Bolsonaro aposta no caos – Parte 2

As armas de Bolsonaro.

No entanto, para além deste cenário que permite a sua sobrevivência no governo mesmo diante da crescente perda de legitimidade, Bolsonaro possui ainda um conjunto de “ativos” políticos que explicam os índices de popularidade que ainda detém (em torno de 25% da população) e que lhe permitem dobrar a aposta no caos social, em defesa de sua pauta politica e econômica e da criação das condições para um golpe fascista. Primeiramente, Bolsonaro conta com forte base de apoio entre as forças repressivas e de segurança, bolsonarizadas ao longo dos anos por meio da defesa de seus interesses corporativos, do seu proselitismo em defesa do autocratismo e de uma solução fascista para o problema da segurança pública. Para além das milícias e das empresas de segurança Bolsonaro conta com forte apoio político nas polícias estaduais e escalões médios e inferiores das Forças Armadas. As polícias estaduais têm mostrado grande autonomia diante dos governos estaduais, colocando-os “contra a parede” em diversas situações, como em algumas das greves ocorridas nos últimos anos, com motins, enfrentamentos armados contra tropas leais e mesmo atos de terror contra a população. O motim dos policiais militares no Ceará neste ano, o assassinato de Alexandre da Nóbrega e as declarações, de um deputado ex-policial, de que não necessariamente a PM vai obedecer todas as medidas de intensificação do isolamento horizontal tomadas pelo governo Dória, são exemplos da conexão de setores das polícias com o bolsonarismo, muitas vezes sob a mediação de mandatos parlamentares e entidades representativas. Nas eleições de 2018 e surfando na onda do bolsonarismo, foram eleitos para a Câmara, o Senado e as Assembléias Estaduais nada menos que 73 candidatos oriundos das forças repressivas (incluindo militares da reserva das F.A.), quatro vezes mais do que em 2014. As polícias estaduais (militares, civis e bombeiros) organizam-se corporativamente em aproximadamente 250 entidades representativas (sindicatos e associações) de caráter nacional ou estadual. Não se incluem neste número as que existem em diversos municípios, o que configura uma inserção considerável na sociedade civil. É fato que nem todas estas entidades tem um perfil de extrema-direita, algumas delas são filiadas à CUT e há grupos de “policiais antifascistas” em diversos estados, mas a tradicional perspectiva fascistizante no tratamento da segurança pública, presente na formação militar e alimentada pela impunidade dos crimes militares, favoreceu o avanço eleitoral e político do bolsonarismo nesses setores. Como presidente Bolsonaro não se cansa de declarar apoio à truculência policial, legitimando seu modus operandi, e aos seus interesses corporativos. Numa situação de derrubada de Bolsonaro é de se esperar a resistência de diversos segmentos das policias estaduais e seu apoio a um contragolpe bolsonarista.

Nas Forças Armadas o bolsonarismo é bastante forte principalmente entre os escalões intermediários e inferiores por conta de suas origens como representante político dos interesses militares e de uma campanha de bolsonarização dos quartéis ocorrida nos últimos anos e promovida pelos próprios comandantes militares, tendo em vista a postura abertamente intervencionista assumida pelas F. A. no processo político após o golpe de 2016. Em caso da queda de Bolsonaro com apoio militar os comandantes militares teriam dificuldades para manter a unidade, a hierarquia e a disciplina internas, a não ser que os próprios militares assumissem o comando do processo e instituíssem o cesarismo militar. Em caso de um golpe bolsonarista fortemente apoiado pela base militar, estas dificuldades seriam maiores, obrigando à adesão os comandantes resistentes.

Ainda é possível constatar a presença de bolsonaristas em diversas instâncias do aparelho de Estado, não só nos órgãos de governo, como Ministério Público, Judiciário, Polícia Federal e variados cargos de gestão. Isso revela um processo de fascistização do aparelho de Estado com a “bolsonarização” da burocracia não eleita, seja por adesão de agentes públicos à perspectiva política de Bolsonaro, ainda durante a campanha eleitoral, seja por que desde a posse este procurou se fortalecer politicamente nomeando adeptos e adesistas para os mais variados cargos nos ramos policial, judiciário e burocrático. A fascistização do aparelho de Estado, que continua, permite o uso e abuso do aparato estatal contra adversários e pobres, criminalizando a ação política e as lutas desses e endurecendo o controle social. Nos próximos dois anos o bolsonarismo tende a avançar nas altas esferas do poder judiciário, pois vão se aposentar dois ministros do STF (Celso de Mello e Marco Aurélio Melo, que têm demonstrado independência em relação a Bolsonaro) e dois ministros do STJ, abrindo vagas para novos indicados. Dos sete ministros do TSE, que comandará as eleições de 2022 (se ocorrerem), três são oriundos do STF, inclusive o presidente e o vice, dois do STJ e dois são advogados indicados pelo próprio presidente da República.

Para além da identidade com o projeto burguês que levantamos anteriormente, que garante sua manutenção no governo a despeito de dissensões aqui e acolá, entre as classes e frações do bloco no poder há diversos setores bolsonarizados que prestam apoio orgânico, como no agronegócio, entre os grandes proprietários rurais, entre os industriais, no grande capital varejista e no setor de serviços. Bolsonaro tem apoio ativo em setores majoritários do agronegócio e entre os grandes proprietários rurais por conta da aposta na reprimarização econômica, no avanço da fronteira agrícola sobre a Amazônia e no combate aos movimentos de luta pela reforma agrária e pelos direitos indígenas e quilombolas. Apesar de interesses conflitantes entre si, estes setores se unificam em torno desta pauta comum e compõem uma força social bastante capilarizada, com grande poder material, uma ampla rede de aparelhos de hegemonia (sindicatos e associações patronais, como a UDR, setores da mídia, etc.) e capacidade de hegemonizar variados setores populares (pequenos e médios proprietários rurais, classes médias vinculadas ao circuito econômico do agronegócio, trabalhadores rurais). Apesar das trapalhadas diplomáticas criadas pelo governo e pelo clã presidencial com alguns dos principais importadores dos produtos primários brasileiros, como China e países árabes, que tem gerado críticas dos representantes políticos e midiáticos do agronegócio, estes setores podem ser mobilizados econômica e militarmente, com seus agentes privados de segurança, para um golpe fascista.

            O mesmo pode ser dito do grande capital comercial e de serviços, setores predominantemente bolsonaristas do bloco no poder. O Instituto Brasil 200, forte apoiador de Bolsonaro desde a campanha eleitoral, é composto majoritariamente por empresários desses setores econômicos. Ultimamente algumas de suas lideranças têm direcionado críticas ao governo, por causa da recessão econômica e da alta do dólar, que deprime o mercado consumidor e encarece os produtos importados que distribuem, mas apoia abertamente a ação governista de eliminação dos direitos sociais e trabalhistas porque depende diretamente da flexibilização das relações de trabalho para ampliar ainda mais seus lucros e reagir às oscilações do mercado. Também surgiram críticas à tática do confronto permanente e à incapacidade explícita do governo de pacificar o país para enfrentar a crise econômica e a pandemia, mas estas não se dirigem às medidas econômicas apresentadas ou à perspectiva de priorizar a volta à normalidade econômica em detrimento da quarentena. Aliás, os “sacerdotes da morte” que vieram a público anunciar que a morte de milhares de doentes é um mal menor diante da paralisação econômica causada pela quarentena pertencem a estes segmentos econômicos (Durski, Justus, Hang, Becker etc.). Na hipótese de um golpe fascista dado em nome da adoção de medidas duras para conter a crise e o caos social e combater a rebeldia popular, esse segmento seguiria apoiando Bolsonaro com apoio político e ideológico e vultosos recursos econômicos.

No plano ainda das frações burguesas Bolsonaro conta com o apoio de setores do capital industrial particularmente atingidos pelo processo de desindustrialização e perda de densidade tecnológica vivenciado pelo país nas últimas décadas. Em franco processo de declínio em termos de peso econômico, competitividade e influência política, tais setores têm apoiado vivamente a eliminação total do que designam como “custo Brasil”, ou seja, direitos trabalhistas, encargos sociais, tributos e regulação estatal, como uma espécie de compensação. Em outras palavras, recorrem à super-exploração do trabalho ainda maior e à isenção fiscal como tábua de salvação para sua sobrevivência econômica. Daí o apoio à pauta neoliberal extremada do governo Bolsonaro apesar de sua sub-representação politica na nova administração (a indústria sequer tem um Ministério para chamar de seu!), o que leva diversas lideranças industriais e as entidades que comandam a apoiá-lo politicamente. O caso mais visível é o de Paulo Skaff, presidente da FIESP/CIESP e principal articulador do Diálogo pelo Brasil, entidade que reúne empresários de diversos setores e que conseguiu emplacar a criação de um “conselho consultivo” no novo governo. Esta posição reverbera favoravelmente no médio e no pequeno capital industrial, apesar de conviver com a oposição de setores do grande capital.

É preciso considerar ainda o apoio à Bolsonaro por parte de setores econômicos que exploram negócios à margem da lei ou em situação de plena criminalidade, como as milícias, o tráfico de drogas, os estelionatários da fé, além de desmatadores, garimpeiros etc. Estes setores têm sido diretamente beneficiados pelo governo, não apenas com as “vistas grossas” dos órgãos fiscalizadores das suas ações, como Receita Federal, Polícia Federal, IBAMA e INCRA, mas também com medidas legais. Num quadro de golpe bolsonarista tais setores serão mobilizados por meio de grupos paramilitares e ações repressivas e, no caso das igrejas evangélicas bolsonarizadas, para a construção do consenso junto às camadas mais pobres da população.

            Os setores sociais intermediários, principalmente médios e pequenos proprietários e classe média alta, que apóiam Bolsonaro são cada vez mais restritos, porém, à medida que o presidente perde legitimidade têm-se tornado politicamente mais agressivos e ideologicamente mais convictos. Parte desses setores tem interesse direto na interrupção da quarentena, pois são capitalistas de pequeno e médio porte, cujos lucros se deprimem com a interrupção do trabalho e da circulação de bens e serviços. Daí sua participação expressiva nos atos em defesa de Bolsonaro e nas recentes “carreatas”. Com razoável poder econômico, os setores bolsonarizados da classe média, constituídos por profissionais liberais, assalariados de “colarinho branco” bem renumerados (além dos setores da burocracia de Estado já mencionados) etc., possuem capacidade de conquistar apoio popular por meio do “efeito demonstração”, em caso de apoio nas ruas e da disseminação da contra-informação sobre a pandemia e a crise econômica. Esses setores reverberam as fake news produzidas diretamente no Palácio do Planalto desqualificando a gravidade da pandemia e justificando a volta à normalidade econômica, o que sensibiliza os trabalhadores informais, autônomos e desempregados, os quais sofrem diretamente com a interrupção de suas atividades e não têm o amparo estatal.

            Bolsonaro conta também com o apoio de parte da grande mídia, diretamente beneficiada pelas verbas publicitárias do governo, e de uma rede de sites, blogs, páginas e perfis em redes sociais que não apenas reverbera as fake news emanadas do próprio Palácio do Planalto, sob comando da própria família do presidente, mas também produz conteúdo ideológico afinado com a perspectiva fascista do bolsonarismo. Esta rede é financiada pelas forças sociais e políticas descritas acima e dialoga com um universo social muito maior que dos bolsonaristas. Graças ao apoio deste conjunto de forças sociais e políticas é possível afirmar que, ao lado de Lula, Bolsonaro se transformou na principal liderança politica do país. Apesar de ainda não ter conseguido constituir um partido próprio, o que destoa do modelo fascista clássico e de outras lideranças fascistas da atualidade, Bolsonaro instrumentalizou o aparelho de Estado para reforçar o apoio político e eleitoral que detinha antes da posse, constituindo um movimento de massas capaz de lhe dar sustentação, mesmo sendo numericamente minoritário em relação ao conjunto das forças antibolsonaristas. Por outro lado, a constituição do “Aliança pelo Brasil” lhe daria uma “arma” a mais, na medida em que poderia organizar sua base e a massa que ainda o apóia, com vistas a uma intervenção mais articulada no próprio sistema de representação politica e no processo eleitoral, instância da sociedade politica em que o bolsonarismo apresenta dificuldades. De todo modo, numa situação de crise de hegemonia, em que há uma fratura relativa entre classes sociais e representação politica e em que nenhuma das forças do sistema de representação politica consegue se impor sobre as outras, a instrumentalização do aparelho de Estado lhe dá uma vantagem considerável. Vantagem que lhe permite “dobrar a aposta”, mesmo numa situação de perda crescente de legitimidade, e buscar avançar no seu projeto fascista.

David Maciel

Doutor em história, prof de história, membro da coordenação da escola de formação socialista, membro da editoria de marxismo21, e da coordenação nacional do GT história e marxismo da ANPUH.

Um comentário sobre “Bolsonaro aposta no caos – Parte 2

  • 22 de abril de 2020 at 3:51 am
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    Corretíssimo! O cenário é dos piores possíveis e, seus desdobramentos, nos levam a um insipiente governo oclocratico. O futuro se desenha entre o caos programado e o anseio racista.

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