Bolsonaro aposta no caos

Parte 1

  1. As duas crises e a política.

A combinação entre crise econômica e a pandemia do corona vírus alteraram drasticamente uma conjuntura política até então favorável ao projeto cesarista de Bolsonaro, solapando rapidamente o que ainda lhe restava de legitimidade junto a diversos setores da sociedade brasileira. Apesar das fortes quedas de 2015 (-3,5%) e de 2016 (-3,3) a economia brasileira apresentou índices de crescimento pífios nos anos seguintes, vitimada por uma combinação perversa de reformas neoliberais que aprofundaram o rentismo e a concentração de renda, forte vulnerabilidade externa, baixo nível de investimentos e por uma taxa de desemprego elevada e renitente. O anúncio de uma taxa de crescimento de apenas 1,1% em 2019 – (a menor desde 2016), a alta do dólar, a fuga de capitais e a queima de reservas mostraram o real caráter da política econômica de Guedes e a vacuidade de suas promessas. A “guerra do petróleo” entre Opep e Rússia e o “crash” das bolsas pelo mundo afora completaram o quadro, eclodindo a crise mundial há muito gestada e anunciada. A postura negacionista de Bolsonaro e a inércia do governo diante da chegada do corona vírus ao país revelaram à luz do dia para muitos sua insensibilidade social, incompetência e irresponsabilidade administrativa e seu projeto político regressivo.

A “ficha caiu” principalmente para frações das classes médias que votaram no candidato da extrema-direita em 2018 por conta de sua perspectiva antipetista e que ainda alimentavam uma postura de tolerância e passividade diante de uma administração marcada por uma perspectiva fascista, extremamente elitista e antipopular e ainda por cima caracterizada pela inépcia, quando não pela má fé, pelo clientelismo e pelos vínculos com a criminalidade. As vozes clamando pelo impeachment se amplificaram, engrossando o coro dos que defendem a destituição do governo desde o início. Aliados de primeira hora de Bolsonaro, como Janaína Paschoal, Caiado, Dória, Witzel e setores da grande mídia anunciaram abertamente sua ruptura com ele e mesmo frações do grande capital que aderiram ao bolsonarismo, como o agronegócio, o comércio varejista e o setor de serviços, não deixaram de manifestar seu descontentamento, levantando a necessidade de uma correção de rumo.

O “Fora Bolsonaro” passou a alimentar uma campanha de denúncia bastante significativa nas redes sociais, somada a “panelaços” diários, que começaram no dia 17 de março e se prorrogam desde então à medida que Bolsonaro dobra a aposta na radicalização de suas posições políticas e no negacionismo. Para muitos, a destituição de Bolsonaro é mais do que uma medida de extrema importância política para salvar o país de um governo desastroso e inimigo da democracia e dos trabalhadores: é um imperativo sanitário contra a pandemia do covid-19. Esta situação coloca a destituição de Bolsonaro como uma possibilidade, particularmente num cenário de perda crescente de legitimidade e de agravamento da crise social e epidemiológica com a propagação exponencial da contaminação e a depressão econômica, ambas em curso e se agravando aceleradamente por conta das próprias medidas tomadas pelo governo.

No entanto, ao contrário do que muitos imaginaram, Bolsonaro, diante das reações negativas, não só não reviu suas posições, como desencadeou uma ofensiva em defesa delas, procurando esvaziar as iniciativas já tomadas contra a pandemia e mobilizar sua base social nas ruas e nas redes sociais em torno do lema “O Brasil não pode parar”. Além disso, buscou propagar o discurso de que as medidas sanitárias tomadas até aqui visam derrubá-lo, acirrando ainda mais o conflito político e tentando escalar a crise. Na verdade, Bolsonaro não se afastou sequer um milímetro de sua perspectiva golpista e aproveita a crise para criar as condições de caos social e econômico que lhe permitiriam fechar o regime em nome da ordem e da contenção do caos. Porém, só insiste nesta rota aparentemente “insana” por que conhece as armas que possui e sabe do papel que cumpre na atual etapa da dominação burguesa e do papel que poderá exercer numa hipotética solução autoritária para a crise. Neste sentido, apesar do crescente clamor social, até o momento a queda de Bolsonaro foi descartada com relativa facilidade, permitindo sua permanência no governo e a viabilização de uma “solução intermediária” entre o impeachment e o golpe fascista, fundamentalmente baseada na tutela militar sobre o governo e num pacto entre os militares e o campo de centro-direita que criou um “governo oficioso” liderado pelo ministro da Casa Civil, general Braga Neto, eufemisticamente chamado de “presidente operacional”. Diante da perda de legitimidade e do “estorvo” que representa para o combate efetivo às duas crises, a preservação de Bolsonaro, que mantém o golpe fascista como ameaça potencial, deve ser entendida a partir das condições que o levaram ao poder, do papel representado por ele na atual etapa da dominação burguesa no país e das “armas” que detém em suas mãos e s quais reapresenta cotidianamente.

  • Arranjo e circunstância.

A primeira e principal condição favorável à manutenção de Bolsonaro não é propriamente resultado de sua ação específica, mas característica da etapa política vigente desde 2016. Afinal, ele é o principal beneficiário e a expressão mais acabada do golpe de 2016 desferido pelas classes dominantes e a maioria dos seus representantes políticos, ou seja, assumiu o poder graças à substituição da democracia de cooptação vigente desde o fim da Ditadura Militar e a Constituição de 1988 por uma democracia restrita e em processo constante de endurecimento, a qual expressa a versão mais radicalizada do programa político e econômico burguês: ataque aos direitos sociais e aprofundamento da exploração dos trabalhadores, restrição de seu espaço político, neoliberalismo extremado e dependência. A passagem de uma para outra não alterou o caráter autocrático-burguês do Estado brasileiro, nem aboliu o regime democrático- liberal com suas respectivas características (divisão entre os poderes, liberdade e pluralidade partidária, rotina eleitoral, etc.), mas aprofundou os elementos autoritários e fascistas contidos na institucionalidade autocrática. Isto se deu basicamente com a substituição do transformismo e da integração passiva à ordem como mecanismos fundamentais no controle do conflito político e social e no tratamento das organizações do mundo do trabalho, e cuja expressão máxima ocorreu com os governos do PT, pela repressão e criminalização das lutas sociais e entidades populares e a recusa de suas demandas econômicas e sociais com o reforço do despotismo burguês sobre o trabalho eliminando os controles políticos sobre a movimentação do capital, limitando ainda mais os institutos da democracia liberal à disputa interburguesa. Em ambos os casos os trabalhadores não são reconhecidos como sujeitos políticos com liberdade de ação, autonomia organizativa e legitimidade em suas demandas, daí o caráter autocrático do Estado, porém, na democracia restrita suas condições de luta são muito piores.

A democracia restrita vigente desde o golpe também favoreceu Bolsonaro enormemente no plano da correlação de forças ao longo de seu primeiro ano de mandato, pois além do avanço da repressão judicial e policial sobre os trabalhadores e suas organizações, tornou o sistema de representação política ainda mais impermeável às demandas sociais e à pressão popular. Como pôde ser constatado na relativa impotência dos sucessivos atos e manifestações chamados pela oposição de esquerda e pelos movimentos sociais desde 2016 contra o golpe, contra as reformas neoliberais e medidas autocráticas e contra a própria eleição de Bolsonaro. Por conta disto Bolsonaro deteve um espaço de manobra considerável, que ele explorou ao máximo, sempre testando os limites da legalidade, ao praticar crimes e proteger criminosos, ao confrontar a institucionalidade do regime democrático-liberal, ao fascistizar o aparelho de Estado e tentar criar as condições para um golpe. E ele ainda explora esse espaço atacando a própria racionalidade, ao negar a gravidade da pandemia e ao defender o isolamento vertical e a volta à normalidade econômica. Isso tudo ao mesmo tempo em que reafirma seu compromisso com os interesses comuns das classes dominantes por defender abertamente uma solução burguesa “dura” para as duas crises (econômica e epidemiológica) e confrontar os interesses dos trabalhadores e da sociedade como um todo, apesar de contradições aqui e acolá com determinadas frações. Neste sentido Bolsonaro é a alternativa burguesa hard para o tratamento das duas crises e para uma situação de ainda maior acirramento da luta de classes, em que a possibilidade de convulsão social é real, tornando o endurecimento do regime uma alternativa para a continuidade da dominação burguesa.

É esta “utilidade” de Bolsonaro para o bloco no poder e seu compromisso orgânico com o golpe e sua pauta política e econômica que explica a leniência, que beira a cumplicidade, do centro-direita com seus crimes, ameaças e mentiras desde o início do governo. Tanto o Congresso, quanto o STF e os partidos de centro-direita evitaram o confronto, buscaram apaziguar cada situação de conflito e instabilidade criada por Bolsonaro, empurraram com a barriga processos e investigações, e encaminharam seu programa político e econômico moderando seus aspectos mais antipopulares e truculentos.  Os militares vivem situação semelhante enquanto força politica que hipoteticamente poderia se livrar de Bolsonaro, pois seu apoio ao golpe de 2016 e à sua própria eleição em 2018 dificultou uma tomada de posição neste sentido, além de gerar divisões inter-militares na medida em o presidente ia radicalizando suas posições, apesar das aparências em contrário. Na verdade, ao longo do tempo a estratégia dos militares de apoiá-lo para tutelá-lo foi sendo confrontada com sucesso pelo próprio tutelado, tornando os militares que entraram no governo com esta intenção cada vez mais reféns de suas iniciativas e dos ataques do clã Bolsonaro, de Olavo de Carvalho e demais “olavistas”. O caminho da legitimação eleitoral, escolhido pelos militares para voltar ao protagonismo político e assim determinar os rumos do governo para além das questões de segurança nacional (como não faziam desde o final da transição), mostrou-se mais complicado do que imaginado por que o “eleito” mostrou-se cioso de sua força e autonomia muito mais do que o previsto. Ou seja, a tutela militar vigente desde o final da Ditadura Militar em graus variados de intensidade, bastante reforçada no governo Temer e que, conforme imaginado pelos militares, seria ainda mais proeminente no governo Bolsonaro, sofreu um processo de esvaziamento relativo por conta das pretensões cesaristas do “capitão”.

Diante disso as demonstrações de autonomia das F.A. (enquanto instituição perante um governo visto publicamente como sendo gerido por elas e identificado com sua perspectiva político-ideológica) tornaram-se ainda mais prementes, como demonstram diversos episódios e mensagens “cifradas” nos últimos meses. Porém, os que buscaram preservar a autonomia institucional das Forças Armadas, principalmente entre os comandantes da ativa, tiveram crescentes dificuldades para tanto, haja vista a enorme influência do bolsonarismo nos escalões militares médios e inferiores, a própria presença militar no Ministério e em diversas funções tradicionalmente ocupadas por civis e as vantagens corporativas e políticas conquistadas com o governo. Os comandantes da ativa que buscaram guardar certo distanciamento diante do governo o fizeram por razões institucionais (preservar sua autonomia burocrática diante dos governos eleitos) e políticas (contradições com os vínculos do bolsonarismo com o crime organizado, riscos políticos do fechamento total do regime em termos de submissão dos militares ao cesarismo bolsonarista, dificuldade de controle repressivo do conflito social, inclusive com a “concorrência” de policiais e grupos para-militares, como milicianos, traficantes e empresas de segurança privada, no exercício da “manutenção da lei e da ordem”, capturando, na prática, atribuições constitucionais das F.A). Mas não por seu compromisso democrático! No seu conjunto os militares são afeitos à perspectiva autocrática, neoliberal, subordinada aos EUA, anticomunista, culturalmente conservadora e moralista defendida por Bolsonaro. Também não podemos esquecer que nos últimos anos os militares deram numerosas demonstrações de que não se converteram aos valores democráticos e republicanos após o final da Ditadura Militar, contrariando os que acreditavam no seu apoliticismo, legalismo e profissionalismo: seu veto à Comissão Nacional da Verdade e à proposta de punição dos torturadores e assassinos; seu aval ao golpe de 2016; o apoio ao governo golpista de Temer; a interdição da participação de Lula no processo eleitoral em 2018; o apoio à candidatura e ao governo Bolsonaro. São estas posturas demasiado evidentes para não deixar dúvida quanto à posição dos militares como um todo. Também é preciso considerar que o governo tem atendido diversas demandas militares em termos de benefícios corporativos (“reforma da previdência” que virou aumento salarial!), ocupação de órgãos técnicos e efetivação de projetos estratégicos (controle e ocupação da Amazônia, aumento dos gastos militares, etc.).

Por outro lado, a oposição de esquerda (PT, PSB, PDT, PSOL e PC do B), que deveria defender e agir politicamente pela derrubada de Bolsonaro (por conta do caráter fascista, neoliberal, entreguista e antipopular deste e até mesmo por uma questão de sobrevivência política), não demonstrou ter força para fazê-lo. Em primeiro lugar, porque seus setores majoritários adotaram uma versão moderada do neoliberalismo, quando estiveram no governo federal, e mesmo hoje adotam medidas semelhantes às defendidas por Bolsonaro e pelo centro-direita nos governos estaduais que ocupam (reforma da previdência, cortes na educação e na saúde, ataque aos servidores públicos). Em segundo lugar, porque grande parte desses mesmos setores continuaram adotando uma perspectiva de conciliação de classes que os impediu de fazer a crítica do golpe na sua totalidade, buscando se acomodar à democracia restrita hoje vigente. Em terceiro lugar, porque em função desta orientação os setores de centro-esquerda, majoritários na oposição de esquerda, privilegiam a ação institucional, ao invés da organização e da mobilização populares. Numa situação em que o sistema de representação política desde o golpe de 2016 adquiriu grande impermeabilidade à pressão popular esta é uma tática de efeitos concretos muito limitados. É preciso ainda destacar que a reforma trabalhista se abateu duramente sobre o movimento sindical, não apenas limitando sua representatividade ao favorecer o avanço do trabalho informal, mas afetando a própria sobrevivência financeira dos sindicatos. Essa situação de enfraquecimento dos sindicatos, combinada à escalada repressiva contra o mundo do trabalho e à crise econômica ajuda a explicar a tendência sucessiva de queda no número de greves desde 2017. Finalmente, o conjunto da esquerda, incluída a esquerda socialista (PSOL, PCB, PSTU e PCR), teve reduzida ainda mais sua capacidade contestatória porque não foi capaz de ampliar sua representatividade entre os trabalhadores, principalmente os trabalhadores rurais, e porque não possui um projeto estratégico unificado capaz de apresentar uma alternativa global ao neoliberalismo, particularmente de perfil anticapitalista, que vá além de remendos circunstanciais aqui e acolá e de fôlego curto, como mostrou a experiência de governo do PT. Portanto, apesar das crises econômica e epidemiológica e de sua tendência de agravamento acelerado, este cenário de relativa imobilidade política e institucional, própria de determinadas situações de crise de hegemonia, favorece a manutenção de Bolsonaro.

David Maciel

Doutor em história, prof de história, membro da coordenação da escola de formação socialista, membro da editoria de marxismo21, e da coordenação nacional do GT história e marxismo da ANPUH.

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