Araraquara, 21 de dezembro de 2023
Ontem se comemoraram os 22 anos da rebelião popular na Argentina. Quem convocou a manifestação foram 170 organizações (partidos de esquerda e movimentos territoriais independentes do kirchnerismo, sindicatos e chapas de oposição, feministas e diversidades, estudantes, organizações de direitos humanos, ambientalistas). O sentido político da mobilização era o protesto contra as medidas que o flamante presidente Javier Milei divulgaria em cadeia nacional às 21:00 e contra o protocolo que a ministra de Segurança e ex-candidata a presidenta no primeiro turno Patricia Bullrich lançou para enfrentar as manifestações. Tal protocolo, na prática, proíbe a marcha nas ruas, restringindo as manifestações à calçada.
Foto icônica da rebelião de 2001 em Buenos Aires. Fonte: Enrique García Medina
O segundo turno das eleições já tinha aproximado o ultraneoliberal Milei e a direita mais tradicional, a ponto de o próprio gabinete integrar quadros importantes dessa direita do partido do ex-presidente Mauricio Macri, Propuesta Republicana, mais conhecido como PRO. Além de Patricia Bullrich, o ministro de Economia, Luis Caputo, que havia sido o funcionário da presidência de Macri e que contraiu a dívida impagável com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Por isso podemos dizer que, nessa primeira queda de braço, quem está do lado do governo não é apenas a Libertad Avanza, de Javier Milei, mas também o PRO.
Durante duas horas, Javier Milei e sua equipe, incluindo a ministra de Segurança, monitoraram por câmaras a aplicação do protocolo repressivo na mobilização. Isto demonstra que o governo entendeu esse momento como a primeira queda de braço, já não com o progressismo derrotado nas urnas, mas com a esquerda, com pouca expressão eleitoral, mas com muita presença nas lutas sociais.
A manifestação aconteceu sem a participação dos movimentos territoriais kirchneristas e das centrais de trabalhadores, e apesar das ameaças formuladas pelo governo, segundo as quais quem participasse da mobilização não mais teria acesso às políticas sociais, e de a polícia deter os ônibus para filmar os passageiros e os inquirir sobre se iriam à marcha no centro de Buenos Aires. Quem confirmava, era obrigado a descer do ônibus. Coisa parecida aconteceu nos trens que unem a periferia à capital. Não obstante a enorme operação policial na manifestação, na qual havia mais efetivos que manifestantes, não puderam impedir a marcha pelas ruas, nem a concentração na Plaza de Mayo, onde se leu o documento consensuado pelas organizações que haviam convocado a manifestação.
Fonte: Contrahegemoniaweb
O documento tem como eixos o enfrentamento ao ajuste e à repressão anunciados – contra as demissões e privatizações de empresas estatais, contra a retirada de subsídios dos serviços básicos, contra o extrativismo e o pagamento da dívida ao FMI, pela defesa dos direitos de mulheres e dissidências e pela liberdade de presos políticos.
De fato, e apesar do empurra-empurra aqui e ali, e de pelo menos duas detenções reportadas, a marcha aconteceu e a dispersão foi tranquila. Mas isto aconteceu antes da divulgação em cadeia nacional pelo presidente Milei, acompanhado de seu gabinete (já reduzido por ele a 9 ministérios), de Decretos de Necesidad y Urgencia (DNU), que se tornam vigentes a partir de hoje e são semelhantes às medidas provisórias do Brasil. O Congresso Nacional deverá ratificar ou rejeitar tais medidas posteriormente. Durante os 16 minutos do comunicado, o presidente leu apenas 30 das mais de 300 medidas. A primeira que anunciou foi a revogação da lei que regulamenta os aluguéis de imóveis. O conjunto das modificações desregula o funcionamento da economia em favor dos interesses privados, no campo dos preços, dos salários, dos contratos de trabalho, do patrimônio público, da exploração mineral, do mercado interno, das exportações, do acesso à terra e até dos clubes de futebol. O discurso incluiu, como “vinhetas”, inserções de argumentos ideológicos ultraneoliberais.
Fonte: La Nación
Imediatamente começou-se a ouvir panelaços não apenas nos bairros da capital e na grande Buenos Aires, mas também em várias cidades do interior. Muita gente não se contentou com protestar desde seus domicílios, e se reuniu em esquinas para bater panelas com os vizinhos. E, como aconteceu em 19 de dezembro de 2001, muitos se dirigiram à praça na frente do Congresso Nacional. Essa concentração foi espontânea, repetindo o gesto de 22 anos atrás, quando o então presidente Fernando de la Rua, em cadeia nacional, anunciou o confisco dos depósitos bancários (o famoso corralito) e declarou estado de sítio. Sem faixas ou bandeiras, apenas algumas bandeiras argentinas, as pessoas se autoconvocaram e se ouviu novamente, aqui e ali, a palavra de ordem de 2001: “Que se vayan todos,/ que no quede ni uno solo” (“Vão embora todos,/ que não fique ninguém”). É o piso, o grau zero que permanece na memória da sociedade argentina. Havia também uma reclamação às centrais sindicais: “A dónde está,/ que no se ve,/ esa famosa CGT?” (“Onde está,/ que não se vê,/ essa famosa CGT?”), pela Confederación Nacional del Trabajo, a maior central de trabalhadores na Argentina).
Fonte: Tramas
A situação não é a mesma. O programa do novo governo era amplamente conhecido. E o kirchnerismo e suas derivas não pode se apresentar como contraponto inesperado, assim como aconteceu em 2003. Afinal, ele aderiu ao consenso das commodities, do extrativismo, da flexibilização das relações de trabalho, da privatização fatiada do setor público (ainda mantendo ou reestatizando as empresas estatais) e do ajuste para pagar a dívida com o FMI. As diferenças corriam por conta da gradualidade que dariam ao ajuste.
Os movimentos piqueteros se bifurcaram nas últimas duas décadas. Uma parte deles se adaptou a operar como mediadores eficientes entre demandas e políticas públicas compensatórias. Outra parte recusou-se a esse papel, mas, mesmo levantando debates anticapital, a demanda por políticas públicas está no centro da sua atividade organizativa nos bairros. Assim como aconteceu durante o governo de Jair Bolsonaro no Brasil, que continuou, mesmo que trôpego e sem mediação dos movimentos sociais, com políticas compensatórias, Milei anuncia que atenderá os setores mais vulneráveis com sua política de shock. Afinal, essa é uma correção feita às recomendações do Consenso de Washington na segunda metade da década de 1990, e indicada pelo Banco Mundial. É parte do círculo vicioso da geração interminável de miséria e compensação crescente de uma parte dela, que torna a sobrevivência dos povos cada vez mais dependente de recursos do Estado, à medida que retira a autonomia das práticas de soberania alimentar e auto-organização dos territórios.
As tarefas imediatas dos movimentos estão relacionadas à reconstrução do tecido social, à recuperação da autoconfiança e às experiências comuns que superem a chamada “grieta” (“rachadura”) entre progressismo e direita. Os discursos que a alimentam tornam-se mais virulentos à medida que as diferenças entre um e outro setor político se reduzem. Grande parte dos DNUs anunciados ontem pelo governo provavelmente será aprovada pelo Congresso, em troca de pequenos recursos para províncias e municípios, que nutrem a competitividade eleitoral. E terão a aprovação ou a simples omissão da oposição, que até já tem representantes entre os cargos de confiança do governo Milei. A participação de militantes na manifestação espontânea de ontem é, em todo caso, um bom sinal, de disposição para reconstruir vínculos na luta, que necessariamente incluirá votantes de Milei, para além da pequena política. Não é suficiente, porém, sair à rua. Serve para se olhar, se reconhecer novamente, se reencontrar. Mas, é preciso superar os ciclos de rebelião-fadiga-captura da energia popular e organizativa para falsas soluções.