Chegamos a mais um Novembro, mês onde nossa força ancestral se ergue nos gritos, cantos, batuques, danças e macumbas daqueles que construíram e ainda constroem essa data como resistência. Trazendo a verdadeira história. Aquela que não se conta nas escolas. Que não foi feita por princesas, mas pelo suor e sangue da QUILOMBAGEM!
O ano de 2020 tem sido atípico e devastador. Em conjunto com a pandemia do Covid-19, escancaram-se velhas e novas dinâmicas de opressão, exploração e genocídio, esgotando todas as ilusões do capitalismo como um modo viável de produção e organização da vida.
Neste sentido, não é surpresa alguma que, mesmo com os limites impostos pelo vírus, tenham explodido levantes populares pelo globo nos últimos meses. Destacamos aqueles que pautavam o reconhecimento da importância das vidas negras nos Estados Unidos, o levante de trabalhadores precarizados pela uberização no Brasil e pelas manifestações de resistência e autonomia dirigido pelos povos originários em países na América Latina. Estes que não só defendem suas vidas, mas defendem nossa terra com suas próprias vidas. Vemos no conflito entre nossa luta e os ataques dos que mantêm a colonialidade do poder um movimento constante. Um conjunto de contradições que organiza a vida em sociedade.
Por parte do capital – que ainda fala por aqui a partir da casa-grande –, a intenção é de esvaziamento da política e retomada da sua boa e velha política da ignorância. Por outro lado, grande parte do setor político e intelectual autointitulado revolucionário tem falhado em capturar esse movimento. Por isso precisamos entender e combater essa dinâmica, como tarefa inadiável da construção de novas relações e um novo modo de reproduzir a vida.
Grande parte da ‘esquerda progressista’ já está acomodada em seu reformismo, completamente perdida dentro de tal dinâmica. Seja encastelada nas burocracias sindicais, barrando a luta dos de baixo; se negando a discutir os problemas manifestos da classe, do racismo, machismo, LGBTFobia, etc. Seja combatendo um falso inimigo, um suposto Hitler; que aterrissou no nosso paraíso democrático com seus seguidores lunáticos.
Isso nos leva ao último elemento, à verdadeira fumaça no olhar desses companheiros: o apagamento histórico e sistemático do racismo como elemento estrutural de nossa sociedade.
A nossa luta negra foi propositalmente apagada da história como parte essencial da construção do país, afinal de contas, sob o olhar desses senhores, nossos ancestrais não passavam de BESTAS, SELVAGENS, etc. Não surpreende que, mesmo sendo parte necessária para a superação dos problemas nacionais, nossas pautas e aspirações são tratadas com tanto desprezo e desrespeito. Um país CABOCLO que tem como os principais inimigos indígenas e negros. Tudo isso é resultado da contradição entre a acomodação da luta antirracista dentro de si e o racismo que não se abre mão nestes espaços de poder.
Uma coisa é nítida. Esse sistema é ANTI-HUMANIDADE!
De um lado, os capangas particulares do capital matam os filhos dessa terra, povos que resistem desde a chegada do primeiro português. De outro, sua guarda mata as peles escuras que aqui ainda trabalham em regime semi-escravo.
Grileiros incendiários com suas máquinas gigantes queimam, desmatam, plantam soja e espalham gado. Tudo isso para matar a fome desenfreada dos homens brancos e donos do capital por MAIS LUCRO!
Enquanto falamos isso, mais uma mulher é estuprada, é espancada. Mais uma mulher é morta, mais uma mulher negra é obrigada a trabalhar em troca de comida na casa de seu patrão, e, como na época da escravidão, tem seu corpo violado, ainda como forma violenta de dominação, afinal não passam de posses.
A revolução se faz necessária! Nas ruas é claro, mas antes de tudo em nós. A história de resistência negra e indígena em nosso país ensina: é preciso resistir! De todas as formas possíveis! É preciso, antes de tudo, unir os de baixo. Vejam, se não é uma contradição que precise a justiça burguesa determinar que os partidos dediquem uma verba para candidatos negros para que, depois de 132 anos de abolição, “de repente” possa haver algum espaço para as vozes daqueles e daquelas que tanto sofrem, filhos daqueles que foram massacrados pela riqueza do país, pela riqueza dos grandes centros do capital, e que até hoje pagam pelo pecado de sua cor. Por que a mudança não tem a nossa cara? Por que a revolução até hoje se recusa a ouvir nossa voz?
Para eternizar nossa resistência misturamos nossa essência. Hoje, a Jurema passeia pelos terreiros de umbanda. Zé Pilintra, grande mestre juremeiro é conhecido como um malandro do universo afro-Brasileiro. Exu passeia entre os mestres juremeiros. Maculelê defende quilombos, para que os quilombolas possam lutar pelo seu povo e pela terra, que o colonizador tenta desesperadamente matar. Quando perderão o medo de se misturar? É preciso aceitar que é hora de abrir mão da HIERARQUIA.
Nós nos vemos, nas massas, nas lutas daqueles que mais sofrem. Nos levantes das favelas contra a violência policial, nas greves dos setores mais explorados. Hoje vemos nossos irmãos queimando delegacias no coração do capitalismo, lutando por suas vidas, vemos nossos irmãos que se levantam na África ainda contra homens brancos que não cansam de explorar aqueles que carregam o fardo de sua cor. Desde sempre lutamos para sermos aceitos, incluídos, mas, ainda somos vistos como segregacionistas. Uma forma confortável de apagar a verdade: o RACISMO é quem nos separa.
Sempre fomos linha de frente da história moderna/colonial desse país, ao lado dos que aqui sempre estiveram e sempre resistiram. Mas, o pacto narcísico da branquitude é tão forte em nossa realidade que não só formou uma burguesia com uma mente escravocrata, totalmente dependente, como trancafiou os de pele mais clara numa sala de espelhos distorcidos. Se, ao olhar o negro, o branco não consegue encontrar humanidade, não sabe, ele mesmo, a complexidade do que é SER HUMANO. Ao passo que, ao analisar sua Nação e, assim, a si mesmo – e a identidade dos seus comuns, ditos “humanos”, os “cidadãos” da tal democracia – só consegue perceber uma distorção, uma Europa Tropicalista.
Dito isso, devemos destacar que nosso progresso é fruto da luta organizada e consciente. Mas mesmo a consolidação de um avanço ou conquistas pragmáticas, não geram garantia de que os resultados serão necessariamente proveitosos ou alinhados a emancipação.
Por isso é preciso cautela.
Não… nós não aceitaremos mais as migalhas das riquezas criadas com o nosso sangue! Não nos deixemos levar pelo discurso liberal. É hora de tornar ação as palavras de Clóvis Moura!
É tanto nosso dever, quanto nossa realidade: sejamos nós a esquerda!
Isso impera que sejamos conscientes que a roda da história nem sempre gira para frente. Como expressão disso, no mesmo o PT de Benedita da Silva, que propôs a proporcionalidade de fundos eleitorais às candidaturas negras – muito depois de todos os seus anos na presidência –, houve espaço para que a militância justificasse um comentário racista de Fernando Haddad. Embora pareça haver contradição, tudo isso está circunscrito pela dinâmica de acomodação do negro à ordem política e dos partidos.
Numa realidade ainda guiada pelas velhas formas coloniais de poder, a atuação mais dedicada pode ser suplantada pela incorporação consciente ou não do racismo e sexismo. Cada conquista, por menor que seja, será posta à prova pela sua experiência. Com isso, também queremos dizer que em cada pequeno passo pode fazer renascer árvores, que florescem a potência da esperança de um novo amanhecer. Somos como sementes vindas de Angola, dotadas de um potencial revolucionário escondido dentro de nós, que pode de fato vingar em frutos quando bem cuidadas.
Por exemplo, se por um lado é possível enxergar na campanha de Guilherme Boulos do PSOL uma máscara vazia quanto a questão racial, pela qual ele dificilmente aparece em suas peças publicitárias sem que haja um grupo de mulheres negras à sua volta. A mesma máscara branca a frente das mesmas peles negras. É inadiável destacar: à frente da luta pela vida, pelo teto e pelo pão estão as incansáveis filhas de Iansã, mulheres negras que cuidam das filhas e das vidas das famílias suas e de tantas outras mulheres. Mães, Empregadas, Líderes, Militantes, Amigas, Parceiras, Mulheres. Ainda hoje atrás do homem branco, não só na campanha, mas nos partidos estrutura social.
Ignorar essa força poderosa impossibilita qualquer programa político e eleitoral de responder como se salva, das mãos de uma das polícia que mais mata no mundo, os jovens e crianças pobres, negros e periféricos. Como os filhos dessas mulheres não farão parte da estatística de presos que nem sequer foram julgados. Não foi capaz de responder à essas mulheres como resolver o problema da violência machista. Os insultos do sistema judiciário, que praticamente criminaliza uma mulher estuprada!
Nos resta saber, há espaço para a luta revolucionária e pela sobrevivência destas mulheres negras dentro deste partido? Há em meio a este quadro uma potencial tendência de ruptura com estruturas de opressão vigentes? Pode a acomodação ceder à subversão? Somente a experiência pode ser o critério da realidade. E, para sair do campo especulativo, é preciso que este debate tome lugar e objetividade. É preciso observar quais os movimentos críticos dentro desta estrutura partidária que já teve inclusive seu teor racista continuamente desvelado.
Por outros cantos do Brasil, o PSOL do Rio de Janeiro há muito tem abordado o debate sobre segurança pública de modo conciliador com o Estado, mesmo defensor da polícia, significando senão a continuidade da violência e extermínio desproporcional de jovens e crianças periféricas, mormente negras. No Estado da Bahia, liderado pelo petista Rui Costa, a violência policial alcança patamares horrendos, atrás apenas do Rio de Janeiro, em primeiro, seguido por São Paulo. Por último, as eleições municipais trazem à tona a incoesão de partidos como o PCdoB – que leva o comunismo ao menos no nome –, PSB, entre outros, que formam coligações e alianças com a direita ultraconservadora pelos rincões do país.
Vale destacar que estes exemplos não têm o intuito de personalizar o racismo nos quadros e partidos elencados, mas a adesão à lógica que suposta e discursivamente eles tendem a negar.
Em tempo, é necessário falar sobre o fantasma que assombrou o Brasil, mas agora parece que já não mais. A despeito de alguns debates sérios e com algum rigor de análise, a esquerda progressista deu por certo o fascismo de Bolsonaro e – se esteve protestando, quando esteve protestando – levou para rua cartazes “pela democracia, contra o fascismo”. No mesmo sentido de esvaziamento da luta política e cooptação de pautas concretas, articulado pela lógica do capital, o “fascismo” ou “fascista” foi elevado – ou rebaixado – a mera identidade: uma qualificação que personaliza o embate que se deve travar. Assim se deu vazão anecessidade de autojustificação pelo antagonismo criado no combate ao fascismo e em seu levante antifascista, pela democracia.
Como parte da nossa resposta, emprestamos a questão de Aristides Negreiros,no Jornal da Alvorada, em 1946: “que liberdade, que democracia?”
Para além de não ter engrossado as fileiras da luta dos entregadores, a disputa narrativa da esquerda da ordem foi frutífera em suplantar o debate da questão racial. Como expressão mais destacada do esvaziamento que este processo determinou, o início das campanhas eleitorais foi extremamente eficaz em exorcizar o fantasma do fascismo no Brasil. E, no novo ambiente, a questão racial tomou destaque nas candidaturas, ao menos nas propagandas e publicidades.
Se não nos adereçamos diretamente à ação da direita que, para além do governo federal, se distribui por diversas prefeituras e governos estaduais, de modo algum é para ignorar ou reduzir o efeito de uma prática política colonial e de exploração. Nosso objetivo é denunciar a adesão à lógica do capital na esquerda para seguir em direção à superação da exploração e das opressões. Isto é, precisamos negar qualquer movimento à convergência com a lógica e prática política regida pelo capital, e esta é muito mais problemática quando se localiza na esquerda socialista.
Assim, encerramos algumas pontuações e questionamentos que não só este ano e o período eleitoral apresentam, mas a continuidade e organização da luta pela nossa existência e reconhecimento da nossa humanidade não permite que deixemos escapar.
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Agora, o que temos por Consciência Negra?
Ao mesmo tempo que o ano de 2020 dispôs uma dificuldade à organização pelo isolamento, os novos hábitos e ferramentas abriram caminho a atividades que realizamos através do Coletivo Clóvis Moura e em conjunto com o Contrapoder. No nosso curso Racismo Estrutural e Capitalismo, veiculado pelo canal do Contrapoder no Youtube, colocamos nossa perspectiva e reflexões em contato com diversas pessoas interessadas em compreender e combater o racismo e o capitalismo. Como uma bela consequência, temos feito encontros com os pesquisadores e militantes que conhecemos nessa caminhada e vamos publicar nosso segundo texto de discussão. Para além, nossa coluna mensal manteve publicações que atualizaram tanto nossa perspectiva sobre a conjuntura nacional, quanto nossa leitura de Economia Política e orientação de luta.
Também, a atividade em nosso pequeno quilombo colheu frutos contra a dominação colonial do saber. No mês de novembro, quatro de nossos integrantes apresentarão trabalhos no X Encontro de Pós-graduação em História Econômica e 8ª Conferência Internacional em História Econômica. Atividade aberta ao público, que acontecerá dia 10, pela qual discutiremos a colonialidade do saber em Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Celso Furtado. Antes disso, no primeiro semestre, ofertamos uma disciplina de título Economia Antinormativa, com programa desenvolvido por nós e ministrada por atividade de estágio docência. Além de ter dado fruto à atividade proposta para esse mês da Consciência, estimulamos o debate, a pesquisa e divulgamos nossa abordagem científica quanto aos demais âmbitos de dominação do capital, para além do econômico.
Essa breve retrospectiva, apesar de parecer deslocada, serve para retomarmos o aspecto que julgamos de maior importância para nossa reflexão e práxis: a coletividade. Tudo o que fizemos tem sido fruto de extensa e minuciosa discussão e produção conjunta. Isto se orienta pela nossa compreensão da luta negra, de nossa ancestralidade e, finalmente, da Consciência.
Para nós, o que deve mover a Consciência Negra, primeiramente, é a ancestralidade que nos é disposta pela luta incansável por humanidade e emancipação. Quando nos referimos a ancestralidade, não se confunda, estamos falando do ímpeto revolucionário inaugurado desde que o primeiro colonizador pisou na África. É a Quilombagem e a aliança com os trabalhadores livres. É a insurgência revolucionária haitiana e a República de Palmares em pleno Império. É a autodeterminação do povo que construiu suas próprias casas e sua existência pelos morros, favelas e periferias do país. É contra todo e qualquer tipo de opressão e dominação.
Nesse sentido, organizamos uma breve coleção de ensaios para esse mês de novembro que serão publicados em sequência. Convidamos os jovens estudantes e pesquisadores que acompanharam nossa disciplina no curso de Economia da Unicamp para escreverem sobre as questões, reflexões e apontamentos de pesquisa que surgiram a partir dos nossos encontros e discussões. Com isso, vamos divulgar as perspectivas plurais e inovadoras destes economistas em formação, que têm em comum o antirracismo e o embate direto com a colonialidade do saber em nossa área do conhecimento.
Convidamos vocês a acompanharem o trabalho empenhado dos nossos companheiros. Sobretudo, convidamos a todos à reflexão sobre a Consciência que destacamos. A se unirem à nossa insurgência que tem como regra a verdadeira universalidade. Atestamos, assim como os revolucionários do Haiti, que nossa luta só acaba quando nenhum ser humano, seja negro, vermelho ou qualquer cor, possa ser propriedade de outro.