As eleições e a miséria brasileira!

Aquele que se ajoelha diante do fato consumado
não é capaz de enfrentar o futuro.
Leon Trotsky

1 – O Brasil no pós-segundo turno das eleições municipais de 2024 inspira uma profunda análise do cenário político realmente existente. Algo que seja empiricamente consistente, mas que encontre, no desvelamento da interpretação política, um sentido para compreender o impacto eleitoral ocorrido nos dois turnos dessas eleições. No entanto, ainda são jogados ao vento da tempestade — que deve ser medida como termômetro político — aspectos que se apresentam combinados ou separados, mas que apontam para reflexões ora pobres, ora duvidosas, em virtude do epílogo que se manifesta como defesa antecipada dos erros da “esquerda” que está confortável no gabinete da ordem.

Leituras repetitivas de alguns analistas do juízo final, que têm como lógica explicativa uma eterna crise de direção na esquerda, simpáticos profetas que conseguem encontrar malabarismos esquemáticos para explicar que temos uma esquerda frentista, outra radical/esquerdista e, no entre luz, o Psol, mesmo sem se aprofundar no fato de que dentro desse partido também existem essas duas versões.

Ainda temos aqueles que creditam a derrota ao papel impactante e moralmente abjeto do bolsonarismo e suas ações à margem da lei. Surgem outros, em geral arquitetos das redes virtuais, que, com odor populista, aventuram-se em afirmar um discurso da janela indiscreta da lógica pequeno-burguesa de que a esquerda não consegue dialogar com as diversas periferias e favelas, vulgarmente entendidas, por essas entidades da noite reluzente (onde refletem seus notebooks), como algo compacto e universal, sem conseguir entender a enorme diversidade e pluralidade dessa geografia humana do ponto de vista político, ideológico, racial, de gênero, etário e dos desejos de pertencimento desses sujeitos sociais expostos ao massacre da ordem das opressões e da exploração capitalistas.

Ocorrem, também, explicações que já antecipadamente afirmam alguns fatores da derrota. Desde a falta de iniciativas empreendedoras para a juventude pobre; falta de interlocução que possa chegar à periferia – nem que ela seja platônica – e, a cereja do bolo, inexistência de qualquer ação para abrir um diálogo entre a esquerda e o neopetencostalismo. Sem falar, por outro lado, que existem críticas estéreis e inconsequentes à manifestação, em campo aberto da política, dos discursos que afirmam as identidades conflitivas.

Contudo, no varejo das avaliações, existem ainda afirmações oficiais que tentam comprovar a vitória do PT a partir dos números de 2020, recorrendo ao pequeno aumento de prefeitos e vereadores eleitos, mas fingindo desconhecer que esse mesmo partido governa a República. Os áulicos que desposam esses argumentos se aproveitam da cansada informação de que, desde 2016, o petismo é atacado pelo lavajatismo, pela mídia corporativa e pela institucionalidade do Estado burguês.

Portanto, nada de novo no front como justificativa para explicar a pequena “vitória”. Nesse mesmo campo, alguns mais embevecidos pela defesa do petismo qualificam que o bolsonarismo foi derrotado, também porque os partidos de direita, que foram amplamente vitoriosos, fazem parte da coalizão de União Nacional do governo burgo-petista. Mesmo com esse abuso que desqualifica a análise, ainda há aqueles que, no ambiente do fato consumado, consideram que não se pode fazer nada em razão da composição do Congresso que temos e, diante disso, o PT e Lula foram vitoriosos.

No canto da margem de erro, sem maior capacidade explicativa neste vasto cenário em questão, um conjunto pequeno tenta explicar o processo eleitoral pela lógica da abstenção e do voto nulo, especulando que essa forma/manifestação política denotaria uma imensa insatisfação das massas populares e que esse “sentimento” pode ser capturado pela esquerda. Essa interpretação do processo eleitoral não apresenta o diverso e amplíssimo campo de motivações para o não comparecimento, que pode ter sido marcado seja pelo feriado prolongado, seja por outros fatores que justificariam indisposição política ou crítica ao processo, que pode ter conotação ideológica de diversas matizes, até mesmo de direita, mas isso, por enquanto, sem uma profunda investigação, não pode ser comprovado.  

Pode-se examinar assim que existe um conjunto diverso, confuso, plural e rico de análises. O que por si só já denota a importância do último processo eleitoral e sinaliza, com essas preocupações, para a possibilidade de entender novos caminhos que possam melhorar o posicionamento dos competidores da política no espaço da democracia formal, gerando exames antecipados de trilhas para a intervenção política.

2 – Em uma leitura mais precisa dos números que conformaram perdedores e ganhadores, podemos comprovar que os partidos de direita, vulgarmente chamados de “Centrão”, saíram vitoriosos do processo eleitoral, com forte avanço da extrema direita de caráter neofascista. Nesse mapa político, os partidos que mais elegeram prefeitos no ranking dos maiores competidores foram: PSD (885), MDB (853), PP (746), União Brasil (583), PL (509), Republicanos (433), PSB (309), PSDB (273), PT (252), PDT (151), Avante (135) e Podemos (122), entre outros. É importante salientar que a esquerda representada pelo PCB, PSOL, PSTU, PCO e UP não elegeu nenhum prefeito e que o PC do B elegeu 19. 

No vasto território da disputa política no espaço municipal é inadequado dizer que a disputa não é ideológica. Sabemos que esse espaço de confrontação é marcado pelo fisiologismo, pela influência do poder local, pelos imediatos interesses da população, pela subordinação religiosa, mas tudo isso se reveste do componente ideológico. E foi nesse território de disputa, também ideológica, que foram eleitos os vereadores/as que conformam uma imensa maioria da direita: MDB (8.113), PP (6.953), PSD (6.624), União Brasil (5.490), PL (4.961), Republicanos (4.649), PSB (3.593), PT (3.130), PSDB (3.002), PDT (2.503), Podemos (2.329) e Avante (1.525), entre outros. No campo da esquerda, PCB, PSTU, PCO e UP não elegeram nenhum vereador, já o PC do B elegeu 354 e o PSOL elegeu 80.

As eleições nas capitais apontam uma forte presença da direita e da extrema direita, com a vitória do PSD (5), MDB (5), União Brasil (4), PL (4), Podemos (2), PP (2), Avante (1), PSB (1), PT (1) e Republicanos (1). Esse quadro praticamente se repete nas grandes cidades do país. A avaliação consequente desse processo é que Gilberto Kassab, Tarcísio de Freitas, a Igreja Universal do Reino de Deus, Bolsonaro, família Barbalho, cúpula do União Brasil e forças de direita e extrema direita saíram-se vitoriosos, enquanto o PT, Lula, PSOL e a esquerda perderam nessa disputa eleitoral.

3 – O mapa eleitoral deve acender a luz da interrogação no governo Lula, no PT e no PSOL, e chamar à reflexão o conjunto da esquerda revolucionária. O consórcio do gabinete da ordem governista composto pelo PT, PC do B, setores majoritários do PSOL, segmentos sociais, organizações populares e centrais sindicais precisa examinar a forma política pela qual o governo que apoia está se consolidando como um governo de centro, configurado numa coalizão de União Nacional e operado pela lógica indissociável da relação burgo-petista.

O governo Lula tem se submetido com resignação ao controle burguês, sem nenhuma capacidade ou interesse de reagir. A direita representada pelo Centrão tem obtido benesses, a exemplo das emendas parlamentares quase secretas, que em grande medida também impactaram fortemente na vitória da direita e na derrota da esquerda. Para além dessa infâmia institucional, o governo age para retirar direitos (corte no BPC, no seguro-desemprego), age contra o serviço público e os agentes públicos a partir da reforma administrativa que está em debate, faz cortes orçamentários em áreas essenciais para a vida do povo, como saúde, educação básica e superior, prevenção a desastres ambientais, etc. Sem falar na obstinação do ministro da Fazenda em destruir a vida social para operar o déficit zero como forma de subserviência ao “mercado”.

Existe uma crescente frustração com o governo Lula e a condução do PT, fato que só faz fortalecer a direita e a extrema direita, como também os ressentimentos políticos que podem operar um deslocamento de segmentos populares para a direita. Lula, o governo e o PT não dialogam com as massas trabalhadoras, não dialogam com a esquerda. Lula repete a fórmula ultrapassada e derrotada de que ele resolverá os problemas localizados do povo sem politização dessas questões. Enquanto isso, a direita e a extrema direita exercem uma densa e vulgar politização das questões que elas consideram importantes para movimentar as massas populares e deixar ativo seu núcleo de confrontação militante.

O governo Lula, o PT e sua forma de governar estão confortavelmente estabelecidos na lógica do controle instituída pelo PP, União Brasil, Republicanos, MDB e PSD. Não se percebe nenhum sinal tático que sinalize para uma mudança de rumo nessa relação. O povo continua não sendo chamado ao centro da luta que poderia mudar a correlação de forças e que terminaria por impactar no Congresso Nacional. O governo burgo-petista age na lógica do Estado como estimulador do mercado, e o mercado, como gerente do governo.

A frente ampla articulada por Lula e pelo PT tornou o atual governo refém do Centrão e derrotou o campo da social-democracia tardia no processo eleitoral deste ano, assim como permitiu a vitória das forças de direita e o avanço da extrema direita. Para além dessa nítida questão, a incapacidade política desse campo (Lula-PT) somou-se a uma total ausência de projeto de caráter popular para dialogar com a juventude, as massas populares, as mulheres e segmentos de “classe média”, abrindo um imenso corredor para o surgimento de lideranças populistas, a exemplo do coach Pablo Marçal, um quadro da extrema direita que teve força para polarizar as eleições em São Paulo e gerar engajamento em outras partes do Brasil.

4 – A esquerda da ordem se apresentou para uma grande disputa nas eleições da capital paulista. Foi articulado um amplo espectro de forças de esquerda para enfrentar o candidato de Bolsonaro e principalmente do Tarcísio de Freitas, o prefeito Ricardo Nunes. Todavia, a campanha de Guilherme Boulos foi incapaz de mostrar um perfil de oposição, caracterizando-se mais como uma campanha ao estilo Lula da Carta aos Brasileiros do que de alguém que queria mostrar o contraponto ao sistema de poder na capital paulista. O candidato mostrou-se rendido (o Boulos atual derrotou o Boulos das lutas históricas), exorbitou da indefinição ideológica, não entrou nas principais pautas que colocavam na berlinda o controle da prefeitura pelos empresários e fugiu de questões gerais, a exemplo da venda da SABESP, aborto, drogas, etc.

Foi uma campanha rica (80 milhões) que apenas conseguiu ser um instrumento dos marqueteiros e que, com um tom burocrático, não empolgou a militância de esquerda, muito menos a juventude, como conseguiu em 2020. Optou pela despolitização do discurso, perdeu combatividade e, ao final, apelou para a lógica do empreendedorismo individualista e para o fortalecimento do armamento da Guarda Municipal. Isso explica o quanto a campanha estava sem rumo político e ideológico. Para coroar o sentido da tragédia, no segundo turno Boulos aceitou ser convidado do Pablo Marçal para uma conversa política. O que vimos foi o exercício do bom mocismo do representante da esquerda que não conseguiu confrontar o populista de extrema direita.

É uma lástima o sentido dos “comentários” que surgiram no PSOL sobre a derrota. O próprio candidato disse que a campanha dele representou “a dignidade da esquerda brasileira”; uma corrente interna do partido soltou um card dizendo: “Parabéns pela força e pela coragem, Boulos!” Apesar do sentido de solidariedade, essa explicação moral não dá conta da derrota e nem deve.

5 – A direita e a extrema direita neofascista conseguiram uma vitória e um avanço expressivo na atual conjuntura política. Essa vitória eleitoral impacta na vida social, alimenta forças conservadoras e reacionárias, ganha espaço popular e fomenta pautas racistas, machistas, LGBTs fóbicas, irracionalistas e xenófobas. E o ovo da serpente entrou em fermentação.

No Brasil atual não existem projetos em disputa. A miséria brasileira é manifestada, por um lado, pela social-democracia tardia que lidera um governo de centro. Essa lógica foi explicada pelo ministro Paulo Pimenta, que afirmou que Lula e o governo são de centro e por isso saíram vitoriosos do processo eleitoral. Um governo composto por uma coalizão burgo-petista, com caráter de União Nacional, quase sem nenhuma conciliação de classes, haja vista que os interesses da classe trabalhadora não encontram representação nas ações do governo; por outro lado, manifesta-se pelo movimento em bloco da extrema direita, que consegue se apresentar para as massas populares como uma força oposicionista, de caráter antissistêmico (o que é ridículo) e com uma pauta nítida para o exercício da política.

Essa miséria brasileira fica mais evidente no processo eleitoral, porque o sistema de partidos no Brasil, com raras exceções à esquerda, é uma estrutura de negócios (cf. Sofia Manzano). Portanto, essa nova polarização entre direita e extrema direita representa uma particularidade manifestada pela necessidade de liderar a estrutura de negócios.

Cabe, em última análise, uma autocrítica e uma redefinição da esquerda. Sem ilusões com o campo da ordem que já capitulou diante do projeto burguês, mas com força para retomar o trabalho de base, capacidade para entender a nova configuração da classe trabalhadora e, portanto, agir para desvelar, sem lacrações, o sentido da luta contra as opressões da sociabilidade capitalista, avançar na divulgação de seu projeto estratégico, operar esse projeto no balizamento das mediações táticas, construir um denso programa com força para articular a unidade de ação do campo da esquerda socialista, agir com convicção e criatividade no diálogo com as massas proletárias e populares. Afinal, a esquerda tem o que dizer (cf. Mauro Iasi).


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

Milton Pinheiro

Cientista Político, professor de história política da UNEB, integra os conselhos editoriais de várias revistas marxistas, é pesquisador na USP. Autor/organizador de oito livros, entre eles: "Ditadura: o que resta da transição"

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