Assume Lula em meio a grandes expectativas. Será possível satisfazê-las?

Após quatro anos de mandato de Jair Messias Bolsonaro, após a proliferação de acampamentos bolsonaristas nas portas dos quarteis pedindo intervenção militar, após o atentado a bomba abortado em Brasília, a posse do novo governo não deixa de ser um alívio. Mas as expectativas depositadas neste novo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, como reverso de tudo que fez o antecessor, não parecem fáceis de satisfazer.

O novo presidente pretende fazer um governo respondendo a uma frente muito mais ampla que aquela com a qual contou em seus dois primeiros mandatos. Seu vice, Geraldo Alckmin, construiu sua carreira política no centro-direita. A composição ministerial é reflexo das articulações da base eleitoral que o novo governo terá no Congresso, ainda que o Partido dos Trabalhadores conserve cargos-chave e inclua figuras do espectro político que abrange desde a esquerda institucional até o que há pouco tempo fazia parte do bolsonarismo, passando pelo chamado Centrão.

Nos discursos da posse perante o Congresso e a multidão reunida na Praça dos Três Poderes, a ênfase foi dada ao combate à desigualdade, à pobreza extrema, à fome e à exclusão. Para isso, Lula falou das políticas de transferência de renda, do aumento do salário mínimo combinado com o estímulo ao empreendedorismo e do fomento da agricultura familiar para produzir alimentos. Resulta curioso que, ao se referir à agricultura familiar, rapidamente alertou que não seria em prejuízo do agronegócio. Da mesma maneira, ao se referir ao combate ao desmatamento, imediatamente avisou que isso não afetaria a expansão da fronteira agrícola nem a mineração sustentável. “Sustentável” parece ser uma palavra mágica que nos enunciados aparece para facilitar a aceitação do extrativismo. Se compararmos esses com os discursos de 2003, notamos a ausência de duas promessas: a de emprego e a de reforma agrária. 

A multidão reunida, que chegou de todas as regiões do país, em muitos casos em caravanas organizadas por movimentos populares, portava bandeiras das organizações, mas não faixas com demandas programáticas. Cantava “Olê, olê, olê, olá,/ Lula, Lula” e “Lula, guerreiro/ do povo brasileiro”. A única palavra de ordem que dialogou com o discurso do presidente foi “Sem anistia”, quando Lula se referiu à gestão de seu antecessor, em particular durante a pandemia.

Pairava o mistério sobre quem entregaria a faixa presidencial ao novo mandatário, já que Bolsonaro havia viajado dois dias antes, com toda sua família, para se hospedar em Orlando, nos Estados Unidos. As apostas mais ousadas eram aquelas que indicavam que seria Dilma Rousseff a escolhida, como uma vindicação de quem foi impedida de concluir seu mandato. Porém, houve uma solução talvez mais audaciosa. Como se pode observar na foto, cuja composição foi pensada para “ficar na história”, Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto com sua esposa Janja, seu vice Alckmin e a esposa Lu, com representantes de setores sociais excluídos e inclusive com o vira-lata Resistência, recolhido da rua pelo casal quando se havia aproximado ao acampamento de vigília “Lula Livre”. A faixa presidencial verde-amarela passou pelas mãos de todo o grupo até ser entregue ao novo presidente. Na foto, parece que os quase 300 mil manifestantes que se reuniram na Esplanada dos Ministérios e na Praça dos Três Poderes seguiam o grupo e entrariam no palácio presidencial, reverenciados pelas duas filas de militares.

Multidão de pessoas

Descrição gerada automaticamente
Fonte: Tânia Rego, da Agência Brasil.

Houve uma omissão que não passou despercebida: o novo presidente não mencionou uma só vez as forças armadas. Chamou também a atenção o desleixo com que Lula realizou a cerimônia de passar revista aos pelotões de efetivos que representavam as três forças. Passava sem olhar, rapidamente. Foi em várias oportunidades corrigido pelo responsável pelo cerimonial, que pedia para o presidente se deter e cumprimentar. Lula cumpriu burocraticamente o protocolo, o que contrastou bastante com seu engajamento em outas atividades da jornada.

Sem dúvida, nenhum desses gestos é gratuito. Lula assinou todos os documentos com uma caneta que, segundo explicou antes de usá-la no Congresso, guardava desde as eleições de 1989, quando foi derrotado por Fernando Collor de Mello. Havia sido um presente de apoiador do estado de Piauí. Nestas eleições, Lula ganhou em todos os municípios desse estado. Em seu discurso aos quase 300 mil apoiadores, convocou imagens-síntese dos últimos anos para justificar a prioridade do combate à fome e à pobreza extrema, como, por exemplo, a de alguém num cruzamento, junto a um semáforo, com um cartaz de papelão escrito à mão: “me ajuda”. Impossível não lembrar dessa imagem vista por todos, e da que mostra famílias revirando os ossos descartados pelos açougues, para encontrar alguma proteína. Para os que querem números: “É inadmissível que os 5% mais ricos deste país detenham a mesma fatia de renda que os demais 95%. Que seis bilionários brasileiros tenham uma riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres do país”.

Depois de tomar posse e ainda antes de nomear seus ministros, assinou medidas provisórias, decretos e despachos, pensados como medidas urgentes. Além de criar ou restituir ministérios da área social que haviam sido dissolvidos pelo antecessor, definiu a continuidade do auxílio emergencial para famílias pobres em U$A 113,50 e prorrogou a desoneração dos combustíveis. Essas medidas têm urgência por desativar a “bomba de tempo” deixada pela administração anterior, que, na tentativa de dispor de recursos para distribuir na campanha eleitoral, declarou “estado de emergência”, o que lhe permitiu furar o teto de gastos. Esse “estado de emergência” acabava exatamente em 31 de dezembro de 2022. A equipe de transição mapeou as condições legais para atender às necessidades imediatas1 e, durante o período, conseguiu o apoio do Congresso para a chamada PEC da transição2, que permitiria à nova administração governar. 

Revogou a flexibilização do porte de armas, a autorização de mineração em terras indígenas e áreas de proteção ambiental, a segregação de quem tem deficiência nos ambientes escolares, e o sigilo de 100 anos de documentos da administração pública. É o esperado “revogaço”. Outras tantas medidas, como as que apontam para o desmatamento que se acelerou no último período, tiveram um caráter mais declarativo.

A presença de mandatários estrangeiros é indício das expectativas que o novo governo desperta, pelo papel do Brasil na economia regional e mundial. Chama atenção a presença de ex-mandatários como José Mujica (do Uruguai) e Evo Morales (da Bolívia), adversários dos atuais presidentes desses dois paises. A quantidade de mandatários africanos também nos lembra do papel das transnacionais de origem brasileira no continente. O presidente alemão, o português e o rei da Espanha, assim como representantes de inimigos comerciais de peso, como Estados Unidos, China e Rússia, completam a galeria.

Quando chegou o momento de nomear 37 ministras e ministros3, a primeira a ser chamada foi Sônia Guajajara, para o Ministério dos Povos Indígenas recém- criado. Lembremos que os povos indígenas são os que vêm levando adiante as ações mais combativas contra o extrativismo. Os ministérios que se ocupam de políticas inclusivas foram concedidos a indivíduos notáveis de cada área, enquanto os ministérios que manejam mais recursos foram distribuídos entre os partidos com votos no parlamento. Se o Ministério da Agricultura ficou nas mãos de um representante do agronegócio exportador, o de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar ficou com um quadro do Partido dos Trabalhadores. Essa composição variada dos ministérios e o anúncio da necessidade de construção de uma “frente ampla“ nos faz vislumbrar como será o “neodesenvolvimentismo recarregado“. Com relação à política agrária, apresenta-se uma integração da agricultura familiar no que na última década do século passado era chamado de “Novo Mundo Rural” ou “Nova Ruralidade”, como solução neoliberal para o campo: agricultura familiar combinada e integrada ao agronegócio.

Ao mesmo tempo, os grandes conglomerados da comunicação, que apoiaram Lula-Alckmin, já começam a reclamar pela retomada da “responsabilidade fiscal” e não tardarão em acusar as políticas sociais de desestabilizar as contas públicas.

Apesar das expectativas de mudança, todos parecem conformes em que o avanço do extrativismo e a exportação de commodities são matrizes inamovíveis da economia brasileira. Até mesmo porque são apresentados como condição para realizar aquilo que é reclamado como prioridade: o combate à fome, que hoje afeta 33 milhões de brasileiros, e à pobreza, que afeta 100 milhões. Isto é, o aumento da espoliação é propagandeado como remédio para os males sociais que ele próprio gera. Que nos é oferecido em troca da resignação a tal fatalismo? “Democracia para sempre”. Quer dizer: nas entrelinhas do discurso presidencial, podemos ler que essa frente amplíssima, essa composição de interesses, seria a única maneira de conjurar o retorno do bolsonarismo.

Referências

  1. Ver: <https://exame.com/brasil/lula-e-alckmin-apresentam-relatorio-da-transicao-confira-o-documento-na-integra/>
  2. Ver: <https://www.camara.leg.br/noticias/931149-pec-da-transicao-e-promulgada-pelo-congresso/>
  3.  Ver: <https://www.jota.info/eleicoes/saiba-quem-sao-os-ministros-escolhidos-por-lula-01012023>.

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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