Em diferentes países da América Latina vemos avançar, paralelamente, por um lado, a transnacionalização das organizações narcotraficantes e a diversificação de seus ramos de ação, e, por outro lado, iniciativas de militarização de territórios de extração. Não se trata simplesmente do uso do argumento do narcotráfico, e da violência que ele inflinge à população, como justificativa perante a opinião pública para a militarização. Também não se trata apenas de os grupos ilegais cumprirem o papel de recrutadores da força de trabalho excedente e fornecedora de serviços ali onde o Estado não cumpre esse papel. Tanto a militarização como a ação de grupos ilegais sobre os territórios exercem uma economia do terror sobre os povos para impor a pilhagem necessária ao extrativismo, que, como afirmam Emiliano Terán-Mantovani e Martín Scarpacci, opera num odo de acumulação “entrelaçado”, no qual se combinam formas legais e ilegais.1 Esse processo, que vem se acentuando nos últimos anos, precipitou-se neste ano de 2024, com uma série de iniciativas dos Estados da região. Vemos Estados e segmentos legais e ilegais das cadeias extrativas acertando o passo de uma coreografia de morte.
Na cidade de Rosário, província de Santa Fe, Argentina, nas margens do rio Paraná, os agrupamentos narcos, que vêm agindo já por décadas, com ramificações na polícia e em vários órgãos do Estado, lançaram no início de março ataques contra as pessoas comuns, como trabalhadores do transporte ou de postos de gasolina. Aterrorizam a população, que evita sair de casa. Supõe-se que a passagem da administração da província de Santa Fe para políticos mais afinados com o atual governo nacional, em dezembro do ano passado, deixou sem efeito acordos anteriores, e que os grupos delituosos utilizam esses recursos para pressionar o novo governo. O presidente Javier Milei e sua ministra de Segurança Patricia Bullrich acordaram com Maximiliano Pullaro, governador de Santa Fe, a formação de um “comitê de crise” e a participação das forças armadas no combate ao narcotráfico. Esta participação coincide com a “doutrina das novas ameaças”, que os Estados Unidos impulsionaram para substituir a “doutrina de segurança nacional”, justificativa ideológica para o protagonismo das forças armadas durante as ditaduras do Cone Sul2. Paralelamente a isto, a Autoridade Geral de Portos da Argentina assinou um convênio para a instalação do Corpo de Engenheiros do exército estadunidense na hidrovia do Paraná, por onde passa grande parte do fluxo de commodities agrícolas do país3.
Patricia Bullrich já tinha afirmado em janeiro que cresceu a delinquência no Chile e que a maior parte da droga entra na Argentina pela fronteira com o país vizinho.4 E apontou dois segmentos da fronteira que seriam porta de ingresso para a droga: um, no Norte, coincide com a área de extração de lítio e de outros minérios; o outro, na Patagônia, coincide com as resistências dos Mapuches, argentinos e chilenos ao extrativismo. O governo chileno rejeitou tais afirmações da ministra argentina; porém, o presidente Gabriel Boric convocou, no início de fevereiro, o Conselho de Segurança Nacional para enfrentar o crime organizado. Seu objetivo era consultar a propósito de uma reforma para a defesa da “infraestrutura crítica” que destina o resguardo de zonas estratégicas e seus perímetros aos militares.5
O presidente Gabriel Boric vem renovando a militarização da Araucania, adotada pelos governos que o precederam, para combater a resistência do povo Mapuche ao extrativismo florestal e ictícola. Agora, quer estender essa militarização a todo o território chileno, com a justificativa de combater o crime organizado, especialmente protagonizado pelo Tren de Aragua. Nascida nos anos ’80, na penitenciária de Aragua, na Venezuela, esta organização diversificou suas atividades econômicas e se expandiu geograficamente. No Chile, assim como no Peru, além do tráfico de drogas, dedica-se a serviços de pistolagem, sequestros extorsivos, trata de migrantes ilegais para prostituição e para trabalho agrícola.6 A presença desta organização é mais pronunciada nas regiões centrais e no Norte.
Em toda a América Latina, as práticas de “segurança do presidente de El Salvador Nayib Bukele são apresentadas pelas direitas como modelo de tratamento duro com o crime organizado. Redução de direitos civis, impunidade para os “excessos” policiais, construção de penitenciárias de alta segurança com regimes desumanizantes recebem elogios aqui e ali.
No entanto, essas iniciativas de militarização precipitaram-se no continente desde 9 de janeiro, quando o presidente de Equador Daniel Noboa decretou estado de emergência. Isso aconteceu depois de uma onda de ataques coordenados das organizações criminosas Los Lobos e Los Choneros. Na letra do decreto, Noboa qualifica essas organizações como “terroristas e atores não estatais beligerantes”, o que habilitava as forças armadas para agir na segurança interna. Tudo isso foi precedido por uma diversificação das atividades desses grupos e controle de municípios, como aconteceu na província de Esmeraldas, onde se cobram “vacinas” (impostos extorsivos)7. Los Lobos diversificou suas atividades: ocupa-se da extração de ouro, explorando diretamente 20 minas, extorquindo empresas que exploram outras 30 e controlando 40 grupos de garimpeiros ilegais.8 Essas transformações foram respostas à reorganização das rotas do narcotráfico, como resultado das rápidas mudanças na demanda do mercado consumidor estadunidense, que vem preferindo as drogas sintéticas. Essas mudanças vêm afetando também o narcotráfico na Colômbia e têm propiciado alianças com cartéis mexicanos. Lembremos, porém, que, em 20 de agosto de 2023, os equatorianos pronunciaram-se num referendo contra a exploração de petróleo numa área de floresta, na fronteira com o Peru. No contexto do estado de emergência, o presidente Noboa militarizou Cotopaxi para favorecer uma empresa mineira canadense, a cuja operação os camponeses da região resistem.
No Brasil, narcotraficantes e milícias, formadas por policiais aposentados e com vínculos com agentes policiais da ativa, disputam o controle de territórios do estado do Rio de Janeiro, em atividades que vão da exploração de serviços de gás, luz, internet, até extorsões de diferentes naturezas. O Primeiro Comando da Capital, que surgiu como uma organização de apoio mútuo dentro da penitenciária de Taubaté, no estado de São Paulo, na década de 90, já tem ramificações no Paraguai, e, além do tráfico de drogas e de armas, consolidou-se no segmento ilegal da cadeia de extração de ouro no estado amazônico de Roraima.9 A Amazônia brasileira está militarizada desde a ditadura iniciada e 1964. Fronteira dinâmica do extrativismo mineral e agrícola, manteve-se sob controle das forças armadas ainda depois da transição para o governo civil, na década de 80. Depois da ação propagandística do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em fevereiro de 2023, para expulsar os garimpeiros ilegais da Terra Indígena Yanomami, tudo voltou a ser como era d’antes, com o retorno dos garimpeiros, o controle da atividade e logística pela organização criminosa e o olho lerdo… ou ávido dos militares. Esses grupos ilegais atravessam a fronteira da Guiana e da Venezuela com muita facilidade, obtendo na Guiana o mercúrio necessário para a atividade aurífera, que assim contamina águas e solos.
Os militares estão sendo convocados para a defesa da atividade extrativa. Às vezes, sendo implicados em seus benefícios econômicos. Assim acontece no Chile com a extração de cobre desde o governo de Augusto Pinochet. Assim acontece na Venezuela desde 2018, com o decreto de Nicolás Maduro que entrega às Forças Armadas Bolivarianas a comercialização dos minérios extraídos no Arco do Orinoco. Assim acontece com a logística de escoamento de commodities, como acontece no México desde que Andrés López Obrador propiciou a criação de uma empresa pelas forças armadas para a construção e exploração de infraestrutura logística, justamente com o argumento de que os militares precisam de recursos extras para combater os cartéis da droga. Ao imbricar as instituições militares nessas atividades, as converte em questões de segurança nacional, colocando-as sob o véu do segredo militar. Quer dizer, retirando de suas operações o caráter público.10
Os povos dos territórios estão no fogo cruzado, tentando sobreviver a esta dança macabra. Continuam plantando, se reunindo e se defendendo.
Referências
- Terán-Mantovani, E.; Scarpacci, M. (2024). Economías criminales, extractivismo y acumulación entrelazada: un análisis multiescalar de los nuevos escenarios latinoamericanos. URVIO. Revista Latinoamericana De Estudios De Seguridad, (38), 8–31.
- Ver: https://www.pagina12.com.ar/720312-el-gobierno-quiere-reformar-la-ley-para-implicar-a-las-fuerz
- Ver: https://www.pagina12.com.ar/720327-militares-de-estados-unidos-se-instalaran-en-la-hidrovia
- Ver: https://www.theclinic.cl/2024/01/14/patricia-bullrich-drogas-argentina-chile/
- Ver: https://www.df.cl/economia-y-politica/gobierno/boric-encabeza-cosena-para-analizar-proyecto-de-infraestructura-critica
- Ver: https://www.theclinic.cl/2023/07/07/tren-de-aragua-investigadora-explica-el-avance-de-la-banda-criminal-y-dice-que-encontraron-en-chile-un-espacio-para-posicionarse-con-exito/
- Ver: https://vientosur.info/capitalismo-y-narcotrafico-en-ecuador-dos-caras-de-una-misma-moneda/
- Ver: https://www.codigovidrio.com/code/los-lobos-extraen-oro-de-20-minas-bajo-su-control-en-azuay/
- Pereira Chagas, R. (2024). Narcogarimpo: las afinidades electivas entre los frentes de minería ilegal y la expansión del narcotráfico en la Amazonía brasileira. URVIO. Revista Latinoamericana De Estudios De Seguridad, (38), 32–48.
- Ver: https://desinformemonos.org/hacia-un-nuevo-papel-para-las-fuerzas-armadas/