Saindo da sala de cinema, depois de assistir a Ainda estou aqui (Salles, 2024)1, o amigo Renato Mendes disse: “Tenho a sensação de que faz mais de 40 anos que assistimos ao mesmo filme sobre a ditadura”. Repasso mentalmente os filmes a que assisti desde Pra frente, Brasil (Farias, 1982)2, para entender o que meu amigo quis dizer. Lembro-me de um documentário um tanto fora da curva, O dia que durou 21 anos (Tavares, 2013)3. Fico pensando em O dia em que meus pais saíram de férias (Hamburger, 2006)4. Com focos narrativos em uma dona de casa de classe média (Eunice Paiva, esposa do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido pelos militares em 1971) e em uma criança, respectivamente, partimos do desconhecimento da brutalidade da ditadura, que, aos poucos, vai sendo revelada. Passaram-se décadas de governos civis e a filmografia ainda pretende reconstituir esse olhar de inocência que a classe média perdeu a partir do Ato Institucional nº 5 (AI-5).
O golpe de 1964 dirigiu a repressão aos trabalhadores do campo e da cidade. Florestan Fernandes qualificava as ditaduras da América do Sul como “contrarrevoluções preventivas”. Pretendia-se mudar o padrão de dominação e, para isso, era preciso desarticular previamente qualquer organização que pudesse, por ventura, apresentar alguma resistência a tais mudanças. No caso brasileiro, diferentemente dos outros países da região, a ditadura operaria uma industrialização rápida, cujo carro-chefe seria a indústria automobilística. O Brasil passou, nesses 21 anos, de 30% de população urbana para 85%. Em termos absolutos, 70 milhões de brasileiros migraram do campo para a cidade. Um proletariado jovem e concentrado, sem experiência de lutas sindicais, mas também sem o peso da tradição reformista e pelega, poderia apresentar riscos. O disciplinamento se impôs e a organização da produção sem assembleias dentro dos espaços de trabalho, sem circulação livre dentro das plantas industriais, só podia ser garantida com repressão.
As classes médias urbanas só foram incluídas maciçamente como alvo da repressão a partir de 1968, com o AI-5. O congresso permaneceu fechado por 10 meses e o poder executivo legislou por decreto durante o período. Rubens Paiva, deputado (pelo Partido Trabalhista Brasileiro) cassado em 1964 e autoexilado por nove meses, aparentemente sentiu-se em relativa segurança. O filme começa justamente depois de seu retorno, quando já estava estabilizado, trabalhando como engenheiro civil no Rio de Janeiro. No enredo, a família (casal, quatro filhas e um filho, empregada e até cachorro achado na praia) vive uma vida de comercial de margarina. No entanto, a reconstrução de época (cenários, figurino, trilha sonora) dá verossimilhança à trama. O filme apresenta-nos o cotidiano da classe média intelectual e democrática, em ritmo de bossa-nova: a vida continuava suavemente, não fossem os controles militares que começaram a atingir os jovens brancos, não fosse a repressão aos militantes da luta armada.
No enredo do filme, o personagem de Rubens Paiva acha-se a salvo da repressão. Tanto que, quando a polícia o leva, veste terno e gravata e se despede de sua esposa como se fosse voltar logo. Nunca mais volta, e Eunice, que é a protagonista do filme, desce aos infernos: é detida junto com uma de suas filhas e, já fora da prisão, precisa reorganizar sua vida, percebendo que seu marido não voltará. O roteiro está baseado no romance, de mesmo nome, de seu filho caçula, Marcelo Rubens Paiva. E é a transformação de Eunice e dos filhos a matéria de Ainda estou aqui. Trata-se do drama dos que sobrevivem. Mas o título, em primeira pessoa do singular, refere-se a Eunice, e o tema são seus aprendizados. Num salto temporal, para 1996, vemos uma Eunice advogada e militante das causas indígenas dando uma aula aos jovens, com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, e sendo interrompida pela notícia de que tinha sido emitido o certificado de óbito de seu marido. No desfecho, vemos uma Eunice já idosa, num encontro familiar, sorrindo para a foto e assistindo a um documentário sobre a ditadura.
Em certo sentido, a história retorna ao ponto inicial, com a família reunida num almoço. O drama familiar nos apresenta o novo ciclo dos filhos e netos felizes. Assim, esvai-se a densidade histórica da ditadura empresarial-militar. Ela instaurou um novo padrão de dominação que permanece com governos civis de diferentes cores. As empresas beneficiadas pela ditadura continuaram se beneficiando durante os governos civis. O Estado continua usando a repressão legal e ilegal para manter aterrorizada a crescente população pobre das periferias urbanas e para expulsar a população rural de suas terras, inclusive os povos indígenas, em cuja luta Eunice se engajou. Mas isso não cabe no drama familiar, que reforça o relato recorrente que até a Folha de São Paulo, acusada de ter participado diretamente na repressão da ditadura, ocultando execuções e montagens dos militares5, repete há décadas.
O relato recorrente a propósito da ditadura é aquele que apresenta o longo período como uma ruptura violenta do funcionamento das instituições republicanas, que depois foi restituído. Aqui e ali aparecem sequelas de caráter residual. Para superá-las, seria preciso aprimorar o funcionamento das instituições. Porém, muitas das relações de trabalho e de propriedade, as práticas educativas, a estrutura fundiária, a multiplicidade de instituições policiais e parapoliciais, essas que nos parecem “naturais”, foram instituídas durante a ditadura.
Referências
- Ainda estou aqui, Walter Salles, Brasil, 2024.
- Pra frente, Brasil, Roberto Farias, Brasil, 1982.
- O dia que durou 21 anos, Camilo Tavares, Brasil, 2013.
- O dia em que meus pais saíram de férias, Cao Hamburger, Brasil, 2006.
- Ver: https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/images/CAAF/Empresas_e_Ditadura/InformePublico.pdf
Na vdd o foco principal é a mãe do escritor com Alzaihmer
E temos mesmo a sensação de os filmes são quase os mesmos
Já q o assunto é o mesmo
A ditadura militar q durou 21 anos
Mas agora esse atinge 1 público maior e diferente
O importante foi quebrar o ciclo de filmes de comédia
O filme brasileiro precisa de outros gêneros
E também temos lidos o mesmo texto sempre que o assunto entra em voga. Existem sim produções que relatam outros recortes do período… Marighella, Cabra marcado para morrer, Tatuagem… Ainda estou aqui é sobre um recorte da classe média, assim como os outros citados. Sendo feito por um autor e diretor de classe média, dificilmente faria outro recorte, seria estranho… kkkkk não deixa de ser um bom filme. Um período histórico é sentido de formas diferentes por classes sociais diferentes. Assim foi a ditadura, assim é o capitalismo, assim é a crise climática… não estamos descobrindo a pólvora ao perceber que existem filmes parecidos e nem em apontar esse fato como se fosse um defeito da produção em questão, ou pior ainda, como se o filme pudesse ou devesse restaurar e aprimorar o poder das instituições É possível achar e assistir ao filme que quiser, divertir-se indo ao cinema e reconhecendo o trabalho dos artistas… e também é possível ser menos chato a respeito. Só é difícil chegar no globo de ouro sem influência e dinheiro. Nada de novo.