26/10/2021 – por: Silvia Beatriz Adoue
O governo argentino acaba de dar mais um passo no aprofundamento da aliança com as cadeias exportadoras de commodities e com os setores políticos conservadores, mirando as eleições parlamentares de novembro. E os movimentos sociais integrados como mediadores de políticas públicas também deram um novo passo no sentido da aprovação desse aprofundamento da aliança com os setores exportadores.
O resultado das PASO, primárias eleitorais previstas na legislação argentina, realizadas no dia 12 de setembro, deixou a frente oficialista bem atrás da coligação que apoia o ex-presidente Mauricio Macri. Vejamos a comparação entre os resultados das eleições presidenciais de 2019 e estas primárias parlamentares:
Chapa eleitoral | Eleições presidenciais de 2019 [%] | PASO de setembro de 2021 [%] |
Frente de Todos | 47,79 | 31,80 |
Juntos por el Cambio | 31,80 | 41,50 |
Consenso Federal | 8,15 | |
Frente de Izquierda y de los Trabajadores | 2,83 | 7,58 |
Avanza Libertad | 7,41 | |
Outros | 5,78 | 11,71 |
Brancos, nulos e abstenções | 28,28 | 37,60 |
Mesmo se tratando de uma prévia eleitoral e acontecendo em condições de pandemia, é notável o crescimento da direita macrista e ainda mais notável a perda de votos da chapa do presidente Alberto Fernandes. Merecem atenção o crescimento do apoio à esquerda trotskista e o surgimento de uma direita ultraliberal: Avanza Libertad. Podemos imaginar que votos da direita não macrista de 2019 migraram para o macrismo. E que o grosso das perdas do peronismo se expressou como abstenções, já que os brancos e nulos se mantiveram no mesmo patamar. Isto é, a maioria desses votos perdidos não migrou para a direita.
Três dias após a divulgação dos resultados, a vice-presidenta, Cristina Fernández de Kirchner, publicou uma carta aberta1 com um tom bastante duro, pedindo correções na política governamental, em especial, com relação aos mais pobres. A vice-presidenta falava nos funcionários “parafusados às poltronas”. Essa carta foi lida pelos movimentos sociais que apoiam o governo como uma exigência de mudanças à esquerda no gabinete. Dois dias depois, o presidente Alberto Fernández, efetivamente, anunciou um novo gabinete. A ministra de Segurança, uma antropóloga progressista, foi substituída por Aníbal Fernández, Secretário-Geral da Presidência do peronista Eduardo Duhalde, em 2002. Os movimentos piqueteros o acusam de ser um dos responsáveis pelo assassinato dos militantes Darío Santillán e Maximiliano Kosteki em junho deste ano, assim como por outras ações repressivas que resultaram em mortes. O chefe de gabinete, considerado da ala progressista do kirchnerismo, foi substituído pelo ex-governador da província de Tucumán, Juan Luis Manzur. O ex-governador é conhecido “machirulo”: com posições contra o aborto, obrigando duas menores de 10 e 12 anos estupradas a parir, é também acusado de acobertar traficantes de mulheres para prostituição. O novo titular da pasta de Agricultura é Julián Domínguez, representante direto dos exportadores de soja. Bem para trás ficou o tempo em que a presidenta Cristina Fernández de Kirchner se enfrentava com o setor para aumentar as retenções às exportações. Por último, é preciso dizer que o ministro mais questionado pelos movimentos populares, o titular da pasta de Economia, Martín Guzmán, permaneceu “parafusado a sua poltrona”. O artífice da negociação do pagamento da gigantesca dívida contraída pelo governo Mauricio Macri com o Fundo Monetário Internacional (FMI) não podia ser jogado fora três dias antes do pagamento da primeira remessa! As únicas mulheres que permanecem no gabinete são justamente a ministra das Mulheres, Gêneros e Diversidade, e a ministra de Saúde.
Todo isto acontece enquanto ocorre uma longa negociação do governo com a China para o estabelecimento de megagranjas suínas no território nacional, avança a mineração e a extração de petróleo por fratura hidráulica, a contrapelo da vontade da população dos territórios afetados, explodem conflitos territoriais com o povo Mapuche-Tehuelche, favorecendo a exploração mineral e a cadeia da pasta de celulose, além das lutas dos povos fumigados junto às plantações de soja e milho.
No dia 7 de outubro, um grande ato dos movimentos populares que aderem ao governo aconteceu no estádio do clube Nueva Chicago, com a presença do presidente Alberto Fernández. Como explica o sociólogo Francisco “Fran” Longa2, os movimentos estão completamente integrados como mediadores de políticas públicas com os trabalhadores flexibilizados da assim chamada “economia popular” (as mulheres que mantêm restaurantes populares nas periferias, os trabalhadores de reciclagem de resíduos, as cooperativas de trabalho ou produtivas, etc.), alguns deles propondo renda universal.
Essas organizações de trabalhadores, assim como lideranças que representam os produtores de alimentos do cinturão urbano, que arrendam seu lote para plantar, vêm se pronunciando neste último período em favor da decisão do governo de favorecer um setor exportador, justamente para contar com recursos para políticas de renda que os beneficiem.
A ideia de uma economia popular de circuitos curtos como projeto alternativo ao modelo das cadeias espoliadoras exportadoras tem se aggiornado para essas organizações. Longe de fazerem dessa economia um bastião de soberania alimentar e da consequente autonomia política em torno de um projeto transformador, e mesmo mantendo parte da retórica anti-imperialista, acomodam-se a realizar tarefas que ficam entre as de órgãos públicos e as de organizações não governamentais que capturam recursos. De fato, essas organizações têm sido fornecedoras de quadros para a administração pública do setor social.
O último 17 de outubro, tradicional data da gesta peronista, quando se comemora o Dia da Lealdade, só contou com uma voz contra o pagamento ao FMI: a das Madres de Plaza de Mayo. O ponto fora da curva, claro, só teve efeito retórico.
Observar esses deslocamentos do governo diz-que progressista argentino e sua base popular organizada, assim como o resultado das primárias eleitorais, talvez nos ajude a antecipar quais serão os próximos cenários para a região.
Referências
- Ver aqui o texto completo: https://www.cronista.com/economia-politica/la-carta-de-cristina-kirchner-el-texto-completo/
- Ver e ouvir a entrevista: https://www.radioconaguante.com.ar/post/francisco-longa-movimientos-sociales