A Roda Viva do Chico Buarque

“Roda Viva” evoca, talvez, a roda da fortuna ao sabor das moiras que tecem, dobam e podam o fio do destino, pontuando o nascimento, o crescimento, o azar, o amor, o êxito, a frustração, a doença, a morte de cada um de nós. É o que poderia estar sendo dito nestes versos: “A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda viva / E carrega o destino pra lá”.

Quiçá faça referência à roda viva do cotidiano na megalópole, à roda que tritura, ao ritmo alucinante do corre-corre diário, à luta pela sobrevivência na selva de pedra, ao salve-se quem puder da concorrência, às apostas na loteria do mercado. É o que se poderia depreender deste fragmento: “Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu”.

Pode ser que reviva as imagens fabulosas, os encantamentos e os espantos da infância, ou o acontecimento do primeiro amor. É o que nos poderia sugerir o refrão: “Roda mundo, roda-gigante / Rodamoinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração”.

Quem sabe, seja apenas um canto de desalento: “No peito a saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda viva / E carrega a saudade pra lá”. (Note-se que cativa tem aqui duplo sentido: saudade que está prisioneira ou saudade que seduz?)

E é essa multiplicidade de leituras que nos permite fruir a letra da música tantos e tantos anos decorridos.

Mas “Roda Viva” também pode ser recepcionada com seu pano de fundo – o contexto político e cultural da véspera de meia-oito –, como mimésis do espírito de seu tempo.

Que tempo era esse? A sociedade se recuperava do golpe militar de 64. Havia uma espécie de nostalgia da liberdade. A música popular brasileira explodia nas paradas de sucesso com Nara Leão e Elis Regina. O teatro encenava musicais e peças engajadas como “Opinião”, com Maria Bethânia cantando “Carcará” (“pega, mata, come”), e “Liberdade, Liberdade”, com Paulo Autran. O movimento cineclubista recuperava público para o Cinema Novo, que questionava o golpe com “O Desafio”, de Paulo César Sarraceni. Na poesia, Thiago de Mello desafiava o regime com “Faz Escuro Mas Eu Canto”, e João Cabral de Melo Neto consagrava a temática social com “Morte e Vida Severina”. Era como se fosse uma retomada da efervescência política e cultural do início dos anos 60 – em condições históricas adversas. E esse ambiente preparava o movimento contestatório de 68. 

Que diz a letra de 1967? Que houve um tempo feliz, emocionante: “Roda mundo, roda-gigante / Rodamoinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração”. Mas que esse tempo sofreu uma interrupção abrupta, castradora: “O samba, a viola, a roseira / Um dia a fogueira queimou / Foi tudo ilusão passageira / Que a brisa primeira levou”. E que isso gera inconformismo: “A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir / Na volta do barco é que sente / O quanto deixou de cumprir”.

Aqui, como nas fogueiras da inquisição ou nas queimadas de livros na Alemanha hitlerista, aqui também “um dia a fogueira queimou”. E a interdição se instalou: “Não posso fazer serenata / A roda de samba acabou”. Não obstante, a ousadia da resistência marca presença: “A gente toma a iniciativa / Viola na rua, a cantar”. E é reprimida: “Mas eis que chega a roda viva / E carrega a viola pra lá”. 

Assim, por esse viés, “Roda Viva” pode ser apreciada como um lamento que capta a subjetividade de um momento histórico.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *