Estava há meses para começar esta coluna com foco na Educação Popular. A proposta era ser um espaço coletivo de reflexão sobre as práticas organizativas e formativas das classes populares. Entretanto, não foi possível acertar as agendas e o tempo foi passando. Fomos atropelados pela pandemia do coronavírus e tudo ficou em suspenso por uma questão de vida ou morte. Até que neste dia 4 de maio morreu Aldir Blanc, importante compositor, escritor, poeta e cronista. Assim, embalada pela tristeza da enorme perda, resolvi, enfim, dar início à coluna sobre Educação Popular tratando da relevância do compositor na formação de gerações no Brasil.
Todavia, cabe ressaltar o contexto que estamos, de: curva de contágio do coronavírus descontrolada; desconhecimento da real situação sanitária no país; colapso da estrutura de saúde pública em diferentes cidades do país; esgotamento da capacidade funerária em algumas capitais; o Estado, nas diferentes instâncias, demonstrando pouca efetividade em controlar a aglomeração e regular a circulação de pessoas para conter o adoecimento por Covid19; e o presidente da república que vem fazendo demonstrações de deliquência ao incentivar eventos políticos autoritários.
Neste cenário nebuloso do Brasil – que, infelizmente, se destaca mundialmente pela velocidade de contágio da doença -, Aldir Blanc faleceu, aos 73 anos de idade, no Hospital Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, de infecção generalizada e testou positivo para a Covid19. Dia e mês em que também outro ilustre compositor de Vila Isabel, Noel Rosa, morreu de tuberculose (1920- 1937). Blanc se formou em psiquiatria, porém, se dedicou à lucidez das letras para desvendar a loucura da formação brasileira. Está aí o porquê de misturar Aldir Blanc e educação popular.
A Educação Popular se refere tanto às demandas por educação formal pelas classes populares – como analisou Beisiegel (2004) e Spósito (1984) – quanto a processos informais que formam compreensões de mundo a partir dos valores das classes populares – como se refere Paulo Freire (1984). A longa e profunda discussão sobre EP faz diversas referências às práticas educativas realizadas com o povo e para o povo. Cabe ressaltar que esta se constitui como uma matriz formativa dos sujeitos populares a partir das suas necessidades concretas de se organizarem para lutar. Contudo, me deterei, nesta reflexão, na perspectiva do sujeito social que se forma no seu fazer-se – como brilhantemente elaborou Thompson (1997); e através das produções culturais que permeiam o seu cotidiano produzindo sentidos históricos (Thompson, 1998) – como músicas, poesias, ditados, folhetins, entre outros. Portanto, a abordagem é sobre a formação sócio-cultural popular tratada como um complexo mosaico.
Desta maneira, as composições de Aldir, parte relevante da denominada Música Popular Brasileira, constituiram e constituem elementos da formação cultural de milhares, quiçá, milhões de pessoas, não só na chamada classe média, mas também nas classes sociais que vivem na periferias e nos subúrbios. Blanc já escrevia e cumpunha desde a década de 60 para festivais, mas foi na reabertura política do país que teve aumentada a sua ambrangência artística – com “O bêbado e a equilibrista” (1979). A força da emoção da sua morte também vem daí – do período político que se abriu e que agora se encontra em pleno fechamento. A democratização brasileira que se arrastou durante décadas, sem resolver os problemas mais profundos deste país, e que agora decai melancolicamente.
As composições de Blanc chegaram a cerca quinhentas, em parcerias com João Bosco, Maurício Tapajós, Paulo Emílio, Guinga, Moacyr Luz, Cristovão Bastos, entre outros. Seus textos foram publicados no Pasquim, em Colunas de Jornais como O Globo e O Dia e em mais de uma dezena de livros. A sua capacidade sensível, poética e intelectual produziu sínteses e reflexões sobre os momentos políticos do país e os modos de vida dos debaixo . E foi através das vozes principalmente de Elis Regina, Clara Nunes e de seu parceiro João Bosco que suas letras adentraram os espaços populares, através das rádios e dos discos de vinil, sobretudo nos anos 70 e 80 – quando a vida era mais profana e a celebração mais ecumênica. As suas composições chegaram onde os livros e a História universitária não chegavam.
Aldir com crítica profunda, humor afiado e análise aguçada elaborou um conteúdo vasto. Suas letras formaram politicamente gerações, munindo-as de compreensões sobre as contradições deste país, de quem somos, das nossas potencialidades e limites.
– Em “Nação” (com João Bosco e Paulo Emílio) conta o avesso do Brasil:
“Sofrem o bafio da fera / O bombardeio de Caramuru/A sanha d’Anhanguera
Jêje, tua boca do lixo / Escarra o sangue de outra hemoptise /No Canal do Mangue
O uirapuru das cinzas chama/ Rebenta a louça, Oxum-Maré / Dança em teu mar de lama”.
– Retomou personagens populares apagados da história oficial, como João Cândido, liderança da Revolta da Chibata.
“Glória a todas as lutas inglórias / Que através da nossa história / Não esquecemos jamais
Salve o Navegante Negro / Que tem por monumento / As pedras pisadas do cais” – Mestre salas dos mares.
Esta composição foi duramente censurada pela ditadura empresarial-militar e os autores tiveram que mudar trechos e palavras. Como: “Almirante” por “Navegante” – posto não reconhecido ao revolto pela Marinha Brasileira; e o trecho: “Rubras cascatas/ jorravam das costas dos negros/ pelas pontas das chibatas” para “jorravam das costas dos santos / entre cantos e chibatas” – evidenciando o racismo institucional que buscou apagar a realidade dos homens pretos no país.
– Criticou as elites brasileiras, numa linguagem coloquial e com palavras das matrizes indígenas e africanas. E retomou as expressões artísticas de Guimarães Rosa, Tom Jobim, Villa-Lobos e de Oswald de Andrade, em:
“O Brazil não merece o Brasil / O Brazil tá matando o matando Brasil
Gereba, saci, caandra, desmunhas, ariranha, aranha. / Sertões, guimarães, bachianas, águas
E marionaíma, arariboia” – Querelas do Brasil (com Maurício Tapajós).
– Tratou do mundo dos trabalhadores na sua materialidade e na sua subjetividade coletivas:
“Amar, um rádio de pilha, um fogão jacaré, a marmita / O domingo no bar,
Onde tantos iguais se reunem / Contando mentiras prá poder suportar/ Ai,
São pais de santos, paus de arara, são passistas / São flagelados, são pingentes, balconistas
Palhaços, marcianos, canibais, lírios pirados / Dançando, dormindo de olhos abertos
À sombra da alegoria dos faraós embalsamados” – O rancho da goiabada (com João Bosco).
– Anunciou a revolta que a necessidade aplaca:
“A raiva dá pra parar, pra interromper / A fome não dá pra interromper
A raiva e a fome é coisas dos home
A fome tem que ter raiva pra interromper / A raiva é a fome de interromper
A fome e a raiva é coisas dos home” – Ronco da Cuica (com João Bosco).
São muitos os trechos entre as centenas de composições, umas mais, outras menos conhecidas. O que cabe afirmar, em meio a profunda tristeza que significa a morte de Aldir Blanc, é que: a sua obra representa uma parte significativa no mosaico da formação política de gerações; e que o seu falecimento tem a ver com um mundo, ou período histórico, bastante controverso que se esvai. E isto é luto.
“Mas sei que uma dor assim pungente / Não há de ser inutilmente
A esperança / Dança na corda bamba de sombrinha” – O bêbado e a esquilibrista (com João Bosco).
Tomara as próximas gerações construirem um mundo muitíssimo melhor.
Valeu, Aldir! Sua contribuição neste mundo foi espetacular! Que siga formando gerações. Saravá!
Referências:
Beisigel, C. R. Estado e Educação Popular. Brasília: Liber, 2004.
Freire, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
Spósito, M. O povo vai à escola: a luta popular pela expansão do ensino público em São Paulo. São Paulo: Loyola, 1984.
Thompson, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
___. A formação da classe operária inglesa. A árvore da liberdade. V. I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.