1. Conforme assinalado nas análises de conjuntura da Escola de Formação Socialista (EFS) anteriores, o projeto do Golpe de Estado de 2016 está em aprofundamento, com realce para a sua agenda econômica, atualmente encaminhada de forma articulada entre Governo Bolsonaro e Rodrigo Maia/“Centrão”, com vista ao estabelecimento de uma economia financeirizada, desindustrializada, desnacionalizada e especializada na produção de commodities agropecuárias e minerais, apoiada na generalização do desemprego e do trabalho precarizado e na brutal redução do acesso aos direitos e serviços sociais e ao consumo por parte de amplas camadas populares para ampliar os volumes de recursos públicos transferidos em favor do capital. Em consequência a formação social está em processo de franca polarização (social, política e economicamente) e de aprofundamento da segregação social. No plano ideológico e cultural tem-se favorecido ainda mais projetos e discursos calcados no empreendedorismo, no individualismo, no conservadorismo político e no obscurantismo religioso como recurso para aplacar manifestações de resistência e/ou explosões sociais. No campo jurídico-político, em que pese o fato do projeto do Golpe preservar sua capacidade de iniciativa e restringir o acesso a direitos e representação política popular, o campo golpista tem convivido com intensa disputa entre as forças políticas que o compõem (Bolsonarismo, partido do judiciário, partido militar e “Centrão”) no que tange à direção política do bloco no poder e às características do regime político em processo de reconfiguração. A contraposição ao aprofundamento do projeto do Golpe com a posse de Bolsonaro converteu-se em movimento de massas, estudantil e popular, a partir das mobilizações do dia 15 de maio, marcado por uma perspectiva anti-golpe e em defesa da educação, dos direitos sociais e das liberdades democráticas. Todavia, evidencia-se um progressivo esvaziamento desse movimento desde a Greve Geral de 14 de junho. Nesse contexto, a conjuntura encontra-se politicamente dominada pela disputa entre as forças golpistas pela orientação da política econômica de Guedes, pelo controle do aparelho do Estado e pela configuração do próprio regime político.
2. Em aliança com o partido financeiro e com o apoio do que chamamos de “partido fisiológico” (agronegócio/latifúndio, igrejas evangélicas, burguesia de serviços que atua nas áreas da saúde e da educação, setores da burguesia comercial, bancada BBB) Bolsonaro está vencendo a disputa interna no governo em relação ao partido do judiciário e mesmo em relação às pretensões cesaristas do partido militar. O primeiro se enfraqueceu após as revelações do site The Intercept, que demonstram à luz do dia o que já se percebia pela simples análise dos fatos, ou seja, a manipulação política da operação Lava Jato em favor do golpe de 2016, da prisão de Lula, da eleição de Bolsonaro e dos projetos pessoais de alguns de seus operadores, tornando Moro (e indiretamente o “lavajatismo”) cada vez mais refém da aliança com o governo e o bolsonarismo para se proteger de um indiciamento ou mesmo da prisão. Apesar de algumas escamaruças e tentativas de marcar posição, como na ação da PF contra o líder do governo no Senado (Fernando Coelho) e no indiciamento do ministro do Turismo (Marcelo Antonio), Moro e a Lava Jato têm silenciado diante das denúncias de corrupção, fraude eleitoral e lavagem de dinheiro que recaem sobre o clã Bolsonaro e de suas manobras ostensivas para blindar-se. Moro tem também se sujeitado à penetração do bolsonarismo em áreas sob sua influência e em diversos aparatos do Estado, particularmente naqueles que podem afetar os interesses do clã Bolsonaro e das milícias, mas também em instituições importantes do ponto de vista do controle do conflito político e social. Além destas manobras e medidas contra seu ministro mais popular, Bolsonaro demonstra que também busca esvaziar a Lava Jato e o “lavajatismo”, como já o fazem o “Centrão” e aliados de primeira hora da operação, como o STF e setores da grande mídia, quando indica um procurador hostil à força-tarefa de Curitiba para a chefia da PGR.
3. Diante do partido militar Bolsonaro tem assumido uma postura mais “pacificadora”, evitando atritos e escaramuças verbais, acatando suas indicações em determinadas questões, como na operação de combate aos incêndios da Amazônia, e buscando se aproximar da tropa, participando assiduamente de eventos militares e ressaltando seu papel na nova ordem politica que vislumbra construir. Por outro lado, o partido militar parece ter recuado momentaneamente da perspectiva cesarista militar (ascensão de Mourão por meio de um impeachment ou um golpe militar clássico), preferindo preservar suas posições governamentais não só no aparato repressivo, mas nas instâncias e órgãos que tratam de áreas estratégicas de infra-estrutura, da questão ambiental e agrária, da questão educacional, que permitem o encaminhamento de projetos de interesse dos militares, como a ocupação econômica, populacional e militar da Amazônia, a militarização das escolas, além do reforço da presença e da autonomia operacional dos militares na área da segurança pública. Além disso, há que se considerar a preocupação dos altos escalões com a manutenção da unidade, da hierarquia e da disciplina entre as F. A. diante da acentuada penetração do bolsonarismo entre os médios e baixos escalões e os próprios riscos contidos na implantação de um novo cesarismo militar. Esta acomodação dos militares diante do bolsonarismo pode se alterar caso a presença de Bolsonaro no comando do governo coloque em xeque o golpe e sua agenda econômica, tornando a saída cesarista militar uma das alternativas do pacto de centro-direita. Enquanto isto, o partido financeiro encaminha a execução do programa neoliberal extremado, aprovando a reforma da previdência, a lei de liberdade econômica, a reforma tributária e as privatizações e o bolsonarismo avança sobre instâncias da burocracia de Estado como a PGR, a PF, a Receita Federal, a FUNAI, o IBAMA, o IPHAN e outros aparatos como as direções das IFES, os conselhos tutelares, etc., além de sua forte presença entre os agentes repressivos (militares e polícias estaduais).
4. A perspectiva de fascistização do aparelho de Estado por parte do presidente é evidente, não só para preservar os interesses fisiológicos do clã Bolsonaro e de seus aliados, mas também para fortalecer suas posições num cenário de perda progressiva de legitimidade e apoio popular, que limitam sua base social orgânica a um setor pequeno da população, apesar de mais barulhento e ostensivo que seu tamanho sugere. As pesquisas de opinião têm revelado um crescimento acelerado dos que avaliam o governo negativamente, evidenciando perda de apoio não só em setores que votaram em Bolsonaro por conta do antipetismo e alimentavam expectativas positivas em relação ao governo, mas mesmo em setores bolsonaristas agora desiludidos. O cenário internacional também apresenta crescentes dificuldades para bolsonarismo, com seu relativo isolamento internacional diante da questão ambiental e com a derrota ou o enfraquecimento das forças de direita e extrema-direita com quem Bolsonaro tem afinidades e busca se aliar, tanto em termos mundiais (Itália, Espanha, EUA, UE, Grã-Bretanha), quanto na América Latina (Venezuela, Argentina, Equador). Diante deste cenário, Bolsonaro busca ocupar setores do aparelho de Estado, particularmente da burocracia não-eleita, com gente identificada com o ideário bolsonarista, com vistas à empoderar os adeptos, atrair a adesão dos oportunistas e viabilizar os apoios necessários para um eventual fechamento definitivo do regime. Este parece ser o caminho da construção do fascismo bolsonarista graças ao golpe de 2016 e à escalada autocrática que se seguiu: a ocupação do aparelho de Estado para cimentar o movimento orgânico fascista, não o inverso como no fascismo clássico. Ou seja, se de um lado as condições políticas criadas pelo golpe permitiram sua ascensão ao governo sem a constituição de um movimento organizado de massas, por outro lado, para consumar a fascistização do regime o fascismo bolsonarista precisa primeiro ocupar o aparelho de Estado e a partir dele e com base nele constituir seu movimento orgânico, a “militância organizada” reivindicada por Olavo de Carvalho. Neste aspecto, é importante o empoderamento dos militares, das polícias e dos latifundiários pelo pacote anticrime, posto que é crucial para constituir o braço armado do bolsonarismo dentro e fora do Estado. Também é importante para Bolsonaro manter sua base social radicalizada, reafirmando sempre que pode seu compromisso com a pauta que o elegeu, como na Assembléia da ONU e nos constantes “recados” emitidos nos portões do Palácio da Alvorada. Nesse processo está em curso a defesa acirrada da pauta obscurantista dos costumes, movimentando milhões de evangélicos pentecostais e católicos carismáticos, com vista a ocupar instâncias de intermediação direta, ao mesmo tempo sociedade civil e sociedade política, a exemplo da atuação intensa para o controle dos conselhos tutelares por esses segmentos. Também é importante para Bolsonaro manter sua base social radicalizada, reafirmando sempre que pode seu compromisso com a pauta que o elegeu, como na Assembléia da ONU e nos constantes “recados” emitidos nos portões do Palácio da Alvorada.
5. Por outro lado, o centro-direita busca se constituir como um pólo alternativo ao bolsonarismo e à bolsonarização do Estado, organizado no Congresso, nos partidos do “Centrão”, em setores do STF, do Judiciário e da grande mídia. Esta perspectiva busca atrair o centro-esquerda para um grande pacto em nome da contenção do bolsonarismo e dos “excessos” da Lava Jato, a exemplo da criação da chamada “Frente Democrática” em setembro deste ano, com membros da sociedade civil e lideranças de 16 partidos de centro-direita, de centro-esquerda e mesmo de esquerda, com vistas à defesa do “Estado Democrático de Direito”. Todavia, desfalcada da presença de lideranças destacadas do PSDB e do PT, não apresentou a proposição ou compromisso para com a reversão do golpe e da pauta neoliberal extremada, limitando-se à defesa de um vago movimento “Direita, Já!”. A derrubada dos vetos presidenciais à lei de abuso de autoridade, o veto à determinados aspectos do pacote anti-crime e a negociação de uma versão “moderada” do Future-se, além das resistências à indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada nos EUA e das negociações em torno da reforma da previdência no Senado evidenciam a queda de braço do “Centrão” com o governo. Porém, esta agenda fragiliza toda as forças políticas de centro-direita em relação ao bolsonarismo, pois não é possível contê-lo e menos ainda derrubá-lo sem a crítica do golpe e do programa neoliberal extremado de Guedes. Além disso, coloca o PT numa situação ainda mais difícil, pois apesar da disposição demonstrada pelo partido em negociar por dentro da institucionalidade e manter a resistência de massas em “banho maria” justamente para manter sua “confiabilidade” perante o bloco no poder, a libertação de Lula e o direito de candidatá-lo em 2022 estão no centro de sua estratégia, contrariando os setores que compõem o campo golpista.
6. Portanto, ao contrário do que muitos imaginam, as reportagens do The Intercept sobre o envolvimento da Operação Lava Jato no golpe de 2016 e nas eleições de 2018, revelando para amplos setores da população a trama golpista que levou ao impeachment de Dilma Roussef, à prisão de Lula e à vitória de Bolsonaro, tornaram o campo golpista e os setores do bloco no poder que em diversos níveis tem contradições com o bolsonarismo (principalmente setores do grande capital interno) ainda mais reféns da manutenção de Bolsonaro na presidência, pois este é o desdobramento político daquela. Isto explica a postura pusilânime de instâncias como STF, MP, Receita Federal, diante das afrontas presidenciais à legalidade constitucional, de seu fisiologismo explícito e de seus vínculos com o crime organizado. Vide a suspensão das investigações contra Flávio Bolsonaro por Tofolli e Mendes no STF, dois dos principais críticos da Lava Jato naquela corte. Diante disto, as dificuldades do centro-direita em viabilizar uma alternativa ao bolsonarismo no próprio campo golpista obriga-o a uma composição com Bolsonaro em torno da manutenção da “democracia restrita” e da contenção da Lava Jato, o que favorece a ação transformista do bolsonarismo sobre amplos espectros do próprio centro-direita no Estado, nos partidos e na sociedade civil.
7. Apesar do grande apelo eleitoral que o PT ainda tem, este tem se demonstrado incapaz de recuperar sua força mobilizatória e liderar um vigoroso movimento de massas contra o golpe e o bolsonarismo, reforçando sua inserção institucional como principal mecanismo de intervenção na conjuntura. Diante da decapitação de suas lideranças ao longo dos anos, o partido se torna cada vez mais dependente da liderança e das pretensões eleitorais de Lula, o que o faz apostar ainda mais na negociação por dentro da institucionalidade para libertar seu dirigente máximo, garantir sua candidatura em 2022, atenuar os aspectos mais duros do programa Guedes e preservar o que resta de democracia, tornando-se impotente para levar a crítica do golpe e da pauta neoliberal extremada até o fim, ou seja, à luta social. O mesmo se dá com a CUT, que parece sentir o peso do enfraquecimento dos sindicatos com a reforma trabalhista, e com os movimentos sociais, também incapazes de ir além das pautas corporativas e das manifestações de rua, que por mais massivas que sejam demonstram-se impotentes para interferir na dinâmica da sociedade politica (Estado). Esta postura das duas principais organizações ligadas ao mundo do trabalho impacta em todo o campo de esquerda, influenciando outros movimentos e organizações e dificultando a luta de massas contra a pauta do golpe e o governo Bolsonaro. De um lado isto se explica pelo insulamento crescente da sociedade politica diante das lutas sociais por conta da própria escalada autoritária recente. Por outro lado há que se considerar a enorme dificuldade de mobilização dos setores desorganizados do proletariado, particularmente os setores precarizados, em torno de uma pauta ético-política que vá além da defesa de direitos e do “Lula Livre” e reverta o golpe em sua inteireza com a anulação das eleições de 2018, a destituição do governo Bolsonaro, a anulação de todas as medidas aprovadas desde o golpe, a convocação de novas eleições, a revisão das decisões da LavaJato e a libertação de todos os presos políticos. Apesar de uma intensificação das lutas sociais nos últimos cinco anos, como não se via desde os anos 80, com o aumento do número de greves, grandes protestos e manifestações de rua, os trabalhadores ainda não lograram sair da postura defensiva.
8. Diante disto, a constituição de uma frente ampla que reúna apenas as forças antigolpistas ainda apresenta grandes dificuldades de efetivação em termos de lutas sociais, limitando-se a alianças político-parlamentares meramente defensivas. Por sua vez, a constituição de uma frente de esquerda reunindo a esquerda socialista em torno de um programa não apenas antineoliberal, mas que vislumbre a perspectiva socialista, também passa por grandes dificuldades, na medida em que não consegue sair da órbita da lógica institucional imposta pelas forças majoritárias de centro-esquerda.
9. Temos então uma situação de crise de hegemonia em que nenhuma força consegue se impor completamente sobre as outras, o que favorece quem detém o controle do aparelho de Estado, não só o governo. A luta política tem sido dominada pelas lutas político-institucionais que ocorrem no âmbito de uma sociedade política (Estado) insulada em relação às lutas sociais, sob maioria incontestável das forças golpistas e sob a restrição da representatividade da oposição de esquerda (PT, PSB, PDT, PSOL, PC do B), o que a impede de resistir à dinâmica institucional regressiva. O movimento de massas que se formou recentemente, na luta de resistência ao Governo Bolsonaro e às forças golpistas do Congresso Nacional, fortemente marcado pela presença de estudantes e de servidores públicos, não tem sido capaz de se afirmar como pólo político efetivo na luta política e de romper o insulamento indicado acima, transitando rapidamente de uma intensa mobilização no dia 15 de maio para um progressivo esvaziamento dos protestos e manifestações, culminando na Greve Nacional da Educação dos dias 02 e 03 de outubro. Deve-se ter claro que nestas condições o avanço da crise de hegemonia favorece àquela força política que detém o controle do governo e do aparelho de Estado. Diante disso, é possível afirmar que nas atuais condições o bolsonarismo é a força política que mais tem avançado no sentido de resolver a crise em seu favor, o que equivale considerar a possibilidade real de fascistização do regime político. Se hoje esta hipótese parece improvável, sua efetivação não é impossível no período em curso. Diante desse cenário e ao contrário da aposta de muitos setores da oposição, a possibilidade de agravamento da crise econômica e social em função da própria aplicação do programa Guedes — que deve inclusive ser agravado pela queda de ritmo de crescimento da economia mundial — pode funcionar como elemento de fortalecimento da perspectiva bolsonarista, na medida em que as causas da crise possam ser jogadas nas costas da “herança petista” e que amplas massas sejam convencidas da necessidade de uma “mão forte”, livre das amarras “democráticas”, para superar a crise.