Na atual conjuntura política brasileira, se destaca a crescente impopularidade do bolsonarismo. Capaz de juntar, como nunca, tantos incompetentes num governo só, o “Mito” navega erraticamente, na proporção inversa de seu discurso triunfalista.
O caráter anti-tecnocrático da gestão Bolsonaro não expressa apenas o desgoverno administrativo e a concomitante eficiência de suas fakenews. Revela também a crise de hegemonia política burguesa no Brasil. Ao consenso neoliberal e anti-trabalhista, que une a extrema-direita à centro-esquerda lulista, corresponde a total pulverização política, que impede qualquer ensaio reacionário ou fascista — como erroneamente tantos temem. Por exemplo, as Medidas Provisórias de Paulo Guedes são mais rejeitadas no Congresso Nacional do que as de todos os ministros da Fazenda dos governos Lula, Dilma e Temer (conforme reportagem da Folha de São Paulo). PSL, DEM, PSDB, MDB, Centrão, PT, Judiciário, Globo, Record e outros atores do status quo combatem-se ferozmente.
A referida crise é resolvida precariamente pelo carisma presidencial (como já apontava Francisco Weffort nos seus trabalhos clássicos sobre o populismo). A “irracionalidade” e a boçalidade, simultaneamente genuínas e calculadas, de Bolsonaro — assim como a de Trump e outros demagogos contemporâneos — balizam a fragilidade da hegemonia burguesa no mundo (como quase sempre ocorre quando se trata da extrema-direita). Infelizmente, o cansaço de muitos trabalhadores com a racionalidade burguesa, e sua crença no capitalismo como inevitável e aperfeiçoável, leva à aposta em líderes obscurantistas e autoritários, seja no centro seja na periferia da ordem do capital. Já boa parte da esquerda, em vez de propor uma outra racionalidade, a socialista, opta por insistir na ilusão de que a democracia burguesa salvaria e domesticaria o capitalismo, bem como por estigmatizar os trabalhadores como “pobres de direita” ou incivilizados que desconhecem seus próprios direitos humanos — coisa que a maioria nunca desfrutou.
Apesar disso, a polarização e a fragmentação políticas são a regra no mundo: Boris Johnson na Inglaterra sofre em meio ao caos do Brexit, os neofascistas italianos são expelidos do governo de maneira humilhante, a direita israelense não consegue sustentar um governo à medida que se torna mais extremista, o impeachment de Trump começa a tramitar nos EUA, a resistência popular à homofobia e ao patriarcalismo derruba governantes em Porto Rico e decisões judiciais na Indonésia.
Na América Latina já se fala mesmo numa nova onda progressista, com possíveis vitórias na Argentina, Uruguai e Bolívia. Quão duradoura será então a suposta onda conservadora que vivemos? Mas registre-se: os progressistas em questão são os que militarizam a segurança pública (novo governo mexicano), os que cortam ponto de professores em greve (governo petista na Bahia), etc.
Tão presos às suas próprias narrativas como os bolsonaristas, os lulistas seguem alienados da realidade dos trabalhadores e pobres do país. Enquanto se fala em ditadura, Glenn Greenwald responde às bravatas de Bolsonaro afirmando, apropriadamente, que o Brasil é uma democracia. Ao tempo em que se acusa o lavajatismo de ser uma conspiração imperialista (como se nossos reacionários precisassem disso com tantos séculos de dominação de classe!), o ex-presidente neoliberal do Peru é preso pela Lava-Jato de lá. O lulismo perde-se no seu próprio obscurantismo, atacando Haddad por criticar o desastroso governo Dilma em sua coluna semanal na mídia “golpista”.
A persistir a rendição da esquerda à social-democracia ou ao populismo progressista, as derrotas para os trabalhadores continuarão. Não por conta de um falso avanço conservador, mas devido ao recuo político-ideológico dos que deixam de defender o socialismo e a revolução. Esse tipo de profecia que se auto-cumpre só pode ser rompida pela reabertura da esquerda à defesa das classes populares, cujos filhos hoje são assassinados pelas polícias militares em intensidade ainda maior que o corrente em nossa história. O desemprego, a crise econômica e os direitos dos trabalhadores são bandeiras concretas de luta, ao contrário de slogans abstratos como a “defesa da democracia”, que dialogam exclusivamente com as camadas médias.
Vejam-se as recentes eleições em seções sindicais do ANDES-SN no Rio de Janeiro. No caso da ADUNIRIO, a inédita aliança entre alguns militantes do PSOL, PCB e PT tem resultado óbvio: um sindicalismo cada vez mais apassivado, onde a desmobilização diante dos ataques bolsonaristas é a regra — não poderia ser de outra maneira quando o sindicalismo combativo cede aos academicistas lulistas, interessados apenas em políticas públicas, não na defesa dos interesses dos trabalhadores (docentes e de outras categorias). Felizmente, há resistência de outros psolistas e pecebistas a esta orientação equivocada, na qual a unidade só se realiza com retrocesso programático, eleitoralismo e tentativas de estigmatização da esquerda combativa. Em relação à ADUR (UFRuralRJ), seção sindical já em processo de burocratização, a parceria envergonhada da gestão situacionista com professores lulistas implicou numa vitória apertada contra a militância de base combativa do ANDES (formada por independentes, psolistas, pecebistas e autonomistas). O aprendizado, no entanto, é valioso: muitos colegas perceberam o que significa na prática — e a que fim serve — a consigna “Lula Livre”: desprezo pelas lutas fundamentais dos trabalhadores (salários, condições de trabalho) e ataque ao sindicalismo classista. Já na ADUFRJ verifica-se a convergência política mais explícita entre lulismo e bolsonarismo: se este inova na política institucional colocando, por exemplo, gente contrária aos direitos humanos e ao meio-ambiente para gerir as respectivas políticas públicas, os lulistas elegem para sindicatos pessoas que odeiam a luta sindical. Não por acaso a gestão atual da ADUFRJ, autoritariamente, deixou de convocar assembleia para os professores debaterem na base a adesão à greve geral da educação dos últimos dias 2 e 3 de outubro. O caráter antidemocrático do lulismo aqui se expressa nitidamente, por meio da oposição entre democracia representativa/burguesa — que privilegiam — e a democracia participativa/proletária — contra a qual atuam.
O desafio que se coloca é este: como evitar que o lulismo, com sua defesa elitista da conciliação de classes e das castas políticas, continue enfraquecendo e destruindo os movimentos sociais, garantindo mais sobrevida ao bolsonarismo entre os trabalhadores e o restante da sociedade brasileira. Apenas o trabalho de base da esquerda e a renovação do radicalismo de nossas classes populares nos apontarão a saída deste beco.