Alguma reflexão sobre a crise do capitalismo

“O erro é um momento necessário da verdade.” Hegel — Fenomenologia do Espírito

Em meados de 2007, o sistema capitalista entrou em crise. O que se pretende dizer com isso é que o capital, valor que se valoriza, entrou em processo de desvalorização. A crise do capital é, por conseguinte, a desmedida do valor, ou seja, o valor que perde a sua medida porque se desvaloriza. Há nesse processo uma relação dialética entre a acumulação de capital, a geração de excedente de liquidez e a criação de capital fictício, engendrando a bolha financeira que, quando murcha, é a crise.

É claro que estamos tratando aqui do valor de troca. Mas, é bom que se diga, a mercadoria não é só valor de troca, ela é também valor de uso. Ocorre que, no capitalismo, o valor de uso está subsumido ao valor de troca. E, quando se fala em crise do capital, está se falando do valor que se desvaloriza como valor de troca.

Se olharmos o mesmo processo do ponto de vista do valor de uso, a conclusão será diferente. Por exemplo. Temos um enorme deficit habitacional; logo, há carência de novas habitações para satisfazer as necessidades humanas de milhões. Pelo ângulo desses milhões de sem teto, há uma brutal crise. Mas o problema é que o sistema é capitalista e nele só se reconhecem as demandas do mercado consumidor. Essas necessidades evidenciadas pelo deficit de moradias estão fora de mercado, porque o poder aquisitivo dos pobres é baixo e, em consequência, o seu consumo é pouco. Resultado, embora para os pobres haja uma brutal crise de moradia, para a indústria da construção civil não há crise nenhuma, desde que o mercado de imóveis esteja “aquecido”, desde que exista gente com dinheiro interessada em comprar imóveis, permitindo desse modo que os capitais aí investidos se valorizem. Assim, a tendência é que o capital gere crises de superprodução em situações de carência: superprodução de moradias em meio a uma população com gente sem teto, superprodução de alimentos em meio a uma população com gente faminta, superprodução de roupas em meio a uma população com gente descamisada, superprodução de sapatos em meio a uma população com gente descalça, etc. É por isso que se diz que o capital tende a gerar uma oferta superior à demanda. É porque o que qualifica a demanda é o poder aquisitivo dos consumidores e não as necessidades humanas postas pela população.

Como se pode ver, a crise do capital não se produz por carência, mas por abundância, exuberância; não por falta, mas por excesso, pletora. A hýbris do capital não reconhece limites na sua ânsia pelo lucro máximo. E é a hýbris do capital que cria suas formas amalucadas: o capital fictício, lastreado em papéis supervalorizados, que, por sua vez, estão lastreados em coisa nenhuma, pura ilusão de valor (mas, atenção, o capital é mestre em vender ilusões!).

No seu afã de acumulação, o capital vai transformando tudo em mercadoria. E não apenas a força de trabalho tem o seu valor de troca no salário, mas tudo o mais tem o seu valor em moeda, inclusive os valores morais e a honra pessoal. Como a gente cansa de ouvir, “tudo tem seu preço”. E por aí fica claro que a consciência também pode ser comprada. É por isso que se diz que a corrupção no capitalismo é sistêmica: é porque ela está inscrita na lógica mercantil do capital.

Quer ver só? Em meio à discussão do financiamento público das campanhas eleitorais, um cientista político, professor de uma universidade gaúcha, manifestou-se contra a ideia e sugeriu, em seu lugar, duas iniciativas: (a) a redução do tempo de campanha (debater pra quê?), como forma de barateá-la; e, de quebra, (b) incentivo fiscal para o financiamento privado das candidaturas.

Assim, a privatização das eleições se faria com financiamento público (o que já é praxe em termos de privatização!) e o capital estaria no melhor dos mundos, pagando com dinheiro público (renúncia fiscal) a eleição da bancada dos seus sonhos. Desse modo, o capital aperfeiçoaria a já dada mercantilização do voto, aprimorando o mercado eleitoral que aí está. E foi nessa direção que Eduardo Cunha operou a reforma eleitoral.

Mas, do mesmo modo que há duas maneiras de avaliar a crise ─ do horizonte próprio do valor de troca ou do horizonte próprio do valor de uso ─, assim também há duas perspectivas para o seu enfrentamento: do ponto de vista dos capitalistas ou do ponto de vista dos trabalhadores.

Para o capitalista, trata-se de recolocar a economia nos eixos do mercado. E, embora sua predileção seja liberal, seu senso prático não renuncia ao estatismo. Então, o burguês liberal recorre ao Estado para salvar o mercado. Como? De várias formas, mas principalmente transferindo renda pública para a empresa privada em bancarrota, socorrendo a livre iniciativa malsucedida; em suma, privatizando lucros e socializando prejuízos. E o faz com tal ênfase, que não seria abusivo afirmar que, no final das contas, o capitalismo resulta em uma espécie de “socialismo dos ricos”.

Assim, o Estado burguês repõe a economia capitalista nos eixos do mercado. Até a próxima crise. Sim, porque a crise é da própria essência do regime do capital: desde 1854, o sistema capitalista contabiliza ao menos trinta e quatro grandes crises econômicas.

Já para o trabalhador, é o caso de dar curso a uma reformulação profunda, para que a produção satisfaça as necessidades humanas colocadas pela população, em vez de atender à demanda imposta pelo poder aquisitivo do mercado. O móvel dessa nova economia terá que ser o bem-estar social (no lugar do lucro, que move a economia de mercado). Mas está aí algo muito fácil de conceber e muito difícil de fazer. É fácil de conceber porque salta à vista como uma necessidade para se fazer face à barbárie do capitalismo. É difícil de fazer porque é um ato de vontade que não depende só da disposição militante de uma vanguarda esclarecida e aguerrida, mas do consentimento ativo da imensa maioria da população. Sua dificuldade não se restringe ao terreno da economia nem é de ordem exclusivamente técnica. É uma dificuldade que só pode ser resolvida na esfera da política, da correlação de forças entre as classes sociais. Por isso, requer o empreendimento de uma longa marcha ─ caminhada de caminhantes que abrem caminho ao caminhar ─ através de sucessivos embates reivindicatórios, políticos, ideológicos, culturais, nos quais está em jogo, em última instância, a hegemonia na sociedade (hegemonia = capacidade de dar direção a um conjunto variegado de forças).

Para começar uma grande marcha, só é preciso dar o primeiro passo. Esse primeiro passo já foi dado pelos que nos precederam, há muitos anos. Portanto, estamos em meio à marcha. Há aí uma boa e uma má notícias. A má notícia é que sofremos duros reveses nessa caminhada. A boa notícia é que, apesar de tudo, a esperança não nos abandonou e aprendemos ao caminhar.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

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