Alarme de incêndio

A complexidade da conjuntura política avança para a possibilidade de incêndio? As nuances políticas são variadas, contudo, apresentam-se contradições que devem ser trabalhadas no sentido de entendê-las a partir das determinações da luta de classes: alguma é principal e outras são secundárias. Essa mesma cena política possibilita o exame mais detalhado de um conjunto tático em que se pontue a crise, a pandemia, as mudanças na relação de força entre as frações da burguesia, a possível alteração no bloco do poder e, diante dessa análise, constitua o roteiro das prioridades e encontre a linha política para o combate a partir da ordem das contradições.

O inimigo da classe trabalhadora ainda se mantém um passo à frente. O bolsonarismo consegue estabelecer a iniciativa política, dentro e fora do governo, e ainda reafirma o projeto de poder pautado no caos controlado. Essa tática política desenvolve-se no balcão do parlamento, agindo de forma dissimulada, temporariamente, na relação com os cercadinhos da política, mas, continua alimentando – de forma discreta – a ação das hordas racistas e neopentecostais, colocando outros agentes para animar o espetáculo-ódio-neofascismo e reafirmando o conjunto complexo das formas organizativas que permitem o avanço do golpe por dentro das instituições em uma democracia formal em processo de erosão.

Essa estrutura política mantém a forma original da interrelação com a base radical do bolsonarismo, fomenta o incêndio a partir dos agrupamentos paramilitares e anima os grupos fascistas para, em momento de ruptura, agir violentamente no apoio a Ação do autogolpe. O recuo tático no papel midiático do militar-presidente, temporário, enquanto agitador fascista, não se efetivou nas pautas que alimentam o cercadinho da política que ainda clama pelo golpe clássico. Contudo, esse recuo tático, avança para situações imprevisíveis a depender das necessidades políticas do Bolsonaro. 

A conjuntura empurrou o governo para uma ação em que Bolsonaro mitigou as bravatas golpistas e acentuou algumas cartadas no ambiente da articulação política em tempos de pandemia. A prisão do Queiroz foi um dos fatores, mas, também, a falta de apoio para a palavra de ordem “vou intervir” e pela repercussão negativa do dossiê policial-fascista, preparado pelo sistema de informação do governo, contra militantes antifascistas. 

Essa nova forma de agir do militar bonapartista e a operação do governo nos bastidores possibilitaram que uma parte do partido da ordem (Justiça) colocasse de forma desavergonhada o Queiroz em casa, mesmo com nova perspectiva de prisão, a tensão daquele momento dissipou-se. Essa operação, articulação política, não teria sido desenvolvida se o aparato militar-burocrático não tivesse concordância com o recuo tático nos termos aqui colocados. Os militares palacianos continuam com presença protagonista na lógica comandada pelo agitador fascista, ampliam sua presença dentro do governo e operam na defesa dos interesses privados, corporativos e obscurantistas. 

A base social de Bolsonaro tende a aumentar diante da crise e da pandemia, em especial nos setores do comércio varejista, e sua popularidade vai crescer, em particular por conta do temporário aparato do auxílio emergencial. No entanto, é nítido o funcionamento do aparato que constrói o golpe por dentro das instituições. O STF claudica ao não entrar no mérito central da questão Bolsonaro (impedimento), o parlamento confirma um acordão para não tocar em Bolsonaro antes dos dois anos de mandato e os aparatos de coerção estão em processo de insubordinação contra as instituições da democracia formal: PM, setores da PF, militares, áreas do Ministério Público, etc. 

Na disputa conjuntural, a defesa da democracia está sendo configurada e pautada pela abstração da democracia formal. O que não está sendo percebido, na ampla unidade de forças liberais e sociais democratas, é que essa lógica de disputa político-jurídica não consegue ter repercussão social e, algo mais grave, ela já foi ocupada pela ação do agitador fascista, Jair Bolsonaro. Portanto, fica nítido, que se afirmou uma ação política estruturada na anomia que se consolidou com a leniência deliberada da justiça, com a domesticação do parlamento e com a repercussão ampliada pela base social bolsonarista. 

A operação da burguesia interna e seu consórcio internacional, conhecida como lavajatismo, abriu, na ordem jurídica brasileira, comportas para se reinterpretar a constituição e a legalidade institucional, conformando partidos dentro da ordem (polícia, Ministério Público, Poder Judiciário, militares, burocracia de Estado em pacto com a mídia corporativa). Sendo assim, o quadro de deliberada anomia na institucionalidade, fomentado pelo projeto do caos controlado avança enquanto projeto de poder. 

Por outro lado, as contradições entre as frações burguesas ainda determinam a centralidade da crise política, mesmo assim, a articulação bolsonarista está operando para diminuir o litígio e aproximá-las dos projetos de governo. Essa pauta burguesa pode ser manuseada a partir da ação bonapartista efetuada pelo militar-presidente. A grande questão para a burguesia, em especial para as frações que estão fora do bloco no poder, é a dimensão da instabilidade política e da rearrumação do bloco. Nesse confronto intestino entre os setores da burguesia, a Globo representa aquelas frações que estão fora do Bloco no poder, mas, no entanto, ainda pensam de forma unitária quando o tema é a ocupação do Estado como espaço para a revalorização do capital em crise. 

Mas, na ordem da luta política, nem sempre no projeto de caos controlado tudo está sob controle. Algumas questões avançam na crise conjuntural e podem atiçar focos de incêndio na pradaria da política, podendo, inclusive, fugir ao controle do bolsonarismo: a questão do impedimento do militar-presidente depois dos dois anos de mandato, o debate sobre a cassação da chapa no TSE, novas revelações nos processos sobre Fake News, a nova possibilidade de prisão do Queiroz (que é comparsa da família Bolsonaro) e os diferentes escândalos da família Bolsonaro, vir à tona crimes em que os bolsonaros são  suspeitos, porém, não se tem comprovação, podem, a qualquer momento, servir como oxigênio para incêndios.

Na relação de força que baliza a conjuntura, neste momento, fica muito difícil a retirada do Bolsonaro da presidência. A perspectiva de autogolpe continua bem situada no exercício de força que pode impactar a cena política em algum momento de impasse. Nesse roteiro, precisamos ficar atentos para a possibilidade de Bolsonaro, ao consolidar as reformas burguesas no parlamento, trabalhar para afirmar situações de emergência ao estilo de Viktor Orbám (Hungria). 

Os asseclas do governo articulam, na incapacidade e falta de interesse em desenvolver uma política pública de combate ao Covid 19, o extermínio de segmentos da população que são vulneráveis e que se encontram extremamente precarizados na vida social. Mesmo diante dessa falta de ação deliberada, os militares estacionados no Palácio do Planalto, confirmam um conjunto desenfreado de nomeações de militares para cargos comissionados. Ampliando, assim, uma burocracia de Estado que tem iniciativa política para afirmar um projeto antinacional, extremamente corporativo e que opera para que o fundo público lhes conceda privilégios.

O alarme de incêndio destaca-se com o aprofundamento do aparato político do golpe, agora, numa nova perspectiva, caminhando para um acordão de ampla articulação, desmoralizando a democracia formal, usando de argumentos “antisistêmicos” para construir uma orientação política que amplia a erosão da institucionalidade liberal.  

A pauta da conjuntura avoluma-se: é o caso Queiroz, fica nítido a corrupção da família Bolsonaro com a situação criminosa do senador Flávio Bolsonaro, são depósitos na conta da primeira dama, é o descaso com a pandemia, contudo, a proposta de renda mínima do governo pode consolidar crescimento de popularidade no nordeste. Por outro lado, consolida-se uma soldagem no campo militar, inclusive com pesquisas confirmando que as PMs são base de apoio nacional. Na crise social, aumenta a política de desemprego executada pela burguesia (vide a Latam), cresce a expulsão de populações em terras e moradias ocupadas, etc.

Mas, no entanto, não se pode ficar no varejo da cena política. O recuo tático de Bolsonaro é o avanço no reforço político na articulação com o Centrão, na construção das articulações do capital monopolista e na ampliação do bloco no poder. O “novo” pacto, o Acordão, tem como eixo central o projeto de destruição do Estado de mínimas garantias e direitos, esse projeto virá violento no ataque ao conjunto do trabalhador público através da reforma administrativa e outras ações sinalizadas pelos operadores do novo golpe: governo, parlamento e instituições públicas e a leniência da justiça.

A nova fórmula da ação política será interrompida, em alguns momentos, para animar as hordas neofascistas, gerar o espetáculo dos cercadinhos da política, alimentar o caldo de cultura do racismo, machismo, lgtbfobia e o preconceito de classe. Esse será o duplo complexo da ação política por onde trilhará o agitador fascista. Portanto, nesse ambiente, o cenário da resposta política informa que a contradição principal deve ser operada em duas frentes: a construção da frente única da esquerda socialista em articulação estratégica com o bloco proletário para operar na luta contra a destruição do Estado, contra as contrarreformas administrativas e as diversas ações da burguesia interna e, por outro lado, agir e somar-se, com vigor popular, na organização da frente ampla (liberais, sociais-democratas, desamparados do bloco no poder, militares descontentes, etc.) para construir a queda de Bolsonaro-Mourão e Paulo Guedes. 

Contudo, é preciso entender, que essa dupla ação no centro da contradição principal terá que afirmar, na luta concreta, a palavra de ordem que poderá mobilizar a classe trabalhadora e o povo pobre das periferias: a questão do emprego/trabalho.

Milton Pinheiro

Cientista Político, professor de história política da UNEB, integra os conselhos editoriais de várias revistas marxistas, é pesquisador na USP. Autor/organizador de oito livros, entre eles: "Ditadura: o que resta da transição"

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