A reforma agrária vista do lado de cima e do lado de baixo: Comuna da Terra “Irmã Alberta”

16 de setembro de 2023

comuna irmã alberta - Issuu

Fonte: Reinaldo Almeida

Do lado de cima

A Constituição de 1988 criou o marco legal que, supõe-se, vigora no Brasil em termos de reforma agrária: a terra tem que ter uma “função social”. Esta última expressão é, porém, bastante elástica. Assim, por exemplo, considera-se que uma área destinada à produção de commodities agrícolas cumpriria com sua “função social” tanto quanto uma área onde moram famílias e produzem alimento para si e para os trabalhadores das cidades. A demanda de terra para viver, o que se entende por viver, é equiparada, portanto, com aquela que tem por finalidade o lucro. A constituição e a jurisprudência vêm considerando “terras que não cumprem sua função social” apenas as terras improdutivas (segundo parâmetros de produtividade média que variam conforme a tecnologia vai mudando); terras cujo uso acarreta deterioração ambiental; e terras onde não se cumpre a legislação trabalhista. Na prática, apenas a primeira das razões tem sido usada como argumento para desapropriação pelo Estado. Em mais de um caso, especuladores têm negociado a desapropriação de suas terras para destinar capital a outras atividades econômicas que se apresentam mais lucrativas. 

A distribuição de áreas destinadas à reforma agrária vem desacelerando neste século, até ficar congelada. Enquanto isso, a fronteira de commodities agrícolas não deixa de avançar, até mesmo sobre áreas de proteção ambiental, num modelo econômico exportador que mantém continuidade durante governos de diferentes cores. Com deterioração das relações de trabalho (mal) compensada por políticas de transferência de renda que operam como justificativa para reprodução do modelo exportador que justamente aumenta a miséria do trabalho. 

Do lado de baixo

A indigência assim provocada empurrou não poucas famílias, que vivem a vida precária das periferias das cidades, à ocupação de terras para viver. É o caso da ocupação “Irmã Alberta”. Em 20 de julho de 2002, as famílias entraram num terreno de pouco mais de 100 hectares, na divisa entre Cajamar e Santana de Parnaíba, pertencente à Sabesp, ao qual, apesar de estar sobre o aquífero Cristalino, a empresa destinava o lixão de rejeitos dos rios Tietê e Pinheiros. Uma engarrafadora da Minalba, instalada ao lado, extrai água do aquífero para vender. As famílias, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com a presença destacada da Irmã Alberta Girardi, limparam a área e arrancaram os eucaliptos de raiz, enquanto construíam os barracos de lona preta. 

Fonte: Marina Morena Costa

Aos poucos, foram construindo moradias um pouco mais consolidadas, com madeira e alvenaria. Ao mesmo tempo, plantaram árvores nativas e hortas consorciadas. Assim recuperaram o solo, que haviam encontrado compactado e ácido. E foram aprendendo como fazê-lo na medida em que iam agindo. A fauna silvestre retornou e também sete nascentes de água que haviam secado. 

Depois de refletir, as famílias tomaram duas decisões orientadoras: a forma de organização social que adotariam seria de Comuna da Terra, as práticas agrícolas e ambientais seriam as condizentes com a agroecologia. De fato, um bem-casado que configura o território. 

A partir dessas decisões, definiram uma grande área compartilhada (“área social”), ciranda infantil, cozinha coletiva e escola de agroecologia itinerante. Há oito anos a Comuna “Irmã Alberta” acolheu a companhia teatral Antropofágica, que consolida o Território Okaracy, com espaços de apresentação de teatro, pesquisa teatral e escola de teatro. 

De cima e de baixo

Os moradores enfrentaram seis tentativas de despejo, mas conseguiram permanecer. Tanto o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP) como o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) já reconheceram, em diversas oportunidades, que a ocupação deveria virar assentamento. Mas, até agora, não tem esse status legal reconhecido pelo Estado. Porém, para as 68 famílias, já é um assentamento.

Fonte: Antonio Passaty.

Durante a pandemia, os moradores dos bairros próximos, como os do Morro da Mandioca, receberam alimentos fornecidos gratuitamente pela Comuna “Irmã Alberta”. A comuna não é só para si, é também para a vida de todos. Assim entendem os camponeses e assim agem. A Irmã Alberta não pôde testemunhar tal feito. Faleceu, aos 97 anos, em dezembro de 2018. Na terra que escolheu para viver e lutar. 

Fonte: 100Nonni

O governador Tarcísio de Freitas diz estar empenhado em privatizar a Sabesp, sociedade anônima de economia mista dedicada ao abastecimento de água corrente e coleta e tratamento do esgoto, que atende 370 municípios do estado. O governo João Dória, em 2020, deu os primeiros passos para tal: regionalizou a gestão hídrica, criando 645 Unidades de Abastecimento e Esgotamento Sanitário (URAES) que abrangeram os 370 municípios que têm contrato com a Sabesp. “A bala tá na agulha”. Fica mais fácil privatizar o serviço d’água “por fatias”, concedendo a exploração para empresas de porte menor das URAES.

Não foi por mera coincidência que no dia 26 de agosto os compas do “Irmã Alberta” receberam uma carta anunciando o despejo. Já é a sétima tentativa de destruir a Comuna. Para além do processo que corre nos labirintos do Estado, a Comuna continua com o que vem fazendo há 21 anos: defender o solo e a água, produzir abundância de alimentos, construir novas relações entre si e com seus vizinhos. 

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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