A renda fundiária: esboço introdutório

“toda a ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente”
Marx

A “Seção VI” do “Livro III” de “O Capital” estuda a “Transformação do lucro extra em renda fundiária”, indo do Capítulo 37 ao 47. Na edição da Boitempo, isso se estende da página 675 à 873. Marx adverte, logo a seguir, na “Seção VII”, na qual analisa “Os rendimentos e suas fontes”, que “o capital não é uma coisa, mas uma determinada relação social de produção”. Pois bem, a renda fundiária esclarece essa relação social de produção não só na agricultura e na pecuária, mas em todas as atividades extrativistas (aí incluída a mineração) e também na exploração do solo urbano. “A renda do solo é a forma na qual se realiza economicamente a propriedade fundiária, a forma na qual ela se valoriza”. E Marx acrescenta: “Aqui estão, reunidas e confrontadas, as três classes – o trabalhador assalariado, o capitalista industrial e o proprietário fundiário – que constituem o marco da sociedade moderna.” Trata-se, pois, de uma questão tão relevante quando complexa e, deve-se admitir, essencial à plena compreensão da crítica marxista do capital.

“terra-matéria” & “terra-capital”

Em “Miséria da filosofia”, Marx já distinguira a “terra-matéria” da “terra-capital”. É uma distinção elementar. “A terra-capital é um capital fixo” – diz Marx -, “mas este se desgasta como os capitais circulantes.” Em contrapartida, a terra-matéria é o solo em estado natural, vale dizer, sem trabalho incorporado. Segundo a teoria marxista do valor-trabalho, valor é a quantidade de trabalho socialmente necessária à produção da mercadoria, a qual enquanto tal tem valor de uso (utilidade) e valor de troca (equivalência quantitativa a outras mercadorias). Nas palavras de Marx, “o valor como tal não tem outro material que não seja o próprio trabalho”. Se não há trabalho, não há valor. Logo, a terra-matéria não tem valor. Mas mesmo assim pode ter preço. Esse preço é a renda do solo que remunera o proprietário fundiário enquanto tal.

Isso obedece à injunção de duas determinantes que condicionam a lucratividade do solo: a localização do terreno (implicando a acessibilidade ao mercado) e a fertilidade do solo (não só devido à sua composição química, mas também a fatores ambientais como regime de chuvas, temperaturas, ventos, umidade relativa do ar, fontes de água, condições topográficas e geológicas etc.).

Renda Diferencial I & Renda Diferencial II

Devido a esses fatores, os solos têm diferentes lucratividades. Podemos imaginar dois tipos de solo com diferentes lucratividades. No solo de menor lucratividade, o custo de produção (P) será capital constante (C) mais capital variável (V) mais lucro médio (L): P = C + V + L. Neste tipo de solo não há espaço para a Renda Diferencial. Nenhum capitalista iria arrendá-lo, pois isso implicaria em um investimento cujo retorno ficaria abaixo do lucro médio, posto que nenhum proprietário fundiário faria um arrendamento de custo zero, pois aí já não seria um negócio mas uma iniciativa filantrópica.

No segundo tipo de solo, teremos a geração de um sobrelucro, que é uma renda diferencial (D), e o custo de produção será: P = C + V + L + D. O capitalista teria garantido o lucro médio de seu investimento e a renda diferencial seria apropriada pelo proprietário fundiário a título de arrendamento da terra.

O aumento da demanda pode forçar uma alta dos preços e, nesse caso, o terreno que estava improdutivo pode se tornar arrendável, pois se criou o condicionante que faltava para que ele gerasse uma renda diferencial. Essa é a Renda Diferencial I (D1).

Até aqui, vimos o que aconteceria com a expansão da área cultivada (exploração extensiva). Mas também pode ocorrer que a expansão da produção se faça sem expansão da área cultivada, e sim pelo incremento da produtividade do trabalho (exploração intensiva): é o que constitui a Renda Diferencial II (D2). Assim, o custo de produção seria P = C + V + L +D1 + D2.

Renda Absoluta

Mas, além das Rendas Diferenciais I e II, Marx aponta ainda para a Renda Absoluta (A), que é um imposto devido ao monopólio da terra, o qual se cobra de toda a sociedade. É uma “renda pura de monopólio”. Ela se origina no pior tipo de solo, mas se reflete em todos os outros. Na agricultura, o que determina o preço médio é a terra de pior qualidade. E, então, P = C + V + L + A, para o pior tipo de solo, e P = C + V + L + A + D nos demais tipos de solo.

A exploração da terra-matéria faz-se com uma composição orgânica do capital baixa, ou seja, “o capital agrícola mobiliza mais trabalho do que uma parte de igual grandeza do capital não agrícola”, o que torna possível uma taxa de lucro superior ao lucro médio da economia. Marx observa que “o papel dessa renda absoluta é ainda mais importante na indústria extrativa propriamente dita, na qual desaparece completamente um elemento do capital constante, a matéria-prima, e, excetuando os ramos em que é fundamental a parte que consiste em maquinaria e em outras formas de capital fixo, predomina sempre a composição mais baixa do capital.” E complementa: “Precisamente aqui, onde a renda parece ser derivada exclusivamente de um preço monopólico, exigem-se condições de mercado muito favoráveis para que as mercadorias sejam vendidas por seu valor ou para que a renda se torne igual a todo o excedente do mais-valor da mercadoria acima de seu preço de produção.” Exemplificando: “Esse é o caso, por exemplo, da renda de pesqueiros, cantarias, bosques naturais etc.”.

Marx argumenta com o caso do bosque natural. “A renda absoluta explica alguns fenômenos que, à primeira vista, fazem aparecer a renda como sendo devida a mero preço monopólico. Tomemos, por exemplo, o proprietário de um bosque que existe sem nenhuma intervenção humana – ou seja, não como produto de reflorestamento – e digamos que esse bosque esteja localizado na Noruega, para mantermos o exemplo de Adam Smith. Se o proprietário recebe uma renda de um capitalista que manda derrubar árvores para, por exemplo, atender à demanda inglesa ou se ele próprio manda derrubá-las na qualidade de capitalista, ele receberá uma renda maior ou menor em madeira, além do lucro sobre o capital adiantada. No caso desse produto puramente natural, isso parece ser um simples adicional de monopólio. Mas, na verdade, o capital consiste aqui quase exclusivamente em capital variável, desembolsado em trabalho, mobilizando também uma quantidade de mais-trabalho maior que outro capital da mesma grandeza. No valor da madeira, há, portanto, um excedente maior de trabalho não pago, ou de mais-valor, do que no produto de capitais de composição mais elevada. Por isso, a madeira pode pagar o lucro médio e ainda proporcionar ao proprietário do bosque um excedente significativo em forma de renda. Ao contrário, podemos supor que, dada a facilidade de expansão da derrubada de árvores, isto é, a rapidez do aumento dessa produção, a demanda tem de aumentar de modo muito considerável para que o preço da madeira se equipare a seu valor e, com isso, todo o excedente de trabalho não pago (acima da parte que cabe ao capitalista como lucro médio) retorne ao proprietário em forma de renda.”

De outra feita, Marx arrazoa: “Na medida em que a renda agrícola propriamente dita é mero preço monopólico, esse solo só pode ser pequeno – do mesmo modo que, nesse caso, a renda absoluta – sob condições normais, qualquer que seja o excedente do valor do produto sobre seu preço de produção.” E prossegue: “A natureza da renda absoluta consiste, portanto, no seguinte: capitais de mesma grandeza em diferentes esferas da produção produzem, conforme sua distinta composição média, com a mesma taxa de mais-valor ou a mesma exploração do trabalho, diferentes massas de mais-valor. Na indústria, essas diferentes massas de mais-valor se nivelam para formar o lucro médio e se encontram uniformemente distribuídos entre os diferentes capitais como alíquotas do capital social.” Concluindo: “Quando a produção necessita de terra, seja para a agricultura, seja para a extração de matérias-primas, a propriedade do solo impede esse nivelamento dos capitais investidos na terra e retém uma parte do mais-valor que, de outro modo, tomaria parte no nivelamento para formar a taxa geral de lucro.”

Vale ter presente que “onde quer que haja renda, a renda diferencial se apresenta por toda parte e obedece sempre às mesmas leis que a renda diferencial agrícola”.

Preço da terra

Sobre a relação entre a renda do solo e o preço da terra, Marx observa: “Na investigação do preço da terra, feita a seguir, abstraímos de todas as flutuações da concorrência, de todas as especulações fundiárias e também da pequena propriedade fundiária, na qual a terra constitui o principal instrumento dos produtores, que, por isso, precisam comprá-la a qualquer preço.
I. O preço da terra pode subir sem que aumente a renda:

  1. em virtude da mera queda da taxa de juros, o que faz com que a renda seja vendida mais cara e, por conseguinte, aumente a renda capitalizada, o preço da terra;
  2. porque aumentam os juros do capital incorporado ao solo.
    II. O preço da terra pode subir porque a renda aumenta.”

Sobre o preço da terra propriamente dito, Marx enuncia: “O preço da terra não é senão renda capitalizada e, por conseguinte, antecipada.” Isso significa que o preço da terra será diretamente proporcional à renda anual média e inversamente proporcional à taxa de juros médio. Por exemplo, para uma renda anual de 300 dólares e juros de 4% ao ano, o preço da terra seria de 300 * 100 / 4 = 7.500 dólares. E Marx prossegue com as seguintes considerações: “Se a agricultura é explorada ao modo capitalista, de forma que o proprietário da terra recebe apenas a renda, e o arrendatário não paga pela terra a não ser essa renda anual, então o capital investido pelo próprio proprietário fundiário na compra da terra é evidentemente, para ele, um investimento de capital portador de juros, mas que não guarda absolutamente nenhuma relação com o capital investido na própria agricultura. Não forma parte nem do capital fixo aqui em funcionamento nem do capital circulante; pelo contrário, só garante ao comprador um título quando recebe a renda anual, mas não tem absolutamente nenhuma relação com a produção dessa renda. O comprador paga o capital precisamente àquele que lhe vendeu a terra, e o vendedor, em contrapartida, renuncia a sua propriedade sobre a terra. Esse capital, portanto, já não existe como capital do comprador, pois este já não o tem; já não pertence, pois ao capital que ele pode investir de algum modo no próprio solo. Se comprou a terra caro ou barato, ou se a recebeu de graça, é algo que não altera em nada o capital investido pelo arrendatário na exploração, e em nada modifica a renda, mas apenas o seguinte: que esta agora lhe apareça como juros ou não juros ou, respectivamente, como juros altos ou baixos.”

Escravismo colonial

Focalizando a subsunção formal do escravismo colonial ao capitalismo europeu, Marx razoa: “O preço que se paga pelo escravo não é outra coisa senão o mais-valor ou o lucro, antecipado e capitalizado, a ser extraído dele. Mas o capital que se paga na compra do escravo não pertence ao capital por meio do qual se extrai do escravo o lucro, o mais-trabalho. Pelo contrário. É capital que o senhor de escravos alienou, dedução do capital que ele detém na produção real. Não existe mais para ele, exatamente como o capital investido na compra da terra não existe mais para a agricultura. A melhor prova está no fato de que ele só volta a ter existência para o senhor de escravos ou para o proprietário fundiário quando ele volta a vender o escravo ou a terra. Então se produz a mesma situação para o comprador. A circunstância de que ele tenha comprado o escravo ainda não o capacita a, sem mais nem menos, explorá-lo. Só o capacita a isso um capital posterior, que ele emprega na própria economia escravista.”

Forma econômica & forma do Estado

Para encerrar este esboço introdutório, nos valemos do seguinte excerto de “O Capital” (extraído do “Capítulo 47”,“Gênese da renda fundiária capitalista”), que sintetiza a metodologia marxista:

“A forma econômica específica em que o mais-trabalho não pago é extraído dos produtores diretos determina a relação de dominação e servidão, tal como esta advém diretamente da própria produção e, por sua vez, retroage sobre ela de modo determinante. Nisso se funda, porém, toda a estrutura da entidade comunitária, nascida das próprias relações de produção; simultaneamente com isso, sua estrutura política peculiar. Em todos os casos, é na relação direta entre os proprietários das condições de produção e os produtores diretos – relação cuja forma eventual sempre corresponde naturalmente a determinada fase do desenvolvimento dos métodos de trabalho e, assim, a sua força produtiva social – que encontramos o segredo mais profundo, a base oculta de todo o arcabouço social e, consequentemente, também da forma política das relações de soberania e de dependência, isto é, da forma específica do Estado existente em cada caso. Isso não impossibilita que a mesma base econômica – a mesma no que diz respeito às condições principais -, graças a inúmeras circunstâncias empíricas de diversos tipos, condições naturais, raciais, influências históricas externas etc., manifeste-se em infinitas variações e matizes, que só se podem compreender por meio de uma análise dessas circunstâncias empíricas.”


Agradeço aos colegas com os quais empreendi a leitura de “O Capital” e que leram este artigo antes da publicação: Zé da Lata (economista), Janice (assistente social), Ary (médico sanitarista) e Silas (historiador). Meu agradecimento especial ao Silas, que contribuiu com uma crítica muito bem fundamentada.

Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

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