Aline C. F. Braga do Carmo 1
Henrique Tahan Novaes
O Brasil está vivendo o avanço de uma grande onda autoritária, sendo que esta tem repercutido e afetado diferentes espaços organizacionais. A educação não ficou ilesa frente a este tsunami autoritário e conservador que vem tomando conta do país desde o Golpe de Estado em 2016 e se fortaleceu com a posse de Jair M. Bolsonaro.
É possível verificar este avanço do conservadorismo autoritário no interior das instituições educacionais ao observar os recorrentes processos de intervenção na escolha dos dirigentes das instituições federais – Universidades e Institutos.
O presidente, junto com seus Ministros da Educação, desde o seu primeiro ano de mandato, vem realizando sucessivas interferências na indicação ou escolha dos dirigentes máximos das instituições. Com isso estão desrespeitando as escolhas das comunidades e rompendo com a autonomia destas instituições, autonomia esta prevista na Constituição Federal de 1988 no Art. 207 como uma prerrogativa legal (BRASIL, 1988).
As intervenções demonstram o caráter autoritário que alicerça o governo Bolsonaro e seu descomprometimento com os ritos democráticos que teoricamente deveriam alicerçar a sociedade brasileira e as instituições de educação, prevalecendo os interesses negacionistas em detrimento dos interesses públicos.
O país vem então colecionando notícias de intervenção governamental, sendo que até o presente momento – novembro de 2020, o país já possui dezoito situações de intervenções, distribuídas entre Universidades Federais (UF), Institutos Federais e Cefets. É importante destacar que o governo vem se valendo de diferentes estratégias para consolidar as intervenções, haja vista que apesar de todas serem parte da esfera federal, cada uma delas possui especificidades nas suas legislações.2 Porém apesar de diferentes mecanismos de intervenção, já é possível observar que as respectivas intervenções compõem uma estratégia política de aparelhamento por parte do governo federal das instituições públicas de educação a fim de dirimir e aniquilar a autonomia, tão necessária a estas instituições públicas de ensino. Os reitores indicados também passam a dar uma força política maior a grupos privatistas e de extrema direita, que em geral são minoritários ou não tinham tanta expressão nas universidades e institutos.
O recurso da intervenção passou a ser a ferramenta mais utilizada pelo atual governo. Podemos afirmar que trata-se de algo que tornou-se sistêmico e recorrente. Logo, a cada pleito eleitoral das instituições de ensino federal, a pergunta que paira no ar é: seremos respeitados quanto a nossa escolha ou o poder executivo novamente irá se valer de subterfúgios pseudo-legais para interferir na gestão das instituições?
Institui-se uma política de medo, criou-se um clima de instabilidade, insegurança e desconfiança frente a ritos históricos e essenciais para a manutenção do papel social das Universidades e Institutos, pois a medida que um governo anti-ciência, ultraneoliberal3, fundamentalista, autoritário e conservador, como o que está a frente do Brasil, tende a aparelhar as instituições, perde-se a garantia de que elas atuem para ofertar um serviço público de qualidade socialmente referenciado e que atenda aos interesses científicos das comunidades em que estão inseridas. Os aspectos sociais que devem mover as instituições e a produção científica vão sendo paulatinamente secundarizados, a fim de atender as demandas bolsonaristas que caminham para a irracionalidade e adesão plena a racionalidade do mercado.
O sufocamento pretendido pelo governo federal de nossas instituições de ensino, seja pela via da intervenção, do corte orçamentário, do corte de bolsas e ou da política do medo, sob o argumento de “combate aos comunistas”, acaba por reforçar nossa dependência científica e tecnológica.
A escolha dos dirigentes nas Universidades Federais (UF) e Rede Federal (engloba IFs, Cefet e Colégio Pedro II) se dá de forma distinta. A particularidade da Rede é que segundo a Lei 11.892/2008 (Brasil, 2008) e o Decreto nº 6.986/2009 (BRASIL, 2009) não há lista tríplice quanto a escolha dos dirigentes, mas sim o envio do nome vencedor do pleito, sendo que compete ao presidente referendar a escolha das comunidades, já nas UFs em virtude da Lei nº 9.192/1995 há a existência de lista tríplice, sendo que cabe ao presidente definir quais destes será nomeado.
Vale ressaltar que este modo de nomeação é um resquício da Ditadura empresarial-militar e nos mostra que não conseguimos “redemocratizar” de fato o país e muito menos as eleições para reitores. Para Florestan Fernandes, as lutas sociais dos anos 1980 não foram suficientes para arrancar as rédeas do país do controle dos militares e das classes proprietárias.
De qualquer forma, desde a “redemocratização” há uma tendência majoritária de nomear o candidato mais votado, a fim de respeitar a escolha das Universidades e a autonomia universitária.4 Porém este “respeito” vem sendo negligenciado de forma explícita pelo atual governo, sendo que as nomeações tanto nas UFs e na Rede Federal estão sendo feitas conforme os interesses políticos do governo e não mais conforme os ritos democráticos.
No que tange as intervenções nas UFs o governo se vale de uma prerrogativa legal autoritária e retrógrada, a qual nenhum dos governos anteriores comprometeu-se a revogar, no entanto no que tange a Rede Federal as intervenções são mais trabalhosas para o governo, haja vista a existência do Decreto nº 6.986/2009, que garante a nomeação do primeiro colocado, exige que o governo atue por outros caminhos. Para tanto ao longo destes meses de governo Bolsonaro foram publicadas duas Medidas Provisórias (MP) que tentavam inviabilizar as escolhas democráticas, sendo estas as MP nº 914/2019 (BRASIL,2019) e MP nº 979/2020 (BRASIL, 2020), ambas caíram em desuso, não estando mais em vigor e assim o sendo, o governo institui de modo autoritário processos administrativos e critérios que inviabilizam as posses dos Dirigentes eleitos que os desagradam. Criam subterfúgios pseudo-legais para descumprir a legislação vigente.
Elencaremos de modo cronológico as dezoito instituições que estão vivenciando processos intervencionistas, sendo a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (CEFET-RJ), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), Universidade Federal do Semi-Árido (UFERSA), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e nas duas últimas semanas as Universidade Federal do Piauí (UFPI), Universidade Federal Sergipe (UFS).
Apesar das particularidades de cada uma das intervenções, há uma regularidade quanto ao uso político das nomeações a fim de atender a efetivação do projeto ultraneoliberal encaminhado pelo governo Bolsonaro e o desmonte da educação pública do país.
Ao mesmo tempo que as forças ultraliberais tentam neutralizar o avanço das pautas democráticas “por cima”, através da indicação de reitores conservadores, elas também atuam “por baixo”, ao dividir sindicatos, intervir em sindicatos, como o caso da ADUNESP Marília, com uma perseguição política travestida de sindicância administrativa. Não pode também ser negligenciada a atuação da extrema direita no poder via estrangulamento financeiro do complexo público de ensino superior e pesquisa, criando aquilo que Roberto Leher vem chamando de “Universidades Zumbi”, pois estas existem mas deixam de existir, à medida que são asfixiadas pela falta de recursos.
Neste cenário, as ciências humanas são taxadas de ciências “comunistas” e “inúteis” pois supostamente não dão respostas práticas para a melhoria da vida das pessoas.
Por último, mas não menos importante, cabe lembrar dois exemplos históricos. As universidades italianas e portuguesas levaram muito tempo para “sanear” os fascistas que entraram em seus espaços. No Brasil não será muito diferente, teremos que travar uma longa luta para faxinar o pensamento ultraneoliberal, negacionista e bolsonarista.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. 25.º ed. São Paulo: Atlas, 2005.
______. Lei nº 9.192 de 21 de dezembro de 1995. Altera dispositivo da Lei 5.540 de 28 de novembro de 1968, que regulamentam o processo de escolha dos dirigentes universitários. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9192.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.192%2C%20DE%2021%20DE%20DEZEMBRO%20DE%201995. Acesso em: 28 de dez. de 2020.
______. Lei nº 11892, de 29 de dezembro de 2008. Institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras providências.
______. Decreto nº 6.986 de 20 de outubro de 2009. Regulamenta os arts. 11, 12 e 13 da Lei no 11.892, de 29 de dezembro de 2008, que institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, para disciplinar o processo de escolha de dirigentes no âmbito destes Institutos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D6986.htm. Acesso em 28 de dez. de 2020.
______. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/ emc/emc95.htm. Acesso em: 18 de jul. de 2020.
______. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 914, de 24 de dezembro de 2019. Dispõe sobre o processo de escolha dos dirigentes das universidades federais, institutos federais e do Colégio Pedro II. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Mpv/mpv914.htm. Acesso em: 28 de jul. de 2020.
______. Medida Provisória nº979 de 09 de junho de 2020. Dispõe sobre a designação de dirigentes pro tempore para as instituições federais de ensino durante o período da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da covid-19, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-979-de-9-de-junho-de-2020-261041611. Acesso em: 28 de jul. de 2020.
LEHER, Roberto. Autoritarismo contra a universidade: o desafio de popularizar a defesa da educação pública. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, Expressão Popular, 2019.
______. Guerra Cultural e Universidade pública: O future-se é parte da estratégia de silenciamento. In: GIOLO, Jaime; LEHER, Roberto; SGUISSARDI, Valdemar, Future-se: ataque a autonomia das instituições federais de educação e sua sujeição ao mercado. São Carlos: SP: Diagrama Editorial, 2020, p. 107-152.
SARAIVA, Luiz. Alex. Silva. O plantio do desamparo. Farol – Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 4 (11), 2017, p. 1135-1146.
SAFATLE, Vladimir. Protestos de 2013 foram o 11 de Setembro da direita brasileira. Folha de São Paulo, São Paulo, 4 nov. 2018.
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SILVA, Maurício Roberto da; PIRES, Giovani De Lorenzi; PEREIRA, Rogerio Santos. Manifesto contra o neoliberalismo totalitário, a destruição da educação, do meio ambiente, da ciência, da cultura e do ministério do esporte no governo Bolsonaro. E pelo chi, chi, chi, lê, lê, lê!!!. Motrivivência, v. 31, n. 60, p. 01-18. 2019.
Referências
- Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação na UNESP Marilia
- A fim de compreender os processos de intervenção algumas legislações se colocam na centralidade, sendo a primeira a Constituição Federal de 1988, a qual garante a autonomia universitária, respeito as deliberações democráticas (BRASIL, 1988), a segunda legislação é Lei nº 9.192 de 21 de dezembro de 1995, a qual altera a Lei nº 5.540 de 28 de novembro de 1968 e regulamenta a escolha dos dirigentes universitários (BRASIL, 1995) e por fim a análise da Lei nº 11.892 de 29 de dezembro de 2008 a qual versa sobre a criação da Rede Federal de Educação Profissional, Cientifica e Tecnológica (BRASIL, 2008) e o Decreto nº 6.986 de 20 de outubro de 2009, que disciplina a escolha dos dirigentes da Rede Federal de Educação.
- A terminologia ultraneoliberal passou a ser utilizada após o Golpe de Estado de 2016 por diferentes autores, a fim de caracterizar a nova fase político-econômica do país, este conceito está em processo de construção, contando principalmente com as contribuições de Roberto Leher (2019; 2020), Saraiva (2017), Silva; Pires; Pereira (2019), Safatle (2018; 2019), dentre outros. Esta nova etapa do neoliberalismo no Brasil caracteriza-se pela intensificação das políticas neoliberais, acrescidas da violência, do autoritarismo e adesão plena ao conservadorismo. Sendo que esta concepção ultraneoliberal vem ramificando-se nas diferentes esferas da vida social.
- Vale lembrar que no Estado de São Paulo, houve indicação do 2º ou 3º nome em alguns momentos. O caso mais recente é o de Rodas na USP.
É inaceitável essa intervenção. Docentes, estudantes e funcionários devem se organizar nacionalmente e ir para o embate contra o autoritarismo sem limites deste desgoverno. Fora Bolsonaro! Fora militares!