Bolsonaro aposta no caos.
Na atual crise Bolsonaro reafirma os compromissos que originalmente assumiu com os interesses gerais do capital resistindo em abandonar o ajuste fiscal e reiterando a aprovação de novas reformas neoliberais, integralmente em contraposição à uma política econômica anticíclica, que privilegiasse a retomada dos investimentos públicos, o socorro financeiro às micros, pequenas e médias empresas e o pagamento de uma renda mínima aos milhões de desempregados e trabalhadores precarizados mediante a disponibilização de recursos públicos para tanto. Ao contrário, Bolsonaro não só reafirma seu programa neoliberal extremado como desqualifica as medidas de isolamento horizontal, a chamada “quarentena”, propugnadas pelas autoridades sanitárias e adotadas na maioria dos países, alguns bastante tardiamente, e ainda tenta ganhar apoio popular e mobilizar sua base social contra a mesma a partir do cálculo genocida de que os trabalhadores têm que escolher entre o emprego e a renda ou a saúde, colocando a manutenção da atividade econômica como imperativo em relação à pandemia. Na verdade, quando defende o isolamento vertical ou a contaminação generalizada da população como forma de imunização contra o vírus (afinal, “o Brasil não pode parar”), Bolsonaro defende a lógica burguesa em seu núcleo duro.
Isso porque o isolamento horizontal ou horizontal, a quarentena, com a consequente paralisação da maior parte das atividades econômicas, significa a interrupção parcial do processo de extração da mais-valia, afetando diretamente a valorização do capital ao mesmo tempo que desencadeia uma brutal desvalorização do capital que se manifesta relativamente superacumulado em face do aprofundamento da recessão e da paralisia econômica. É por conta desta lógica que ele e alguns empresários mais lascivos consideram a morte de 5 a 7 mil pessoas, que não terão condições físicas, econômicas e sanitárias de resistir ao vírus (idosos, doentes crônicos, moradores de rua, pobres), um desdobramento inevitável diante do imperativo de “salvar a economia”. Aqui, a ratio neoliberal se encontra com o fascismo e a eugenia, pois as mais prováveis vítimas fatais da pandemia são justamente aqueles tidos como mero custo previdenciário e assistencial para o Estado e as empresas, podendo ser descartadas normalmente.
Por isso as medidas adotadas até aqui têm como norte a transferência dos custos econômicos da crise para os trabalhadores, isentando o governo e o capital. As primeiras medidas propostas para combater a crise se limitaram repetir o mantra da necessidade de aprovação de mais reformas neoliberais e de mais privatizações. Em seguida o governo anunciou um pacote de medidas que pretensamente teriam um papel anticíclico, pois estimulariam o consumo popular, mas na verdade nada mais propunham do que manobrar o orçamento público com a liberação antecipada de benefícios já previstos e o adiamento do pagamento de determinados tributos e encargos. Os recursos disponíveis para crédito às pequenas empresas ficaram bem aquém das necessidades do momento, mas não a promessa de auxílio às grandes empresas, inclusive o agronegócio e os bancos. Na sequência o governo acatou proposta da Confederação Nacional da Indústria e editou a medida provisória que dá autonomia para que os patrões demitam, suspendam os contratos de trabalho, reduzam jornadas e não paguem os salários conforme sua conveniência, em “negociações” individuais com cada trabalhador, sem a intermediação dos sindicatos. Com isso o governo suspende concretamente o que ainda resta da CLT. O chamado “bode na sala”, artigo que permitia a suspensão do contrato de trabalho pelas empresas sem o pagamento dos salários por quatro meses, foi retirado da proposta, para ser reintroduzido com um prazo menor: dois meses. Os demais trabalhadores formais poderão ter seus salários reduzidos em 20%, 50% ou até 70%, sendo apenas parte deste montante coberto pelo seguro-desemprego. Com menos de um mês de vigência da nova lei, nada menos que um milhão de trabalhadores formais tiveram o contrato de trabalho suspenso ou o salário reduzido e o governo prevê que a medida atinja mais de 24 milhões de trabalhadores Pesquisa do Sebrae sobre o impacto da pandemia nas pequenas empresas estima em 9,3 milhões o número de trabalhadores demitidos a partir da segunda metade de março. Tais medidas atingem diretamente o que resta da CLT e, por isso mesmo, há quem defenda sua permanência para depois da crise.
Porém, enquanto joga no desemprego trabalhadores formais que ainda gozam de alguns direitos trabalhistas, o governo organiza sua substituição por outros, com menos direitos ainda. No momento tramitam no Congresso a regulamentação da medida provisória que cria a carteira de trabalho “verde e amarela”, que retira a maioria dos direitos trabalhistas que ainda restam para os trabalhadores jovens (até 29 anos) e “maduros” (maiores que 55), e o projeto de lei que suspende aumentos salariais e progressões na carreira de servidores públicos, até o final do ano ou enquanto durar o estado de calamidade pública. Ou seja, apesar das divergências quanto às medidas de controle da pandemia, o governo e o centro-direita se unificam e oportunisticamente aproveitam a desmobilização gerada pela quarentena e a situação emergencial para continuar aprovar a pauta neoliberal extremada do golpe. Sem trégua, sem dó!
Diante do imperativo da quarentena como principal iniciativa para conter a escalada do contágio pelo corona vírus o governo se comprometeu a pagar uma espécie de salário social para os trabalhadores autônomos e informais, porém limitado ao valor de um quinto do salário mínimo (200 reais), demonstrando seu completo desprezo pela situação dos mais vulneráveis socialmente. No Congresso este valor foi triplicado, mas ainda assim continuou bastante limitado, pois pouco maior que a metade do salário mínimo (600 reais). Para termos um parâmetro de quão baixo é este valor, bastante aquém das necessidades básicas de uma família trabalhadora, é preciso lembrar que o salário mínimo proposto pelo Dieese, para março de 2020, é de aproximadamente 4.300 reais!
Outra medida que evidencia claramente a perspectiva rentista do governo é a criação de uma espécie de linha de crédito para as empresas que faturam entre 360 mil e 10 milhões de reais por ano pagarem o salário de seus trabalhadores formais que recebem até dois salários mínimos por dois meses, sendo que o montante emprestado terá um prazo de carência para pagamento e poderá ser parcelado por até 36 meses. Ora, depois da reforma trabalhista o número de trabalhadores formais nas empresas deste porte se reduziu consideravelmente, predominando amplamente o trabalho informal; o que significa dizer que em caso de inatividade a maioria de seus trabalhadores será dispensada ou ficará sem receber salário. Além disso, o governo prevê que a quarentena deverá durar, no máximo, dois meses, pois os empréstimos não cobrem a folha salarial além deste tempo. As micro e pequenas empresas ficaram de fora deste benefício porque não possuem este faturamento anual. Na verdade, o governo as excluiu porque teme a inadimplência. Na França, por exemplo, o governo banca, não empresta, o montante equivalente a 85% dos salários, por um período de 12 meses, cabendo às empresas pagarem os 15% restantes. No total, o governo prevê gastar com auxílio emergencial e cobertura salarial algo em torno de 150 bilhões de reais, aproximadamente 2% do PIB, enquanto em diversos países esse montante é várias vezes maior, como até mesmo nos EUA de Trump e Bannon.
Enquanto isto o governo se põe a salvar da crise o agronegócio e os bancos (pequenos, médios e grandes). Para o agronegócio foram disponibilizados, via bancos públicos, 30 bilhões de reais em créditos e para o setor da construção civil 43 bilhões. O governo beneficiou os bancos afrouxando as regras e obrigações que devem cumprir para demonstrar capacidade de arcar com seus encargos financeiros ao reduzir a alíquota do depósito compulsório de 25% para 17%, favorecendo a captação de recursos com base na aquisição de novos papéis podres e permitindo que os bancos exijam mais garantias para conceder novos empréstimos. O chamado o “orçamento de Guerra” autoriza o Banco Central a comprar os títulos podres, e aqueles apodrecidos pela crise, em posse dos bancos a preços definidos pelo próprio cassino financeiro e em mercados secundários que permitem falcatruas sem fim. Ou seja, o governo está salvando os bancos da crise de superacumulação gerada pela especulação financeira…com mais especulação financeira. Até agora já disponibilizou 1,2 trilhão de reais para essas operações (quase 20% do PIB) e a tendência é que a bola de neve cresça ainda mais. A promiscuidade desta manobra é tão evidente que por meio de outra medida provisória o governo tratou de imunizar os diretores e operadores do Banco Central responsáveis pela compra destes papéis podres em relação à lei da improbidade administrativa. Um super “pool”, reunindo investidores institucionais e quatro dos cinco maiores bancos do país (Itaú, Bradesco, Santander e BB) está sendo organizado pelo BNDES para socorrer as empresas com dificuldades financeiras, principalmente dos setores elétrico, automobilístico, varejista não-alimentício e de companhias aéreas, mas podendo ser ampliado para outros ramos. O socorro virá na forma de novos empréstimos, alongamento de dívidas e emissão de títulos conversíveis em ações, potencializando ainda mais o processo de centralização de capitais liderado pelo setor financeiro.
A disparidade em relação aos recursos destinados os trabalhadores é abissal, nada menos que dez vezes mais! Essa é a intervenção estatal que o capital e seus intelectuais e escribas recém-convertidos ao “keynesianismo” gostam: privatização do lucro e socialização dos prejuízos por meio do socorro estatal ao capital e assistencialismo por meio da transferência de renda aos trabalhadores, corte ainda maior de direitos trabalhistas e arrocho salarial. Na verdade, ao salvar o sistema financeiro o governo não está salvando apenas os bancos, mas todos os segmentos do capital que buscam no rentismo uma forma de valorização e mesmo setores da classe média que também se beneficiam do rentismo e que fornecem a base social mais militante do bolsonarismo. Não é à toa que nesta hora não se vêem, entre os porta-vozes do capital, posições contrárias à continuidade da aprovação das reformas neoliberais e a esse tipo de “auxilio econômico” por parte do governo, nem mesmo entre os que apoiam o centro-direita na questão do aumento do benefício e da necessidade de isolamento horizontal. Portanto, mesmo que determinadas frações do bloco no poder percebam a gravidade da crise, temam os efeitos econômicos negativos do prolongamento da pandemia, receiem os riscos políticos de uma aventura fascista e, no momento, demandem medidas anticíclicas e emergenciais mais ambiciosas, o minimalismo da política econômica do governo Bolsonaro expressa sem rodeios a perspectiva do capital de jogar a conta da crise sobre as costas dos trabalhadores o máximo possível. Agora e depois da pandemia!
Além da defesa dos interesses mais mesquinhos e particularistas do grande capital, Bolsonaro desencadeou uma ofensiva política e propagandística contra a necessidade da quarentena e do isolamento horizontal em nome da retomada da “normalidade” econômica e com base no lema “O Brasil não pode parar”. Para tanto atribuiu à pandemia a responsabilidade pela crise econômica (no que, aliás, é acompanhado pelos analistas e lideranças burguesas), minimiza a gravidade da situação epidemiológica e do risco de contágio e joga os micros, pequenos e médios empresários e trabalhadores informais, severamente afetados pela inatividade econômica e pela ausência de direitos, contra as autoridades sanitárias, os governadores (que tomaram severas medidas de isolamento horizontal mandando fechar lojas e serviços não essenciais) e mobiliza sua base social por meio das redes sociais e de “carreatas” pelo país afora. Nesta hora não faltaram empresários lascivos vindo à público reverberar a necropolitica de Bolsonaro para dizer que a morte de 5 a 7 mil pessoas pelo corona vírus era um custo humano justificável para evitar a crise econômica, expressando sem rebuços sua consciência fascista. Desde o dia 27 de março, o “dia da vergonha”, carreatas se espalharam pelo país, mobilizando o patronato e a classe média bolsonarista em desfiles de carros elegantes e com os vidros devidamente fechados para evitar o contágio, em defesa da volta imediata dos trabalhadores ao trabalho e hostilizando as autoridades que adotaram o isolamento horizontal como Dória e Witzel (o primeiro foi chamado de “comunista” numa manifestação bolsonarista em São Paulo, enquanto os bolsonaristas cariocas berram “Fora Witzel” de dentro de seus carros!). Por conta destas pressões, governadores de estado já autorizam a suspensão gradual da quarentena, e vários outros flexibilizaram o conceito de “atividades essenciais” autorizando o funcionamento de indústrias, da construção civil e de lojas, apesar do crescimento acentuado do número de contaminados e de mortos no país. Assim, Bolsonaro aposta no caos por que vê nele a oportunidade e a justificativa para retomar a trajetória para um auto-golpe, interrompida com a eclosão das duas crises.