Cinco anos após o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomez, independentemente das recentes revelações político-midiáticas, costuradas pelo jogo de interesses que costuma movimentá-las, a única grande certeza exposta pelo caso é a da hegemonia da estrutura miliciana. Imagens apagadas, fotos excluídas, áudios desaparecidos, testemunhas silenciadas, registros ocultados e qualquer rastro anulado. Sem citar a descontinuidade de delegados e promotores, além das crises nas relações institucionais dos envolvidos na solução. O grande saldo do caso é ele nos dizer como as milícias agem. O crime é perfeito porque o Estado é perfeito. Executivo, Legislativo e Judiciário unidos na proteção daqueles que interessam ao grupo que está no poder, seja qual grupo político for. Assistimos até mesmo à ação da milícia de esquerda, com direito a primeiro escalão entre os vingadores adversários do fascismo. Milícia se tornou uma mediação universal multifatorial que funciona para qualquer coisa: resolução de conflitos comunitários, ganhos econômicos dos envolvidos em seus múltiplos e milionários negócios, roubos e sistemas de proteção e recuperação, controle de empregos e prestação de serviços por organizações sociais, todos os tipos de tráficos: drogas, armas, munição, cigarros etc., e, não podemos esquecer, obtenção de voto. E para onde vai esse imenso rio de grana e poder? Além de para o mercado financeiro, desagua, inevitavelmente, na política, onde o Estado reina. As eleições são a apoteose dessa hidrografia moderna da governança criminal com suas inundações permanentes das diversas esferas da vida humana. Marielle e Anderson são apenas corpos que boiam nessas águas, como tantos que continuam boiando pelos rios da Baixada Fluminense e do país.
Independentemente do frenesi que a busca pelos mandantes traz, permanecemos perdidos no labirinto do caso e, mesmo que os nomes dos que deram as ordens para matá-los sejam revelados, o que não volta atrás não é somente a vida de ambos, mas as relações políticas e econômicas que se aprofundaram ao longo desse período. Por exemplo, o avanço do Comando Vermelho – CV em territórios da Zona Oeste do Rio de Janeiro, anteriormente dominados pela milícia, por incrível que pareça tem a ver com a milícia. A estrutura policial, berço da milícia, simplesmente não suporta mais a milícia. Ao invés de dividir o tempo todo a grana dos negócios legais-ilegais e das extorsões com seus colegas policiais-milicianos, percebe-se que é mais vantajoso fazer negócio com uma facção do tráfico, como o CV, que paga conforme o acordo e não vai ficar obrigando-os a repartir os ganhos o tempo todo. O efeito milícia ocorre sobre todo o sistema de segurança pública na forma do vislumbre de ganhos, do gerenciamento das atividades e grupos e da percepção de reconfigurações mais vantajosas. Não é à toa que os agentes públicos de segurança em Belford Roxo foram os mais eficientes cabos eleitorais, conseguindo as maiores votações eleitorais do estado para os representantes milicianos, impulsionando a campanha lulista e emplacando ministério.
Foi assim que o caso Marielle-Anderson se transformou no que agora assistimos: um simulacro. Resolvê-lo transformou-se na grande vitória sobre as milícias e suas forças. O caso impulsionado torna-se uma série em busca de culpados, a serem revelados no capítulo final. Todo o debate e a atenção se voltam para os nomes envolvidos. O clímax será o desvendamento, a revelação de todos os envolvidos, a trama desnudada e suas implicações. Mas enquanto o enredo se desenrola, a série vai tomando o lugar do real. O desvelamento muta-se em ocultamento. Os assassinados se tornam bandeiras de uma falsa vitória. A alegria escorre em ondas amargas que retornam sobre nós. Culpados presos e justiça feita, voltamos para nossas casas, onde os verdadeiros senhores nos esperam, com sua indisfarçável felicidade por se manter tudo como está.
Ações contra milícias não se inscrevem mais somente no patamar de investigações policiais e dos processos penais dentro dos percursos da lei e de suas instâncias. Nem se restringem a dimensões individualizadas de pena e punição. Se não se enxergarem as estruturas políticas e econômicas submersas que as movimentam, que prosseguem e nos oprimem, jamais conseguiremos restringi-las. Milícias hoje são governos estaduais, deputados federais e estaduais, prefeitos e vereadores. Milícias são o empreendimento capitalista mais rentável e bem-sucedido que a sociedade brasileira criou, entrelaçadas com empresas, mercados financeiros, multinacionais e grandes projetos. Milícia é a justiça que nos normatiza. A governabilidade, em busca de votos no Congresso e alianças com a direita, que torna normal a convivência com aqueles que compõem o quadro miliciano e se beneficiam com suas ações, resulta no cinismo que transforma rendição em única possibilidade. A gigantesca desigualdade de um modelo econômico neoliberal que desmonta direitos, precariza as relações de trabalho e não toca nos milionários donos da grana e do poder estava no centro daquilo contra o qual Marielle lutava, em sua busca por igualdade e proteção dos mais pobres. Aceitar o simulacro no qual seu caso se transformou é incorrer na destruição de seu legado e no apagamento das chamas da esperança que ainda sobrevivem em nós.
Mais uma intervenção de qualidade, analítica e de engajamento, do prof. José Cláudio! PARABÉNS!