
La vida es una tómbola
de noche y de día.
La vida es una tómbola.
¡Y arriba y arriba!
Manu Chao1
Um adolescente que, na escola, cursa a disciplina “educação financeira”, talvez trabalhador de aplicativo, aposta na jogatina financeira sonhando em enricar. A grande pilhagem que significou a “criptoestafa” $Libra, com a participação do presidente argentino Javier Milei como garoto-propaganda, “garante moral” da operação, põe em foco essa forma de espoliação. Em 6 horas, um pouco mais de 74 mil pessoas perderam 286 milhões de dólares.
É verdade que as “pirâmides de dinheiro” em geral e as “pirâmides financeiras” em particular não são nada de novo. As novas tecnologias propiciam uma escala e um alcance territorial de operação que eram impensáveis alguns anos atrás. Os marcos regulatórios derretem e é muito difícil pegar os responsáveis. Podemos reconhecer nessas práticas novíssimas formas de espoliação.
Tive que procurar o significado de “esquema Ponzi”, agora parte do vocabulário corrente dos argentinos. Uma operação fraudulenta de investimento em pirâmide que promete rendimentos extraordinariamente altos. Bem, num desenho rudimentar, todo o sistema do capital funciona como uma tômbola. Muitos apostam riquezas que extraem direta ou indiretamente de trabalhadoras e trabalhadores. Poucos ganham e concentram o montante da riqueza apostada por aqueles “muitos”. Ganham por ter sorte, por “mérito”, por uma legislação que os beneficia especialmente, por meios violentos… Em todo caso, o “jogo” supõe uma crença, além do temor que infunde a força do oponente. Crença nas regras do jogo. Ainda que seja difícil acreditar quando as regras do jogo não são sólidas, ou se são tão complexas, tão difíceis de entender. (Peço perdão ao velho barbudo por tanto reducionismo.)
Ultimamente, nós que somos apenas trabalhadoras e trabalhadores ouvimos insistentemente vozes que nos aconselham, que nos dizem que também podemos apostar dentro do “jogo” capitalista. Que temos um “capital”: nossa força de trabalho. E que podemos apostá-lo no “empreendedorismo”. E a gente acredita… para não cair na depressão.
Voltando ao escândalo das criptomoedas $Libra, hoje filtraram um vídeo da entrevista não editada de Javier Milei ao jornalista Joni Viale, da emissora de televisão TN. O episódio confirma o que todos suspeitamos: quem elabora as perguntas é o próprio presidente e seus assessores, que decidem retirar uma pergunta que deixaria o presidente, cuja estratégia oscila entre se apresentar como presidente e se apresentar como cidadão, mal no retrato2[2]. Isso aconteceu porque, ainda dentro dessas operações, o material passa pelas mãos de trabalhadores ou trabalhadoras. Sempre há um camareiro que eles tratam feito um móvel, mas que escuta. Um operador de som, editor de imagem… não dou mais exemplos pra não entregar os compas. Não há como se blindar de todo.
Porém, o escândalo afeta quem acredita possível um “capitalismo sério”, como gosta de dizer Cristina Fernández de Kirchner, com marcos regulatórios e transparência… Enquanto isso, o simulacro que foi em nossa região o “Estado republicano” está derretendo. Já não há sequer um chão sólido nesse modelo de acumulação global no qual se firmar.
Por outro lado, já não estamos na época em que os Estados, essas máquinas de produzir ficção, segundo o escritor Ricardo Piglia, formulam um relato fixo. Somos bombardeados minuto a minuto por relatos fragmentados e contraditórios. Sem tempo para cotejar, elaborar e reflexionar, esquecemos hoje a narrativa de ontem. As novas tecnologias que modelam nossa recepção são base material desse “antimilagre”. Cada vez mais nos chegam imagens e mensagens com letras de titular catástrofe: “URGENTE!!! URGENTE!!!”. Distraem, concentram nossa atenção por um milésimo de segundo, até que uma nova mensagem, ainda mais comovente, superpõe-se e nos faz esquecer a anterior. É mais difícil elaborar um contrarrelato coletivo nesse solo pantanoso. Dessa maneira, reduzem-nos à passividade do indivíduo perplexo. Jornalistas, escritores militantes como Rodolfo Walsh, souberam armar o contrarrelato a partir de testemunhos de homens e mulheres que se atreviam a um pequeno gesto de liberdade com a palavra e com o corpo. Sem arriscar o corpo, não há contrarrelato.
Manu Chao diz: “Se eu fosse Maradona, frente ao gol, nunca erraria”. Para o bem ou para o mal, não somos Maradona frente ao gol. Em todo caso, assim como outras e outros compas, compartilho estas reflexões. Com a nada secreta esperança de encontrar interlocutores que parem a bola e levantem a cabeça para olhar para quem fazer o passe, escrevo estas linhas.