Argentina: 49 anos de Ezeiza, o ponto de inflexão

por Silvia Beatriz Adoue1, 20/06/2022

Um dia como hoje, há 49 anos, os argentinos se preparavam para receber Juan Domingo Perón, depois de 18 anos de exílio. O presidente tinha sido destituído por um golpe militar em 1955. Um milhão de pessoas, vindas de todo o país, reuniram-se na estrada que leva ao aeroporto onde o avião com o ex-presidente pousaria. Ergueu-se um palco. Ali esperavam o contato direto com o líder do movimento, que falaria à multidão. Antes do pouso, do palco e de plataformas preparadas nas copas das árvores, franco-atiradores dos grupos de choque da direita peronista atiraram contra a multidão, especialmente contra as colunas da juventude da esquerda peronista. Morreram no local 13 pessoas, três delas comprovadamente militantes da esquerda peronista. E foram registrados 365 feridos. O avião que levava o ex-presidente foi desviado para a base da Força Aérea de Morón. Perón pronunciou-se na noite do dia 21 de junho, em cadeia nacional2. Nas entrelinhas de seu discurso, pode-se reconhecer a omissão com relação aos agressores e a acusação aos jovens de esquerda de infiltrados dentro do movimento. O episódio conhecido como Masacre de Ezeiza foi um momento de revelação: Perón voltava não para levar adiante um projeto nacionalista revolucionário, esperado pela juventude de seu movimento, mas como um bombeiro que retornava para apagar os incêndios.

É preciso retroceder algumas décadas. Em 1943, o coronel Juan Domingo Perón era Secretário de Trabalho e Segurança Social do governo do general Edelmiro Farrel, um dos tantos presidentes militares que se sucediam em intrigas palacianas. Como Secretário, reunia-se com sindicalistas das variadas correntes políticas e assumiu seu programa (reformista) de proteção trabalhista. Destituído por pressões da burguesia agrária, foi reconduzido a seu cargo pela multitudinária mobilização operária de 17 de outubro de 1945. Foram convocadas eleições e ele se candidatou, ganhando por ampla maioria. Levou adiante um programa de industrialização e criação de mercado interno com políticas sociais, aproveitando as condições do pós-Segunda Guerra. Foi reconduzido a um segundo mandato, que não chegou a terminar. O subsídio da indústria nacional com recursos provindos das exportações contrariava os planos dos EUA, nova potência imperialista atuando na América do Sul, e dos exportadores locais. As forças armadas estavam divididas. Depois de várias tentativas – uma das quais resultou no bombardeio na Plaza de Mayo, em 16 de junho de 1955, que resultou em 350 mortos e duas mil pessoas da população civil feridas –, no dia 16 de setembro desse ano o golpe se instalou. 

Em bairros da periferia industrial de Buenos Aires, a ditadura demorou até uma semana para conseguir o controle, já que a população fazia barricadas para resistir. Mas Juan Domingo Perón não lutou, retirou-se ao exílio, no Paraguai, Venezuela, Panamá, e terminou desembarcando em Madri, sob proteção do ditador Francisco Franco. 

Aqueles anos de exílio, porém, permitiram às classes trabalhadoras da Argentina desenvolver uma experiência de luta bastante distante do controle político e social da direção burguesa do movimento peronista. A revolução anticolonial daqueles anos, como a argelina, a vietnamita e, em especial, a revolução cubana, magnetizava o sonho argentino dos de baixo. E surgiram correntes variadas, nacionalistas revolucionárias, inclusive marxistas, que se aproximavam nas lutas àquelas da memória peronista. Com putch cívico-militar (como o de 9 de junho de 1956), insurreições (como a do Cordobazo, Rosariazo, Viborazo), inúmeras greves gerais e sob o selo da resistencia peronista, lançavam-se à peleja lado a lado com correntes não peronistas. Desde a década de 1960, as novas gerações que não tinham vivido os governos de Perón, trabalhadores e não poucos filhos da pequena e até da alta burguesia, propunham-se a derrubar a ordem. Muitos deles acreditavam que Perón também estava nessa empreitada. De seu exílio, o ex-presidente não desmentia essa crença; ao contrário, alimentava-a abertamente. Ao mesmo tempo, confabulava com grupos de choque da direita fascista e acenava a grupos industriais e agroexportadores. Seu retorno, com o fim da proscrição de seu nome, permitiria sua candidatura para as eleições de setembro de 1973. E seria também a hora da verdade: teria de se definir.

A esquerda peronista, em particular a juventude que se juntou à organização Montoneros3, esperava que a presença enorme e mobilizada das novas gerações pressionasse Perón a se definir em favor de transformações sociais. Ele seria a arca da aliança entre as velhas e jovens gerações para a revolução argentina. Em 20 de junho de 1973, a verdadeira intenção do velho líder revelou-se. Já não havia lugar a especulações. Ninguém, fora os mais teimosos entre esses jovens, acreditava na teoria de que Perón estava cercado por um entorno de direita e que era preciso romper com esse cerco. O Masacre de Ezeiza foi uma amostra do que viria depois. O Comando de Organização (CdeO) e a Concentración Nacional Universitaria (CNU), que levaram adiante a matança4, integraram depois os grupos parapoliciais organizados pelo Ministerio de Bienestar Social que executavam militantes populares. Depois do golpe de 1976, integraram-se aos Grupos de Tareas da repressão militar.

O episódio de Ezeiza foi, portanto, o que marcou a perda das ilusões na possibilidade de uma aliança de classes para o nacionalismo revolucionário na Argentina. Neuroticamente, porém, na América Latina e na própria Argentina a ilusão se renova uma e outra vez e a desilusão adquire a forma de um simulacro teatral. Mais uma vez: Si quieres cambio verdadeiro,/pues camina distinto.5

Referências

  1. Silvia é professora da Unesp e editora do Contrapoder
  2.  Ver <https://www.youtube.com/watch?v=i8PXWD36FDI>
  3. Montoneros era uma organização que vinha desenvolvendo ações armadas desde 1971, mas que depôs as armas diante da iminência de um novo governo peronista em 1973 e se lançou à organização de massas nas escolas, universidades, bairros e lugares de trabalho, onde competia com outras correntes combativas ou pelegas.
  4. Ver: VERBITSKY, Horacio. Ezeiza. Buenos Aires: Contrapunto, 1985.
  5. La vuelta al mundo, de Calle 13. Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=OfIc-yNlXQo>

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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