No mês de novembro, veio à tona na imprensa a denúncia das pretensões golpistas de Jair Bolsonaro. Essas denúncias comprovaram duas coisas. Por um lado, que os atos relacionados ao 8 de janeiro de 2023 não se constituíram em ações isoladas, mas parte de uma conspiração que incluía o então presidente e sua cúpula mais próxima. Por outro, que, mesmo tendo pretensões golpistas, Jair Bolsonaro nunca teve o apoio necessário entre burguesia, os meios militares e o imperialismo para levar a uma ruptura na ordem institucional.
Devemos lembrar que, no final de 2022, com a aproximação das eleições e a cada vez mais visível derrota eleitoral de Bolsonaro, setores da esquerda foram aderindo à paranoia de que poderia haver um golpe que poderia impedir a realização da eleição ou mesmo a posse de Lula. Contudo, esses medos nunca tiveram uma base concreta, a não ser a retórica estridente de Bolsonaro. Na época, eu afirmei, em texto:
“As classes dominantes entendem a necessidade de restabelecer o funcionamento das instituições da Nova República. Bolsonaro, por sua vez, segue em suas críticas e declarações contra o STF e o Congresso Nacional. Contudo, para a superação da crise econômica, as classes dominantes parecem preferir um regime político onde haja harmonia entre os poderes e as instituições do Estado”.1
No presente, com o avanço do processo de investigação contra a ação golpista dos bolsonaristas, vem sendo divulgados detalhes que mostram justamente a ausência de apoio para a pretendida ruptura institucional. Na conclusão do relatório da Polícia Federal faz-se a seguinte afirmação:
“A consumação do golpe de Estado perpetrado pela organização criminosa não ocorreu, apesar da continuidade dos atos para conclusão da ruptura institucional, por circunstâncias alheias à vontade do então presidente da República Jair Bolsonaro, no caso, a posição inequívoca, dos comandantes do Exército e da Aeronáutica, general de Exército Freire Gomes e Tenente-Brigadeiro do Ar Carlos de Almeida Baptista Junior, e da maioria do Alto Comando do Exército, de permanecerem fiéis aos valores que regem o Estado Democrático de Direito, não cedendo às pressões golpistas”.2
Embora esses fatos sejam explícitos no presente, por meio da comprovação documental, na época era possível concluir que não haveria o apoio a um pretendido golpe liderado por Bolsonaro. Entre outros elementos, essa era a perspectiva do governo dos Estados Unidos, como expresso pelo diretor da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), que teria dito “aos principais assessores de Bolsonaro que o presidente deveria parar de minar a confiança no sistema eleitoral do Brasil”.3
Outro fator fundamental passa pelo fato de que a burguesia, por meio de seus principais órgãos de imprensa, escondia sua aversão à ideia de um golpe. O jornal Folha de São Paulo não poupava críticas a Bolsonaro. Em editorial de maio de 2022, o jornal criticava o então presidente: “Não deve haver dúvidas sobre as inclinações autoritárias do presidente Jair Bolsonaro (PL). Exibiu-as ao longo dos sete mandatos como deputado federal e não tem feito questão de reprimi-las em mais de três anos no Palácio do Planalto”.4
Para a burguesia, colocava-se como fundamental a defesa da institucionalidade. O jornal, nesse sentido, afirmava, no mesmo texto publicado em maio, que “felizmente a institucionalidade nacional e o contexto internacional interpuseram uma série de obstáculos robustos entre as pulsões tirânicas, de um lado, e a realidade política, do outro”.5
Outro grande jornal, O Estado de São Paulo, não escondia sua desconfiança em relação a Bolsonaro. Se dirigindo ao que chamava de “elite empresarial” e criticando setores que apoiavam ações de Bolsonaro, o jornal dizia, no começo de maio: “É hora de se mobilizarem para expor tudo o que há de vergonhoso no voto de seus colegas seduzidos pelo canto desafinado da sereia bolsonarista. Se não for pelos interesses nacionais, que seja ao menos para preservar seus próprios interesses”.6
Como perspectiva, para a burguesia colocava-se a necessidade de constituir um governo de união nacional. Nesse sentido, no final de maio, O Estado de São Paulo afirmava:
“Este jornal está ao lado dos milhões de brasileiros que gostariam de ver uma candidatura capaz de livrar o País do populismo que nos condena ao atraso, que resgate a confiança dos cidadãos entre si e nas instituições republicanas, que apresente um plano de governo para reduzir nossa brutal desigualdade social, que trace caminhos para a retomada do crescimento econômico e que promova boas políticas públicas nas áreas de saúde, educação e meio ambiente”.7
Portanto, ainda que pudesse ter pretensões golpistas, Bolsonaro não tinha o apoio necessário para sua empreitada. Nem mesmo a agitação estapafúrdia de supostos riscos relacionados a um novo governo Lula, tentando reviver o estrago causado durante a guerra fria pelo anticomunismo mobilizado no golpe de 1964, conseguiu convencer setores de massas. Por um lado, a esquerda está majoritariamente comprometida com a manutenção da democracia, se dispondo a fazer um governo de união nacional com quase todos os setores da sociedade. Por outro, o STF e os demais órgãos do Poder Judiciário há anos vêm garantido, inclusive por meio da perseguição e da repressão, a manutenção da ordem institucional. Esteve-se longe de qualquer cenário que se aproximasse de uma ameaça de golpe. Cabe destacar que,
“[…] quando se fala em golpe, faz-se referência à interrupção forçada no processo institucional, provocado ou não por ações violentas, encabeçada ou apoiadas por setores militares, em que há ou uma transformação do regime político ou, pelo menos, uma mudança de governo. Esse processo não ocorre de forma isolada, sendo necessária a mobilização de outras forças políticas e sociais, como a ação de políticos oposicionistas, a mobilização de setores da população ou os discursos difundidos pelos órgãos de imprensa”.8
Os estudos sobre a natureza e os métodos de golpes podem esclarecer essa perspectiva de que não havia ameaça real no caso das pretensões de bolsonaristas. Uma dessas reflexões foi produzida por Donald Goodspeed, que, em obra publicada no começo dos anos 1960, aponta que o golpe de Estado pode ser entendido como “[…] uma tentativa de mudança de governo pelo ataque súbito e agudo às máquinas administrativas. Em condições favoráveis, um grupo relativamente reduzido de pessoas pode apoderar-se do Estado, sem grande custo”.9 Para Goodspeed, o golpe não é apenas uma ação de força, afinal “fundamenta-se na vida política, social e econômica da sociedade em que ocorre e é necessário conhecer esse conjunto de fatores para poder entendê-lo”.10 Segundo Goodspeed, em qualquer golpe de Estado é preciso levar em conta as simpatias das forças armadas da nação, a opinião pública e a situação internacional, mas “o requisito mais importante para o sucesso da intentona é o apoio das forças armadas ou, pelo menos, a sua neutralidade”.11
No mesmo contexto, ainda que mais para o final da década de 1960, Edward Luttwak também publicou uma obra onde investiga os golpes de Estado. Luttwak destaca que, embora sejam uma ação política que se possa encontrar semelhanças com processos políticos ocorridos desde a antiguidade, o golpe está diretamente associado à consolidação do Estado moderno, “com sua burocracia profissional e suas forças armadas permanentes”.12 Luttwak aponta que essa burocracia possui dois aspectos cruciais para a viabilidade do golpe, sendo o primeiro “o estabelecimento de uma distinção clara entre a máquina permanente do Estado e a liderança política” e o segundo “o fato de que, como a maioria das grandes organizações, a burocracia possui uma hierarquia de comando muito bem definida”13 O golpe, segundo Luttwak, “opera naquela área fora do governo, mas dentro do Estado, que é formada pelo funcionalismo público permanente, pelas forças armadas e a polícia”, tendo como objetivo “desligar os funcionários permanentes do Estado da liderança política”.14 Partindo desses elementos, Luttwak sistematiza uma tentativa de conceito apontando que “um golpe consiste na infiltração em um segmento pequeno, mas crítico do aparelho estatal, utilizando-o depois para tirar do governo o controle sobre a parte restante”.15
Em síntese, a não ser a vontade de Bolsonaro e de seus seguidores, nenhum dos elementos centrais para a vitória de um golpe estava colocado naquele contexto. Embora houvesse apoio de setores da burguesia à eleição de Bolsonaro, poucos segmentos das classes dominantes estavam dispostos a se aventurar em uma tentativa golpista. O mesmo pode ser dito da maioria da cúpula das forças armadas, que não se dispôs a assumir o ônus política da tentativa de um golpe. Outro aspecto passa pelo contexto internacional, no qual o imperialismo não escondia sua preferência por soluções negociadas e pela manutenção do funcionamento das instituições.
Embora setores da sociedade pudessem nutrir simpatia por Bolsonaro e sua intenção golpista, poucos se mobilizaram para assumir o risco de defender uma ruptura institucional. O 8 de janeiro se mostrou a ação de um punhado de descontentes dispostos a participar da frustrada intentona bolsonarista, mas que sequer representavam o conjunto de eleitores do próprio Bolsonaro. Não havia apoio majoritário nem entre a burguesia nem entre militares, e muito menos a bênção do imperialismo, constituindo-se numa ação isolada que, agora que foram investigados os diversos elementos de sua articulação, pode levar à punição de seus principais articulares.
Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.
Referências
- Michel Goulart da Silva. As eleições de outubro e o fantasma do golpe no Brasil. Boletim de Conjuntura (BOCA), v. 11, n. 33, p. 46–52, 2022. p. 50.
- Polícia Federal. Relatório N° 4546344/2024, p. 882-3.
- Gabriel Stargardter & Matt Spetalnick. Diretor da CIA disse a integrantes do governo que Bolsonaro não deveria questionar eleições. Folha de São Paulo, 5 de maio de 2022.
- Folha de São Paulo. Algazarra golpista. Folha de São Paulo, 17 de maio de 2022.
- Folha de São Paulo. Algazarra golpista. Folha de São Paulo, 17 de maio de 2022.
- O Estado de São Paulo. A parte da elite que apoia o atraso. Estado de São Paulo, 09 de maio de 2022.
- O Estado de São Paulo. A eleição não está decidida. Estado de São Paulo, 29 de maio de 2022.
- Michel Goulart da Silva. Golpe de estado: história e usos de um conceito. Boletim de Conjuntura (BOCA), v. 4, n. 12, p. 131-139, 2020, p. 135.
- Donald Goodspeed. Conspiração e golpes de Estado. Rio de Janeiro: Saga, 1966, p. 11-2.
- Donald Goodspeed. Conspiração e golpes de Estado. Rio de Janeiro: Saga, 1966, p. 14.
- Donald Goodspeed. Conspiração e golpes de Estado. Rio de Janeiro: Saga, 1966, p. 258.
- Edward Luttwak. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 23
- Edward Luttwak. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 23
- Edward Luttwak. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 24.
- Edward Luttwak. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 30.