As balizas da conjuntura brasileira

A conjuntura política é sempre uma análise a quente das contradições que em última instância operam na cena política. No entanto, essa conjuntura, para não ficarmos circunscritos na emergência do politicismo, tem balizas que orientam em última instância os posicionamentos dos sujeitos, organizações e instituições que combatem no espaço das lutas de classes.

Analiso que o marco político-social dessas balizas começa com os acontecimentos das jornadas de junho de 2013. Um conjunto importante da população (juventude trabalhadora do ramo dos serviços, povo pobre das mais diversas periferias, estudantes da educação básica e do ensino superior privado, trabalhadores/as avulsos, etc.) foi para as ruas em centenas de cidades brasileiras. Apresentaram um programa emergencial de luta que passava por melhores salários e melhores empregos, mudança na qualidade do transporte público (contra o aumento da tarifa), melhor atendimento nos postos de saúde e, em particular, reivindicando uma mudança de prioridade na ação do governo federal que, naquele momento, investia uma soma gigantesca de recursos na construção de estádios, visando a realização da copa do mundo, quando esses recursos poderiam ser aplicados nessa pauta solicitada pelo povo nas ruas do Brasil.

Essa pauta popular, na dimensão da luta de classes, e diante da incapacidade da esquerda responder, foi capturada por setores médios da população e transformada em um amplo guarda-chuva, cujo elemento norteador era a pauta contra a corrupção. Essa narrativa de que todas as questões levantadas pela pauta popular não se realizavam em virtude da corrupção do governo foi alavancada pela mídia corporativa, que agiu como representação das diversas frações da burguesia e teve enorme repercussão.

A socialdemocracia tardia, localizada no governo da República, foi muito tímida em responder às reivindicações das ruas e a esquerda socialista, por conta do seu déficit organizativo, não teve condições de realizar o devido enfrentamento. Diante desse quadro político, as hordas da extrema-direita começaram a marchar.

Essa intensa luta das ruas foi capturada pela direita e pelas hordas neofascistas com o apoio dos setores conservadores estabelecidos nas instituições do Estado brasileiro (justiça, ministério público, polícias, forças armadas, parlamento, etc.) e pela ação ativa da mídia que se comporta como porta-voz do patrão. O espaço da luta de classes ganhou uma nova dimensão com a narrativa da extrema direita em melhor posição na correlação de forças, até mesmo para se colocar contra os partidos políticos e, grosseiramente, se colocar numa obscurantista posição “antissistêmica”.

O segundo marco dessas balizas se estabeleceu com o colapso de algumas inflexões políticas que impactaram a história recente do Brasil (da transição de 1985 ao pacto burgo-petista). Essa inflexão política foi superada por uma operação de ruptura que feriu brutalmente a lógica do pacto e se consolidou no movimento golpista de 2016. 

Essas inflexões passaram pela forma política que operou a transição da ditadura burgo-militar de 1964 para a democracia formal, em 1985, que, apesar da pressão social, foi dirigida pelas forças liberais e o consórcio das frações burguesas que vinham perdendo com o último período da ditadura, se realizando pelo alto. Portanto, uma ruptura burguesa com o conjunto de ganhos sociais que se localizou na constituição brasileira de 1988, a partir das lutas dos segmentos proletários e populares. Esse arcabouço também passa pelo rompimento da aliança de classes do burgo-petismo da “carta aos brasileiros”, conformando um caminho para a consolidação da inflexão burguesa que avançou para o golpe de novo tipo em 2016.

Diante dessa construção da política burguesa, o bloco liberal, em conluio com o neofascismo, operou um conjunto de ajustes na ordem estatal, partindo da operação política que levou o Michel Temer ao governo da República e na constituição de um novo consórcio das frações burguesas que se estabeleceu no bloco do poder. Essa vasta operação aprofundou a disputa pelo fundo público, ação bem delineada na lei do teto dos gastos, e nas diversas contrarreformas, a exemplo da reforma trabalhista e previdenciária. O produto dessa lógica levou o país ao primeiro passo do caos; abriu as comportas para a afirmação do ódio de classe aos pobres; permitiu o livre trânsito das representações do obscurantismo; afirmou canais midiáticos para o avanço da teologia da prosperidade e sua pauta hiper conservadora e, por fim, contribuiu para a consistente pauta da mentira ideológica disseminada em profusão nas redes de contágio.

Esse arcabouço conservador-neofascista ganhou espaço diante dos impasses entre as frações burguesas no processo eleitoral que movimentou 2018. A burguesia, de forma oportunista, sentou-se na primeira fila do teatro de operações para apreciar o que se passava no palco da política. Na impossibilidade de se ter um candidato do bloco de forças desse campo, a autocracia burguesa optou por esperar o possível cenário favorável que sairia das urnas. Portanto, diante da operação criminosa do afastamento de Lula do processo eleitoral, esse bloco se sentiu confortável.

Em um cenário marcado pelo ascenso da extrema direita, com uma pauta de costumes fortemente conservadora, numa disputa pautada pelos disparos nas redes de contágio de um conjunto de mentiras gravíssimas, as eleições entraram em tela. Esse processo de crescimento do sentido do voto na extrema-direita ganhou um novo ingrediente com um dado ainda questionável, que incidiu fortemente no processo eleitoral, trata-se do polêmico “atentado” sofrido pelo agitador fascista, Jair Bolsonaro. Todo esse processo conformou o cenário da disputa eleitoral em 2018. Nas cinzas da política turva, venceu o projeto radical da extrema direita.

Com essas balizas, conformou-se um novo espectro político no comando do Estado brasileiro. Trata-se de uma lógica de governo que redefine alianças dentro das frações burguesas, optando, através do ministro Paulo Guedes, pelo apoio ao capital financeiro. Desarticula-se todo o arcabouço do Estado desenhado pela constituição de 1988 e começa a operação do caos controlado e o golpe por dentro das instituições.

O legado do agitador fascista, Jair Bolsonaro, para além da destruição das mínimas condições de funcionamento de um Estado público, foi abrir as comportas para a marcha da extrema direita e das hordas neofascistas no sentido da disputa por uma operação de força que permita o exercício de um governo de exceção. 

Nessa perspectiva bonapartista, a pandemia da Covid 19 é funcional ao projeto do miliciano, pois, tira da cena política (em virtude do necessário isolamento social) a contestação pública e a militância organizada. Portanto, não ter nenhuma ação consequente para a aquisição das vacinas, divulgar o negacionismo, estimular a aglomeração, atacar o isolamento, massificar a ignorância e o obscurantismo são partes constitutivas de um projeto para se apresenta como forte competidor na luta de classes.

Apesar dessa estratégia criminosa ter obtido repercussão positiva para o bloco neofascista, algumas questões estão colocando na berlinda o modo de operar na política do governo de Jair Bolsonaro. A Covid ganhou proporções inaceitáveis, a crise social pode ficar sem controle e gerar um profundo caos político. Entram de forma impactante na cena política brasileira o desemprego, a fome e a carestia. E, para além desse quadro, as eleições de 2022, começam a criar ruídos no ambiente da competição liberal burguesa com novos fatos. Um deles é, até agora, a possibilidade de o ex-presidente Lula ser novamente candidato.

Apesar do equívoco de se colocar as eleições no posto de comando da política atual, o jogo da disputa institucional na democracia formal está sendo jogado. Bolsonaro, em queda de aceitação popular, vai investir na mentira, na compra do Centrão, na animação das hordas neofascistas e no mesmo projeto burguês que operou em 2018. Na falta de unidade das frações burguesas, ele se colocará novamente como o Bonaparte para, em última instância, defender os interesses da burguesia contra os trabalhadores.

A esquerda, não conformada na lógica da democracia formal, deve priorizar as batalhas pela vida (vacinação já), contra as diversas reformas golpistas, contra as privatizações e em defesa dos serviços públicos. O momento político exige do campo do trabalho unidade de ação, firmeza na luta de classes, capacidade de superar o déficit organizativo e unidade suficiente para construir uma forte movimentação proletária, popular e de esquerda que tenha como finalidade a reorganização da classe trabalhadora brasileira e derrotar Bolsonaro e Mourão.

Milton Pinheiro

Cientista Político, professor de história política da UNEB, integra os conselhos editoriais de várias revistas marxistas, é pesquisador na USP. Autor/organizador de oito livros, entre eles: "Ditadura: o que resta da transição"

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *