O Brasil tem sido uma das retaguardas das lutas sociais na América Latina e no mundo. Efeito de anos de conciliação lulista de classes no Estado e na sociedade civil, que desarmou e apassivou tantos sindicatos e organizações populares, nossa ex-querda sistematicamente percorre o caminho contrário ao das grandes mobilizações de rua e dos movimentos sociais radicalizados que conquistaram uma Constituinte no Chile, abalaram o governo de direita na Colômbia e venceram as eleições no Peru por fora do sistema político tradicional.
Para nós, socialistas, apenas as lutas desde as bases da sociedade são capazes de derrotar o capitalismo, a exploração e a alienação do trabalho. Por isso, a liberdade do trabalhador é um direito político fundamental. Expressando-se, protestando e organizando-se autonomamente, os oprimidos podem construir uma sociedade nova (ou mesmo transformar regimes oligarquizados como o de Cuba – em que pese sua origem revolucionária).
Já social-democratas, reformistas e populistas (todos neodesenvolvimentistas e capitalistas, na verdade), que vem a ser a maioria da ex-querda contemporânea, mobilização popular boa é exclusivamente aquela que se volta contra governos neoliberais. Tal é a razão pela qual lulistas e seus asseclas silenciaram quando as classes populares sul-americanas foram às ruas também contra governos progressistas na Bolívia, no Equador e em outros países. Os representantes intelectuais desse progressismo decadente agem da mesma forma, caso da diretoria da CLACSO nos últimos anos.
São os mesmos que tentam esconder a ação imperialista do Brasil no Haiti, sob os governos Lula e Dilma, em conluio com os EUA. Intervenção que massacrou negros e pobres, o que ocorre até hoje nas favelas brasileiras, empoderando o reacionarismo das ocupações militares lulistas no Rio de Janeiro e abrindo caminho para o encontro das altas patentes das Forças Armadas com o bolsonarismo de viés popular. Mais uma vez o reformismo alavancou o conservadorismo, o que é recorrente na história política nacional.
Contudo, a política do pânico continua, espalhando fakenews como a do golpe de Bolsonaro, que ele tanto diz que vai dar – por si só sinal da insegurança presidencial numa ação que seria repudiada pela burguesia internacional 1. Antes o golpe (que já foi dado por Temer, etc, conforme o moto-contínuo da narrativa lulista) seria bancado pelo imperialismo; agora que não há Trump, ninguém imagina que Biden sustente um presidente que não reconheceu sua vitória, a não ser bem depois da tragicômica invasão do Capitólio. Desconstruído o nacionalismo metodológico, que considera – à maneira da década de 50 do século passado – ser o “imperialismo” o responsável pelas dificuldades de nosso desenvolvimento (capitalista, supõe-se), ainda assim muitos seguem acreditando no fascismo tupiniquim, defendendo a democracia burguesa e temendo o agressivo mas já desdentado Bolsonaro. Neste ponto, nossos corruptos e autoritários militares passam a ser o móvel explicativo para quem faz política tomado pelo pânico, verdadeira tradução da ausência da aposta permanente e estratégica do marxismo nas lutas da classe trabalhadora.
No entanto, o medo sob a pandemia foi vencido. Precedida por trabalhadores de aplicativos e torcidas antifascistas e pelo protesto negro, a militância da esquerda tradicional finalmente foi às ruas contra o genocídio bolsonarista. As Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo buscam moderar e controlar a raiva popular contra o desgoverno federal. Em obediência aos interesses eleitoreiros de Lula e Boulos, PT e direita do PSOL querem apenas desgastar Bolsonaro. Mas o lulismo e a ex-querda foram surpreendidos pela criação da Frente Povo na Rua, composta pela esquerda psolista e outros partidos que se mantêm socialistas e não rebaixam seus programas em nome do apoio ao menos pior contra o “mal maior” (o que a CSP-Conlutas vem fazendo há anos, frise-se). Este é um dos importantes fatos novos da conjuntura: como 2013 nos ensinou, ninguém é dono das ruas. E é impossível voltar ao passado, por mais que seja este o desejo dos nostálgicos do neodesenvolvimentismo das duas últimas décadas.
Ademais, a ex-querda se fragmenta em função do calendário eleitoral. Freixo foi para o PSB, partido “golpista” onde certamente terá apoio do PT e de todos que mantiveram-se no PSOL passando pano para sua traição de classe. Ao mesmo tempo o lulismo, manobrando calculadamente – como sempre fez desde 2016 – o discurso do golpe, vai tocando sua “frente ampla” (desde que com Lula na cabeça, único critério considerado válido), o que surpreende tanta gente que levou a narrativa lulista a sério, escandalizando-se diante do reatamento do nosso populismo progressista com a direita fisiológica e atrasada. Todos os agentes do status quo político nacional – de Bolsonaro, passando por Centrão, PSDB e PT, até chegar ao PSOL neolulista – estão de olho no poder do Estado. É sabido que na periferia do capitalismo a burguesia costuma ser fraca, contrapartida de um Estado forte e relativamente autônomo das classes dominantes, ainda que sempre seja expressão de sua dominação – como apontava, entre outros, Ruy Mauro Marini2. O desvario de Bolsonaro é exemplar, nesse sentido. Por isso também o lulismo e a ex-querda desejam ardentemente refazer um governo de colaboração entre as classes. Obviamente já esqueceram há muito tempo que a saída anticapitalista só pode germinar na sociedade civil de extração popular e movimentista, lugar social por excelência dos trabalhadores, da esquerda e do marxismo. Ao Estado só chegamos revolucionariamente. Que as multidões continuem afluindo às ruas contra a extrema-direita no poder. Mais do que nunca, nossos sonhos não cabem nas urnas.
Referências
- Golpe de Bolsonaro jamais será reconhecido leia em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mathias-alencastro/2021/07/golpe-de-bolsonaro-jamais-sera-reconhecido.shtm
- Estado e Crise no Brasil, ler em: https://lavrapalavra.com/2021/07/07/estado-e-crise-no-brasil/