é a última forma política de reconhecer a propriedade privada. Todavia, com a anulação política da propriedade privada, a propriedade privada não só não é suprimida mas também é mesmo pressuposta”. Esta pressuposição está no seguinte: “O Estado suprime, à sua maneira, a diferença do nascimento, do estado, da cultura, da ocupação, quando declara diferenças não políticas o nascimento, o estado, a cultura, a ocupação, quando (sem atender a estas diferenças) proclama cada membro do povo participante por igual da soberania popular, quando trata todos os elementos da vida popular real do ponto de vista do Estado. Não obstante, o Estado deixa atuar a propriedade privada, a cultura, a ocupação, à maneira delas, (isto é, como propriedade privada, cultura, ocupação) e faz valer a sua essência particular. Muito longe de suprimir essas diferenças fáticas, ele só existe antes no pressuposto delas, ele só se sente como Estado político, e só faz valer a sua universalidade em oposição a esses seus elementos”. Por isso, “o Estado político completo é, pela sua essência, a vida genérica do homem em oposição a sua vida material. Todos os pressupostos dessa vida egoísta continuam a subsistir fora da esfera do Estado na sociedade civil, mas como propriedades da sociedade civil”. Para Marx, “onde o Estado político alcança o seu verdadeiro desabrochamento, o homem leva — não só no pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida — uma vida dupla, uma celeste e uma terrena: a vida na comunidade política (em que ele se faz valer como ser comum) e a vida na sociedade civil (em que ele é ativo como homem privado, considera os outros homens como meio, se degrada a si próprio à condição de meio, e se torna o joguete de poderes estranhos).” Por isso, “o homem na sua realidade mais próxima, na sociedade civil, é um ser profano. Aqui onde ele se faz valer a si próprio e aos outros como indivíduo real — é um fenômeno não verdadeiro. No Estado, ao contrário — em que o homem vale como ser genérico -, ele é o membro imaginário de uma soberania imaginada, é roubado da sua vida individual real e repleto de uma universalidade irreal”. Resulta disso que “o conflito em que o homem […] se encontra com a sua cidadania de Estado, com os outros homens, reduz-se à cisão mundana entre o Estado político e a sociedade civil. Para o homem como bourgeois, a ‘vida no Estado’ é ‘apenas aparência ou uma exceção momentânea face à essência e à regra’”. Mas “a emancipação política é, sem dúvida, um grande progresso” — avalia Marx. “Ela não é, decerto, a última forma de emancipação humana, em geral, mas é a última forma de emancipação política no interior da ordem mundial até aqui. Entende-se: nós falamos aqui de emancipação real, de prática”.

O movimento operário nunca se conformou com a restrição dos direitos políticos ao sufrágio universal. Em vez disso, lutou por outros direitos como o de livre organização, principalmente o de se organizar em sindicatos, e o de greve. Durante muito tempo esses direitos foram negados aos trabalhadores.

Na França, é de 1791 a Lei Le Chapelier. Promulgada, portanto, em plena Revolução Francesa, pretextando a proibição das corporações de ofício, feudais, ela proibia qualquer tipo de organização sindical ou greve de trabalhadores.

Marx cita em um paratexto de O Capital (1867) que “o artigo I dessa lei diz: ‘Sendo uma das bases fundamentais da constituição francesa a supressão de todos os tipos de corporações do mesmo estamento (état) e profissão, é proibido restabelecê-las de fato, sob qualquer pretexto ou em qualquer forma’. O artigo IV reza que, no caso de cidadãos pertencentes às mesmas profissões, artes ou ofícios tomarem deliberações ou realizarem convenções com o objetivo de recusar um acordo ou de não consentirem no socorro de sua indústria ou de seus trabalhos a não ser por um preço determinado, tais consultas e acordos […] serão declarados inconstitucionais e como atentados à liberdade e à declaração dos direitos do homem etc., ou seja, como crimes de Estado. exatamente como nos velhos estatutos dos trabalhadores”.

Só nos anos 80 do séc. XIX, os trabalhadores franceses conseguiram, finalmente, a revogação dessa lei, conquistando assim, na luta, o direito de greve e a liberdade de organização sindical.

Direitos sociais

A política de panem et circus dos antigos romanos já antecipava a moderna ideia de direitos sociais. Através dessa política, o Estado garantia aos pobres o provimento do alimento necessário à sua subsistência.

Fruto do movimento cartistas, a Inglaterra — berço da 1ª Revolução Industrial — aprovou, em 1847, a primeira lei que fixava em 10 horas a jornada máxima de trabalho.

No manifesto inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx saudou, em 1864, a conquista da limitação da jornada máxima de trabalho na Inglaterra como uma vitória da economia política da classe operária sobre a economia política burguesa: “a Lei das Dez Horas não foi apenas um grande sucesso prático; foi a vitória de um princípio; foi a primeira vez que à plena luz do dia a economia política da burguesia sucumbiu à economia política da classe operária”.

Na França, em 1848, a jornada máxima de trabalho foi estabelecida em 10 horas em Paris e em 11 horas nas demais províncias.

Em 1866, o Congresso Geral dos Trabalhadores Norte-Americanos, celebrado em Baltimore, aprovou uma resolução no sentido de que “a primeira e grande exigência para libertar o trabalhador da escravidão capitalista, nos Estados Unidos” seria a promulgação de uma lei que instituísse a jornada normal de trabalho de 8 horas.

Ainda em 1866, o Congresso Operário Internacional de Genebra reivindicou a jornada de trabalho de 8 horas como pré-requisito à emancipação dos trabalhadores.

No 1° de maio de 1886, ocorreram diversas manifestações nos Estados Unidos, em que eram pleiteadas a redução da jornada de trabalho para 8 horas. Mas essas mobilizações terminaram com seis trabalhadores mortos, oito presos e cinco condenados à forca. Nascia aí o Dia Mundial do Trabalho, sendo comemorado em todos os países, menos nos Estados Unidos.

Em julho de 1889, o I Congresso da II Internacional acordou celebrar o 1o de Maio, como jornada de luta do proletariado de todo o mundo, e adotou a seguinte resolução histórica: “Deve organizar-se uma grande manifestação internacional, numa mesma data, de tal maneira que os trabalhadores de cada um dos países e de cada uma das cidades exijam simultaneamente das autoridades públicas limitar a jornada laboral a oito horas e cumprir as demais resoluções deste Congresso Internacional de Paris”.

Finalmente, em 1890, o Congresso Norte-Americano votou a Lei que fixou a jornada de trabalho em 8 horas.

O estabelecimento legal de um piso salarial foi outro direito social muito importante para os trabalhadores, mas durante muito tempo “o Estado impõe um salário máximo, mas de modo algum um mínimo”.

Marx registra em O Capital que “a legislação sobre o trabalho assalariado, desde sua origem cunhada para a exploração do trabalhador e, à medida de seu desenvolvimento, sempre hostil a ele, foi iniciada na Inglaterra, em 1349, pelo Statute of Labourers [Estatuto dos Trabalhadores] de Eduardo III. A ele corresponde, na França, a ordenança de 1350, promulgada em nome do rei João. As legislações inglesa e francesa seguem um curso paralelo e são idênticas quanto ao conteúdo”. Quanto à remuneração do trabalho, “uma tarifa legal de salários foi estabelecida para a cidade e para o campo, para o trabalho por peça e por dia. Os trabalhadores rurais deviam ser contratados por ano, e os da cidade, ‘no mercado aberto’. Proibia-se, sob pena de prisão, pagar salários mais altos do que o determinado por lei, mas quem recebia um salário mais alto era punido mais severamente do que quem o pagava. Assim, as seções 18 e 19 do Estatuto dos Aprendizes da Rainha Elizabeth impunham 10 dias de prisão para quem pagasse um salário mais alto, e 21 dias para quem o recebesse. Um estatuto de 1360 tornava mais rigorosas as penas e, inclusive, autorizava o patrão a empregar a coação física para extorquir trabalho pela tarifa legal de salário. Todas as combinações, convênios, juramentos etc. pelos quais pedreiros e carpinteiros se vinculavam entre si, eram declarados nulos e sem valor. Desde o século XIV até 1825, ano da revogação das leis anticoalizão, considerava-se crime grave toda coalizão de trabalhadores. O espírito do estatuto trabalhista de 1349 e de seus descendentes se revela muito claramente no fato de que o Estado impõe um salário máximo, mas de modo algum um mínimo.” E Marx prossegue: “A lei 8 Jorge II ainda proibia que os oficiais de alfaiataria recebessem, em Londres e arredores, salários acima de 2 xelins e 7,5 pence por dia, salvo em casos de luto público; a lei 13 Jorge III c. 68 transferiu aos juízes de paz a regulamentação dos salários dos tecelões de seda; em 1796, foram necessárias duas sentenças dos tribunais superiores para decidir se os mandatos dos juízes de paz sobre salários também valiam para os trabalhadores não agrícolas; em 1799, uma lei do Parlamento confirmou que o salário dos mineiros da Escócia devia ser regulado por uma lei da época da rainha Elizabeth e por suas leis escocesas de 1661 e 1671. O quanto as condições se haviam alterado nesse ínterim o demonstra um fato inaudito, ocorrido na Câmara Baixa inglesa. Aqui, onde há mais de 400 anos se havia fabricado leis fixando o máximo que o salário não deveria, em nenhum caso, ultrapassar, Whitbread propôs que se fixasse um salário mínimo legal para os jornaleiros agrícolas. Pit opôs-se, porém admitiu que ‘a situação dos pobres era cruel’. Por fim, em 1813, as leis de regulação dos salários foram revogadas.”

No Brasil, a Lei nº 185 de janeiro de 1936 e o Decreto-Lei nº 399 de abril de 1938 instituíram o salário mínimo, e o Decreto-Lei nº 2162 de 1º de maio de 1940 fixou seus valores, que entrou em vigor no mesmo ano. O país foi dividido em 22 regiões (os 20 estados existentes na época, mais o território do Acre e o Distrito Federal) e todas as regiões que correspondiam a estados foram divididas ainda em sub-regiões, num total de 50. Para cada sub-região fixou-se um valor para o salário mínimo, num total de 14 valores distintos para todo o Brasil. A relação entre o maior e o menor valor em 1940 era de 2,67 vezes. Trabalhadores rurais e empregados domésticos, no entanto, continuavam sem a garantia de um salário mínimo legal.

Em todos os tempos, os direitos sociais são objeto de uma encarniçada disputa. Em torno deles se armou o cenário das lutas de classe nos países capitalistas centrais. Entre esses direitos, a escola pública gratuita, laica e universal foi uma das primeiras conquistas, nascida da Revolução Francesa. Seguiram-na como direitos sociais conquistados pelas forças populares: a previdência social, a saúde pública, a assistência social, etc. Esse conjunto de direitos sociais deu origem, após a II Grande Guerra (1939–1945), ao welfare State [Estado de bem-estar], contra o qual o capital lançou a ofensiva neoliberal.

Assim, ao longo das lutas de classes no mundo capitalista, foi se afirmando a ideia de que o Estado é responsável pela proteção dos setores sociais mais vulneráveis economicamente. Mas foi só com o welfare State que se consolidou o conceito de Seguridade Social.

A Seguridade Social abarca o tripé saúde, previdência e assistência social. No Brasil, esse conceito foi plasmado pelo art. 194 da Constituição de 1988, baseado na noção de “pacto entre gerações” e no “princípio da solidariedade”, segundo os quais os benefícios presentes e futuros dos trabalhadores são custeados pelas contribuições passadas, presentes e futuras de toda a sociedade.

A Constituição de 1988 consagrou direitos sociais que são contestados pela direita desde a sua promulgação. Muitos desses direitos foram sistematicamente ignorados e, em alguns casos, posteriormente revogados. Na linha de fogo dos ataques da direita encontra-se o próprio conceito de Seguridade Social nos termos em que está inscrito na Constituição de 1988.

Collor, Fernando Henrique e Lula intentaram contrarreformas da Previdência Social, sempre na mesma linha de revogação de direitos sociais. Alguns desses intentos contrarreformistas obtiveram êxitos e resultaram seja na perda de arrecadação de recursos da Seguridade Social (através de isenções fiscais e contrarreformas tributárias) seja na perda de direitos previdenciários de categorias específicas, seja na depreciação de aposentadorias, pensões e benefícios de uma forma geral, seja na dilatação do tempo de contribuição ou da idade para a aposentadoria.

A Constituição de 1988 garantiu os recursos para o financiamento da Seguridade Social e o provimento dos direitos sociais decorrentes. Na atual quadra da vida política nacional, defender o marco legal da Constituição de 1988 é barrar a ofensiva neoliberal contra os direitos sociais por ela consagrados. Por isso, é inadiável o comprometimento com a luta em defesa dos direitos sociais consagrados no dispositivo constitucional de 1988, particularmente no que se refere à Seguridade Social e à Previdência. Aliás, o PSol nasce da resistência dos trabalhadores e de uma fração dos parlamentares petistas à contrarreforma previdenciária levada a cabo pelo governo Lula. Finalmente, a contrarreforma da Previdência Social foi aprovada no governo Bolsonora como um formidável atropelo aos direitos previdenciários.

À política de desmanche do Estado — como agência econômica, de prestação de serviços públicos e de proteção social -, de desregulamentação do mercado e retirada das barreiras protecionistas, de precarização das relações trabalhistas e do emprego deu-se o nome de neoliberalismo. Todavia o Estado neoliberal continua operando na esfera econômica como grande consumidor de mercadorias e serviços, mas também através de mecanismos tributários, fiscais e financeiros de transferência de renda para o setor privado e da contenção das lutas sindicais e populares.

Trata-se da velha ideologia liberal, que correspondia à época do capitalismo de livre concorrência, só que ressurgida em condições históricas de crescente monopolização da economia, dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural, apontando não para o pluralismo, mas para a homogeneização, a massificação, a uniformização do consumo de descartáveis, a tendência ao pensamento único. O discurso liberal é o mesmo, mas o acontecimento discursivo é outro.

Antes de se generalizar como diretriz de política econômica dos países capitalistas — em reação contrarreformista à estagflação gerada pela crise de 1973–1979, que colocou em xeque o welfare State –, o neoliberalismo foi implantado, primeiro, no Chile de Pinochet (1973–1990) e, em seguida, na Inglaterra de Thatcher (1979–1990) e nos Estados Unidos de Reagan (1980–1988).

Perry Anderson, em Balanço do neoliberalismo (1994), considera que a Inglaterra de Margaret Thatcher encarnou a forma canônica do neoliberalismo: “O modelo inglês — diz Perry Anderson — foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente — esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado.”

No Brasil, o neoliberalismo surge como política de governo sob a presidência de Collor (1990–1992); atinge o seu clímax no PROER e no auge das privatizações durante os governos FHC (1995–2002); e tem seguimento, atenuado por políticas compensatórias, nos governos de Lula (2003–2010) e Dilma (2011–2014). Os governos Temer e Bolsonaro radicalizaram essas tendências numa direção ultraliberal e ultrarreacionária.

No ensaio A época neoliberal: revolução passiva ou contrarreforma? (2007), Carlos Nelson Coutinho (1943–2012) conceitua a época neoliberal como um período de contrarreformas.

As consequências sociais do neoliberalismo são graves: a combinação de desemprego, exclusão social e apelo ao consumo — numa sociedade atomizada pelo individualismo e pela competitividade, na qual o marketing dita a moda e as pessoas valem mais pelo que têm do que pelo que são — delineia um quadro de degradação da convivência social que fomenta a desesperança, a violência e a barbárie.

Em resposta ao discurso neoliberal da ideologia dominante de que “não há alternativa” (TINA — There Is No Alternative) ao regime do capital, István Mészáros (1930–2017) postula, em Para além do Capital (1995) e Atualidade histórica da ofensiva socialista (2010), que, “embora passe a ser uma dolorosa obviedade o fato de as alternativas do capital hoje se limitarem cada vez mais a flutuações manipuladoras entre variedades de keynesianismo e monetarismo, com movimentos oscilatórios cada vez menos eficazes, que tendem de maneira perigosa ao ‘repouso absoluto’ de uma contínua depressão, a recusa socialista à falta de alternativa deve ser articulada positivamente com objetivos intermediários, cuja realização possa promover avanços estratégicos no sistema a ser substituído, mesmo que apenas parciais num primeiro momento”.

O que István Mészáros está a nos dizer tem uma apreciável complexidade dialética. Estamos diante do projeto de uma ofensiva propositiva que se configura, no plano estratégico, como um reformismo revolucionário. E isso porque, a seu juízo, “o que decide o destino das várias forças socialistas na sua confrontação com o capital é o grau de sua capacidade de fazer mudanças tangíveis na vida cotidiana, hoje dominada por manifestações ubíquas das contradições subjacentes”.

István Mészáros fala em “combinar, num todo coerente, com implicações socialistas em última análise inevitáveis, uma grande variedade de demandas e estratégias parciais que, em si e por si, não precisam ter em absoluto nada de especificamente socialista”. Ele pondera que essas demandas não atendidas, apesar de não serem demandas propriamente socialistas, consideradas em conjunto são “partes do complexo global que as reproduz de modo constante como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis”. Por isso, considera que “o que decide a questão é sua condição de realização”. E adverte que “o que está em jogo não é a enganosa ‘politização’ dessas questões isoladas, […] mas a efetividade de afirmar e sustentar tais demandas ‘não socialistas’ largamente automotivadoras no front mais amplo possível”.

Vale dizer: consideradas isoladamente, cada demanda vale pouco; vistas em conjunto, são incompatíveis com o capitalismo. Tornam-se anticapitalistas porque contrariam a lógica do capital ao colocar em primeiro plano o valor de uso em detrimento do valor de troca. E é só do ponto de vista da totalidade que podemos apreender o potencial revolucionário delas. Daí o pluralismo das formas de luta, consciência e organização engajadas na ação comum de forças diversas que se articulam na prática (ação comum que não implica unificação, mas apreço à diversidade).

István Mézzáros lembra a crítica de Engels a Wilhelm Liebknecht, principal redator do Programa de Gotha: “Da democracia burguesa ele trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação”. Marx alertou para o alto custo dessa “mania de unificação”. Em seu lugar, recomendou a fidelidade aos princípios socialistas e a negociação de programas de ação concretos, viáveis e flexíveis em torno dos objetivos comuns. No entanto, paradoxalmente, essa “mania de unificação” grassou por longo tempo nas esquerdas, resultando nas manipulações das bases pelas burocracias partidárias e sindicais, e nas concessões de princípio ao capital.

A cidadania dos modernos

Marx observa que “os droits de l’homme […] são diferentes dos droits du citoyen”. Constata que “nenhum dos chamados direitos do homem vai […] além do homem egoísta, além do homem tal como ele é membro da sociedade civil, a saber: indivíduo remetido a si mesmo, ao seu interesse privado e ao seu arbítrio privado, e isolado da comunidade. Neles, muito longe de o homem ser apreendido como ser genérico, antes a própria vida genérica, a sociedade aparecem como um quadro exterior aos indivíduos, como limitação da sua autonomia original. O único vínculo que os mantém juntos é a necessidade da natureza, a precisão e o interesse privado, a conservação da sua propriedade e da sua pessoa egoísta”.

Isso é corroborado pelo art. 2º da Constituição de 1791, a primeira da revolução francesa: “O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”. Como também pelo art. 1º da Constituição jacobina, a de 1793: “O governo é instituído para garantir ao homem o gozo dos seus direitos naturais e imprescritíveis”. Daí Marx afirmar que “a revolução política é a revolução da sociedade civil”, ou seja, da sociedade burguesa, distinguindo emancipação política de emancipação humana, a qual não pode prescindir da revolução social.

Sobre a questão democrática, não obstante, no ensaio Democracia e Socialismo: questões de princípio (1989), Carlos Nelson Coutinho sublinha: “É um erro teórico e histórico considerar que as liberdades políticas e a chamada democracia formal são próprias do capitalismo.” Concede: “Decerto, muitas das liberdades democráticas em sua forma moderna (o reconhecimento dos direitos civis, o princípio da soberania popular etc.) tiveram nas revoluções burguesas — ou, mais concretamente, nos amplos movimentos populares do Terceiro Estado contra o despotismo absolutista — as condições históricas de sua gênese; e outras tantas (como o direito de associação, o sufrágio universal e igual etc.), embora conquistadas pelas lutas populares em oposição à burguesia, puderam se desenvolver e consolidar no quadro da ordem capitalista.” E conclui: “Para o materialismo histórico, contudo, não existe identidade mecânica entre gênese e validade. Foi o próprio Marx quem observou que a arte de Homero não perdeu seu valor universal — e conservou até mesmo sua função de modelo — apesar do desaparecimento da sociedade grega primitiva na qual essa arte teve sua gênese. Embora deva ser concretizada em cada esfera do ser social, essa observação histórica de Marx tem alcance metodológico geral. Se isso é verdade, não está em contradição com o método marxiano afirmar que nem objetivamente, com o desaparecimento da sociedade burguesa onde tiveram sua gênese, nem subjetivamente, para os atores empenhados nesse desaparecimento, perdem seu valor universal muitas das objetivações ou formas de relacionamento social que compõem o arcabouço institucional da chamada ‘democracia burguesa’.”

Carlos Nelson tem em mente a categoria de valor conceituada por Agnes Heller em O cotidiano e a história (1970): “Que entendemos por valor? Tudo o que faz parte do ser genérico do homem e contribui, direta ou indiretamente, para a explicitação desse ser genérico […] Os componentes da essência genérica do homem são, para Marx, o trabalho (a objetivação), a socialização, a universalidade, a consciência e a liberdade […] Pode-se considerar ‘valor’ tudo o que, em qualquer das esferas [do ser social] e em relação à situação de cada momento, contribua para o enriquecimento daqueles componentes essenciais. […] O valor, portanto, é uma categoria ontológico-social e, como tal, é algo objetivo […], independente das avaliações dos indivíduos, mas não da atividade dos homens, pois é expressão e resultante de relações e situações sociais.”

Então, considerando o valor como resultado da atividade humana no contexto das relações sociais em situações históricas dadas, Carlos Nelson ressalva: “o que tem valor universal não são as formas concretas que a democracia adquire em determinados contextos históricos — formas essas sempre modificáveis, sempre renováveis, sempre passíveis de aprofundamento — , mas o que tem valor universal é esse processo de democratização, que se expressa essencialmente numa crescente socialização da participação política”.

Por isso mesmo, não está demais falar em democracia burguesa no marco de uma formação social capitalista. A esse propósito, é bom lembrar o enunciado de Marx, no 18 Brumário de Luís Bonaparte, referindo-se aos políticos da socialdemocracia francesa: “O que os transforma em representantes do pequeno-burguês é o fato de não conseguirem transpor em suas cabeças os limites que este não consegue ultrapassar na vida real e, em consequência, serem impelidos teoricamente para as mesmas tarefas e soluções para as quais ele é impelido na prática pelo interesse material e pela condição social.” E conclui: “Essa é, em termos gerais, a relação entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe que representam”.

De modo análogo, o que faz da democracia uma democracia burguesa é o fato dela não ultrapassar os limites impostos pela lógica da reprodução ampliada do capital, exatamente por estar subsumida ao modo de produção capitalista. O que não torna, em absoluto, a democracia política uma questão menor.

“Jamais fomos idólatras da democracia formal — explica Rosa Luxemburg em seu ensaio A Revolução Russa (1918) –, mas isso quer dizer apenas o seguinte: sempre distinguimos entre ela e o núcleo duro de desigualdade e servidão recoberto pelo suave invólucro da igualdade e liberdade formais, mas não para rejeitar essas últimas e, sim, para incitar a classe operária a não se contentar com elas e a tomar o poder político a fim de preencher esse invólucro com um conteúdo social novo.”

Engels, em seu célebre Prefácio de 1895 a As lutas de classes na França de 1848 a 1850, deposita grandes esperanças no sufrágio universal introduzido na Alemanha em 1866. “Em 1871: 102 mil; em 1874: 352mil; em 1877: 493 mil votos socialdemocratas.” Em seguida, com a promulgação da Lei de Exceção contra os Socialista, que colocou o movimento operário na ilegalidade, a votação caiu nas eleições de 1881 para 312 mil. “Porém — anota Engels -, isso foi rapidamente superado, e agora, sob a pressão da lei de exceção, sem imprensa, sem organização exterior, sem direito de associação nem de reunião, foi que começou para valer a rápida expansão — em 1884: 550 mil; em 1887: 763 mil; em 1890: 1,437 milhão de votos. Diante disso, a mão do Estado ficou paralisada. A Lei contra os Socialistas sumiu, o número de votos socialistas subiu para 1,787 milhão, mais de um quarto de todos os votos depositados.”

Isso constituiu uma novidade. Como Engels assinala, “o direito de voto universal já existia há muito tempo na França, mas havia adquirido má fama em virtude dos abusos que o governo bonapartista praticara com ele. Depois da Comuna não restou mais nenhum partido de trabalhadores para tirar proveito dele. Também na Espanha, ele existia desde a instauração da república, mas naquele país a regra sempre fora que todos os partidos sérios de oposição deveriam abster-se das eleições. As experiências que os suíços fizeram com o direito de voto universal também foram tudo menos encorajadoras para um partido de trabalhadores. Os trabalhadores românicos haviam se acostumado a ver o direito de voto como uma armadilha, como um instrumento do governo para fraudá-los.” Nas mãos dos trabalhadores alemães foi diferente. “Nas palavras do programa marxista francês, o direito de voto foi por eles transformado de meio de fraude, como foi até agora, em instrumento de emancipação.”

A experiência da Unidade Popular chilena, que, na primeira metade dos anos 70 do séc. passado, elegeu Salvador Allende como presidente do Chile, constitui um processo histórico exitoso de utilização do sufrágio universal pelas classes subalternas. Ao levar a luta de classes ao limite da institucionalidade burguesa, ele foi, no entanto, abortado pelo sangrento golpe de Estado comandado pelo general Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973.

Mais recentemente, o filósofo marxista italiano Domenico Losurdo, em Democracia ou bonapartismo (2004), denuncia o processo de apropriação do sufrágio universal pela burguesia, o qual, dessa forma, deixa de ser um instrumento de emancipação para se constituir em instrumento de manipulação da vontade geral. Losurdo caracteriza aí uma tendência à des-emancipação num Estado burguês cada vez mais bonapartista.

István Mészáros põe o dedo na ferida ao dizer com todas as letras que, “na medida em que o capitalista não é apenas a ‘personificação do capital’, mas simultaneamente ‘a personificação do caráter social do trabalho’, da ‘totalidade do trabalho enquanto tal’ [Marx: Manuscritos econômico-filosóficos], o sistema pode alegar que representa o poder de produção vitalmente necessário para a sociedade vis-à-vis aos indivíduos, incorporando os interesses de todos”. O que implica dizer que “o capital é a força extraparlamentar par execellence, cujo poder de controle sociometabólico não pode ser politicamente constrangido pelo Parlamento”. Ele destaca que “a questão vital, da qual tudo depende, é que ‘as condições objetivas do trabalho não aparecem subsumidas ao trabalhador’, mas, ao contrário, ‘ele aparece subsumido àquelas’ [Marx: Manuscritos econômico-filosóficos], por isso mesmo nenhuma mudança significativa é viável sem que se volte a essa questão, tanto por meio de políticas capazes de desafiar o poder e os modos de ação extraparlamentares do capital como na esfera da reprodução material”. E sublinha: “a razão pela qual as instituições políticas hoje estabelecidas resistem com sucesso a mudanças significativas para melhor é serem elas próprias parte do problema, e não da solução, pois em sua natureza imanente elas são a personificação das determinações e contradições estruturais subjacentes pelas quais o Estado capitalista moderno — com sua rede ubíqua de componentes burocráticos — foi articulado e estabilizado no curso dos últimos quatrocentos anos”.

O Parlamento é “dominado pelo poder extraparlamentar do capital”. Exatamente por isso não pode controlá-lo, ainda que minimamente. Coloca-se então como tarefa prioritária a construção de um movimento revolucionário que dissemine uma “consciência comunista de massa”, a ser forjada em torno de um programa anticapitalista animado por um amplo movimento extraparlamentar de massas, como foram as jornadas de junho no Brasil, não permitindo a dissolução do “setor de classe ativo e consciente do proletariado na massa amorfa de um ‘eleitorado’”, como Rosa Luxemburgo denunciou.

Concluindo: “O poder extraparlamentar do capital só pode ser enfrentado pela força e pelo modo de ação extraparlamentares do trabalho”. O que, obviamente, não nega o espaço da disputa eleitoral e da luta no Parlamento, mas propõe uma nova articulação entre ação no interior das instituições (Executivo, Legislativo, Judiciário) e ação direta extrainstitucional de massas, na qual esta não se subordina àquela, mas preserva sua autonomia e impõe sua primazia através da iniciativa política.

Só a luta garante a cidadania. O caminho é a defesa dos direitos adquiridos e a luta por mais direitos. Inclusive pelo direito à preservação das condições ambientais necessárias à reprodução da vida humana. Isso só pode culminar na revolução social e na implantação de um novo poder estatal que seja a transição para a sua abolição através do desabrochar da cidadania em sua plenitude. A tomada revolucionária do poder é, assim, a précondição para a conquista da cidadania plena.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

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