Antropoceno, Capitaloceno e os ecossocialistas

Tenho que começar confessando que eu já tinha jogado a toalha em relação à coluna deste mês. Meus últimos resquícios de sanidade mental finalmente foram à lona. Minha capacidade de concentração deve estar mais minguada que a de um peixe palhaço. No entanto, ontem, em “sala” de aula, discuti com a turma a polêmica entre os termos Antropoceno e Capitaloceno e, tendo sido instado a escrever algo a respeito, resolvi aproveitar a sugestão e manter acesa a chama dessa pequena contribuição mensal que venho procurando fazer para nossos debates.

Conforme Ian Angus1 relata, o termo Antropoceno ganha impulso no meio científico a partir dos anos 2000, tendo sido inicialmente sugerido pelo Nobel de química Paul Crutzen e posteriormente encampado por uma série de pesquisadores eminentes das ciências da Terra. A sugestão de uma nova época geológica denominada Antropoceno indicaria que a humanidade tornara-se um vetor relevante de transformação ecossistêmica global.2

Desde então, a comunidade de cientistas da Geologia e da Estratigrafia vem procurando estabelecer o marco inicial dessa nova época geológica. Até hoje, no entanto, a International Commission on Stratigraphy (ICS) e a International Union of Geological Sciences ainda não aprovaram a alteração exata na escala de tempo geológico, tamanha é a variedade de momentos em que a marca humana poderia ser estratigraficamente detectada. Em 2019, o Anthropocene Working Group (AWG), comissionado pela ICS, emitiu um parecer com a proposta formal de situar o início da nova época geológica em meados do século XX.3

Essa proposta é consistente com o que veio a ser conhecido como a Grande Aceleração. Em 2004, um time de pesquisadores do IGBP publicou uma coletânea de gráficos que ilustravam inflexões expressivas e simultâneas nas trajetórias de uma série de variáveis sociais e naturais a partir da década de 1950.4 População, PIB, população urbana, uso de fertilizantes, consumo de água, transporte, dióxido de carbono, metano, temperatura, acidificação dos oceanos etc.: todos dispararam para cima a partir de 1950. Por isso, Veiga afirma que: “ninguém tem o direito de ignorar que, ao menos desde meados do século XX, os humanos passaram a exercer pressões excessivas sobre alguns dos mais relevantes ciclos biogeoquímicos, como os do carbono e do nitrogênio. Ao mesmo tempo em que ocorria inédita escalada geral de outros impactos artificiais (antrópicos) sobre a biosfera. Talvez baste lembrar que, de todo o dióxido de carbono atribuível às atividade humanas hoje estocado na atmosfera, três quartos foram emitidos apenas no curto lapso dos últimos setenta anos”.5

Ok, parece, então, que temos um entendimento científico sólido em torno do termo Antropoceno e em torno do seu conteúdo. Falta apenas chegar a um acordo a respeito do momento em que a marca humana pode, de fato, ser identificada nos estratos geológicos. Sendo assim, as leitoras e os leitores minimamente familiarizados com o Antropoceno podem ser levados a se perguntarem: por que raios tem gente usando Capitaloceno?6 Eu mesmo, por muito tempo, supus que se tratava tão-somente de uma licença criativa para fazer agitação política. Isto é, eu achava que Capitaloceno era um termo usado para indicar a óbvia destrutibilidade e inviabilidade ecológica do capitalismo, mas que não tinha pretensões científicas, digamos assim. Se Capitaloceno é entendido dessa forma, podemos, naturalmente, concluir que seu uso é politicamente útil ou concluir que seu uso mais atrapalha do que ajuda. Como exemplos conhecidos de cada uma dessas posições, eu mencionaria Renato Cinco7 e Alexandre Costa8, respectivamente.

Quero, contudo, argumentar que o termo Capitaloceno não está restrito ao âmbito da agitação, como eu mesmo supunha até pouco tempo atrás. Tendo sido inicialmente cunhado por Jason Moore, ele vem acompanhado de uma crítica científica da ênfase do debate no Antropoceno.9 Moore é cuidadoso em reconhecer que todo esse debate está circunscrito à Geologia e à Estratigrafia. No entanto, ele vai justamente desafiar a validade dessa circunscrição para a adequada compreensão sobre os impactos ecológicos da humanidade. Notem que as discussões sobre o Antropoceno envolvem encontrar, nos estratos geológicos, assinaturas claras do impacto especificamente humano. Ou seja, a busca não é por sinais do nosso impacto, em sentido amplo. A busca é por sinais do nosso impacto que ficam registrados geologicamente. E quando esse é o foco da busca, argumenta Moore, toda uma longa história ecológica da emergência da sociedade capitalista é simplesmente deixada de lado porque não ficaram marcadas geologicamente ou porque suas marcas geológicas não são tão incontroversas. Em suma, o foco no Antropoceno debilita a crítica ecológica do capitalismo, não apenas politicamente, mas também cientificamente.

Para que fique muito claro, a crítica de Moore não é que, de um ponto de vista estritamente geológico, talvez a época marcada pela ação humana precise receber outro nome. Ele tampouco está apenas dizendo que o termo Antropoceno coloca toda a humanidade, em bloco e de maneira indiferenciada, como responsável por um certo conjunto de impactos. Essa ideia monolítica de humanidade é realmente problemática, mas o autor está apontando para algo mais que isso. Ele está dizendo que, de um ponto de vista da compreensão científica sobre o impacto humano nos ciclos naturais do planeta, o debate geológico é irremediavelmente incompleto e insuficiente. Tudo aquilo que é deixado de fora nessa busca por marcas muito específicas em estratos geológicos nos impediria de perceber, segundo o autor, que o principal vetor das mudanças no planeta tem sido, ao menos desde o século XVI, o capital

Por isso, quando ele propõe o termo Capitaloceno, ele não está propondo um termo geológico para substituir Antropoceno. Ele está propondo um enquadramento da questão que escape do âmbito restrito da Estratigrafia e nos habilite a considerar toda a ampla gama de transformações planetárias impulsionadas ao longo da emergência histórica do capitalismo, não apenas as transformações que ficam marcadas geologicamente. Em outras palavras, ele defende que a História seja trazida para o tratamento científico da questão. Neste ponto, é impossível não lembrar de Marx e Engels e seu correto reconhecimento da História como ciência. Trazer a História para o debate não é, portanto, trazer elementos estranhos ao esforço científico. Ao contrário, é tornar o esforço científico mais completo e rigoroso. Uma vez elucidada essa questão, fica um tanto anacrônico continuarmos nos limitando aos termos de um debate que busca identificar a marca humana abstraindo da história humana.

Para finalizar, percebam que Moore não está afirmando que o principal vetor das mudanças planetárias é o capitalismo ou os capitalistas. Ele está afirmando que o principal vetor da mudança é o capital. Daí o termo Capitaloceno, ao invés de “Capitalismoceno” ou “Capitalistoceno”. Isso nos ajuda a perceber até mesmo como as experiências do assim chamado socialismo real integrariam o Capitaloceno. Como quer que caracterizemos as diversas experiências socialistas dos séculos XX e XXI, parece-me totalmente seguro afirmar que nenhuma delas foi capaz de superar o capital. Estiveram todas, em maior ou menor medida, sujeitas ao capital como categoria estruturante da dinâmica social. Dito de outro modo, é verdade que a maneira como a União Soviética participa dos processos ecologicamente destrutivos do século XX pode ser explicada por uma série de fatores específicos da experiência soviética. Mas também é igualmente verdade que essa explicação seria frágil se não levasse em conta as formas pelas quais esses fatores internos foram codeterminados por fatores geopolíticos enraizados na lógica do capital.

Reconhecer isso não equivale a um truque retórico para responsabilizar (preguiçosamente) o capitalismo por todos os males da humanidade. Reconhecer isso é, a rigor, ser consequente com a crítica marxiana desta sociedade. Ao longo de toda sua vastíssima obra, Marx demonstra, recorrentemente, que o capital produz uma dinâmica social estranhada, que escapa ao nosso controle e nos subordina. Para qualquer sociedade pós-capitalista que pretenda superar as compulsões expansionistas e destrutivas do capitalismo, não é suficiente reorganizar-se politica e produtivamente de modo diverso, escrevendo em sua bandeira “socialismo”. É necessário também superar o próprio capital.

Referências

  1. Angus, I. (2016). Facing the Anthropocene: fossil capitalism and the crisis of the earth system. Nova Iorque: Monthly Review Press.
  2. Veiga, J. E. (2019). O Antropoceno e a ciência do Sistema Terra. São Paulo: Editora 34
  3. AWG. (2019). Newsletter of the Anthropocene Working Group: Volume 9. Report of activities 2019. Disponível em: <http://quaternary.stratigraphy.org/wp-content/uploads/2020/09/Anthropocene-Working-Group-Newsletter-Vol-9-final.pdf>
  4. Steffen, W., Rockström, J., Richardson, K., Lenton, T., Folke, C., Liverman, D., . . . Schellnhuber, H. (2018). Trajectories of the Earth System in the Anthropocene. PNAS, 115(33
  5. Veiga, J. E. (2019). O Antropoceno e a ciência do Sistema Terra. São Paulo: Editora 34, p. 27.
  6. É também notório que, ao usar essa palavra nas proximidades de algum(a) cientista da natureza, o mínimo que se recebe em troca é uma careta de desprezo.
  7. https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/02/5875029-renato-cinco–antropoceno-ou-capitaloceno.html
  8. Cf.: https://subverta.org/2020/03/11/compreender-o-antropoceno-e-combater-o-capitalismo-para-alem-da-terminologia/
  9. Moore, J. (2017). The Capitalocene, Part I: on the nature and origins of our ecological crisis. The Journal of Peasant Studies, 44(3).

Eduardo Sá Barreto

Professor de Economia, pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro "O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas"

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