As ameaças autoritárias cessaram – ao menos por ora. O negacionismo continua, embora mais discreto, em meio ao genocídio promovido pela presidência e alguns governadores e prefeitos, sob a pandemia. A agitação política da base de extrema-direita está relegada a segundo plano. Bolsonaro tenta sobreviver no poder. Depois de ser enquadrado decisivamente pelo Judiciário, após tantas derrotas no Legislativo, acabou descobrindo o que sempre soube: a burguesia o apóia superficialmente. Assim, voltou a ser o que sempre foi, um político tosco e fisiológico, não um líder “ideológico” do reacionarismo, persona que Bolsonaro assumiu há cerca de cinco anos atrás. (https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/07/02/bolsonaro-tomou-maracugina.htm)
Talvez agora parte da esquerda e do campo popular encare Bolsonaro não pelo seu valor de face, mas pelo que de fato é. Muitos – mas cada vez menos – insistirão na narrativa lulista de que vivemos sob o fascismo ou uma ditadura. Antes Bolsonaro era fascista porque não “negociava” com ninguém, agora será fascista por negociar com o Centrão. Antes o PSL era um partido fascista… depois que Bolsonaro o abandonou, fascista passou a ser a Aliança pelo Brasil, que sequer se viabilizou ainda…
Mas enquanto derrotistas persistem em seu mundo das ideias – de um progressismo indignado (de “classe média”, como o lulismo adjetivaria, se fosse capaz de autocrítica), correlato do imobilismo da ex-esquerda reformista – a realidade se impõe. O ex-ministro da deseducação Weintraub fugiu do país com medo de ser preso. Ele sabe, melhor do que nós, não haver iminente golpe militar e muito menos ameaça fascista no Brasil. Se acreditasse na fantasia de uma onda conservadora, continuaria ativo e sentindo-se seguro por aqui.
Nada mais sintomático da mudança de Bolsonaro, reveladora de sua verdadeira essência, é a reinvenção do Ministério das Comunicações, agora nas mãos de parlamentar do Centrão que, obviamente, foi da base de apoio ao lulismo quando no governo federal. Ainda mais pedagógico é este fato se dar no mesmo dia em que foi desmontado o ridículo “acampamento dos 300” (na verdade, uns 30) da extrema-direita em Brasília. Na ocasião, a PM do Distrito Federal não se comportou como milícia bolsonarista – coisa que nem se provou existir até agora, é bom frisar (as milícias germinaram e se avolumaram no Rio de Janeiro anos antes da atual conjuntura, como se sabe).
O “fascismo” brasileiro não é fascismo pois a mobilização popular que lhe seria intrínseca não consegue se configurar na formação social nacional, onde as elites políticas preferem um bonapartismo necessariamente desmobilizador e clientelista. Nossa experiência histórica sempre apontou para esta direção. Vargas, quando se tornou ditador com o Estado Novo, colocou na ilegalidade (além de ter prendido, exilado, torturado e assassinado) não só nós comunistas, mas também integralistas, a Frente Negra Brasileira, entre outros movimentos e organizações.
O elitismo burguês e o caráter fundamentalmente anti-popular do poder nas sociedades extremamente desiguais como as da periferia do capitalismo costumam inviabilizam o caminho fascista na política, que fica restrito ao plano simbólico da agitação cultural, especialidade performática do bolsonarismo e de outros círculos sociais.
Quando nos iludimos com a verborragia de Bolsonaro, acreditamos na aparência que ele quer nos transmitir, não em sua essência, a qual depende, inclusive, da correlação de forças no plano político. O indivíduo sempre nos interessa menos que sua efetividade social. Sendo esta medida com rigor, fenômenos deixam de ser esquecidos e comparações com outros acontecimentos históricos colocam as coisas nos seus devidos lugares. Por exemplo, Bolsonaro mais latiu que mordeu em relação ao Supremo Tribunal Federal, mas quem desobedeceu a uma ordem judicial sua foi Renan Calheiros quando na presidência do Senado em 2016. Sem precisar fazer ameaças ou posar de ditador – nem por isso foi chamado de fascista, até porque o grande “mal” da época era o Judiciário…
Isto tudo não impede que se analise a novidade do bolsonarismo (como em https://piaui.folha.uol.com.br/materia/uma-esfinge-na-presidencia/), mas sem superestimá-lo. Pois a identificação com o fascismo só tem atrapalhado a compreensão do atual ciclo político bolsonarista como sucessor da hegemonia política lulista. Ademais, a ex-esquerda adere a tal narrativa com a famigerada intenção de diluição da esquerda e dos movimentos populares numa frente ampla e democrática que defenda as instituições burguesas em detrimento dos interesses dos trabalhadores. Esta postura liquidacionista, que hoje ameaça o PSOL, é incorporada por Boulos e pela aproximação com o PT. Tal polêmica possui precedentes históricos no séc. XX (a respeito, veja-se: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/O-debate-sobre-a-palavra-fascismo-toma-um-novo-rumo/52/47810).
O uso indiscriminado da terminologia em torno do fascismo, ainda que manejado por certo marxismo, acaba levando água para o moinho do liberalismo. Para este, qualquer protesto popular mais ou menos incisivo contra autoridades e instituições – que nós da esquerda continuamos a defender – deve ser censurado e classificado como fascista.
O transformismo por que passaram certas correntes do PSOL (Insurgência, Resistência,
LSR, entre outras – afora a velha direita psolista), tornadas satélites do lulismo, deixando de lado qualquer perspectiva revolucionária e socialista, provoca essa incapacidade de analisar o bolsonarismo e compreender sua atual fraqueza desnudada pelo Centrão. Da mesma forma não percebem a profunda fragmentação e desorientação do campo político burguês no Brasil (vide a oposição que a grande mídia faz ao governo federal). E não crêem na capacidade de luta dos setores populares, como as torcidas organizadas e os entregadores de aplicativos, hoje muito à frente de supostas vanguardas marxistas – cada vez mais recuadas e refratárias à politização radical das massas, escondendo-se atrás de falsas avaliações de conjuntura (um bom exemplo em direção inversa: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589533-sabemos-os-limites-desta-direita-e-devemos-pensar-no-dia-seguinte-a-ela-entrevista-com-raul-zibechi).
Desse modo, não vislumbram como o bolsonarismo copia e deturpa o repertório político do lulismo e da esquerda, de múltiplas maneiras: a “gripezinha” de Bolsonaro lembra a “marolinha” de Lula presidente, Carla Zambelli plagia os 300 deputados picaretas do Lula dos anos 1990 (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/06/17/zambelli-chora-e-ameaca-derrubar-cada-um-dos-ministros-do-stf.htm), para não falarmos dos escrachos, dos acampamentos, dos atos com carros de som, etc.
É preciso que a classe trabalhadora mais intelectualizada (parte da “classe média”, se esta existisse) deixe de empoderar Bolsonaro, superando a espécie de Síndrome de Estocolmo que manifesta em relação a ele. Caso contrário, continuará olhando a realidade com uma lente distorcida, visualizando uma onda conservadora que consiste em mera reação defensiva, a tentar segurar estátuas que são derrubadas mundo afora pelos movimentos negros – que chegam a propor o fim das polícias.
Igualmente, no Brasil as Forças Armadas perdem cada vez mais prestígio e muita gente se pergunta para que as temos. Mais do que nunca, é hora de radicalizar, papel inescapável que cabe a nós da esquerda. As lutas e as ruas já estão sendo retomadas pelos trabalhadores. Em defesa da vida, é necessário derrubar já Bolsonaro e Mourão.