Cafundós #EP01

Episódio 01: O Pátio dos Bons Ventos

Por Ana Lia Almeida

De tudo se passava naquele pedacinho dos Cafundós. Entre uma aula e outra, saboreava-se um café bem quente acompanhado de uma tapioca ou um pedaço de bolo, folheavam-se livros usados e novos destinados à venda ou troca, compravam-se roupas baratas no brechó que ia crescendo a cada mês, participava-se de reuniões de grupos de pesquisa, projetos de extensão, coletivos de teatro, ciclismo, clubes de leitura, rodas de violão… Eis o Pátio dos Bons Ventos da Universidade dos Cafundós: não era o mundo inteiro, mas o resumia bem.

Pela entrada principal, à direita de quem vem. Ali o campus acolhia quem chegava com seu enorme canteiro florido em meia-lua repleta de margaridas, girassóis, onze horas e primaveras de todas as cores. Completando a borda do Pátio, as três cantinas, a copiadora e o pequeno anfiteatro que àquela altura da segunda-feira já havia sediado um rápido culto evangélico e um ensaio de Hip Hop. No centro dos Bons Ventos, vários banquinhos e tablados de madeira onde os estudantes se esparramavam em posições impensáveis para discutir tarefas acadêmicas, planejar grandes sonhos ou simplesmente jogar conversa fora. 

Em um desses tablados, deitada com a cabeça sobre a mochila, Maria Luísa gastava a meia hora que faltava para encontrar o orientador do seu Trabalho de Conclusão de Curso. Procurava a melhor maneira de explicar que o seu computador havia quebrado há duas semanas sem que ela tivesse conseguido ainda o dinheiro para consertá-lo e por isso ela não poderia terminar a monografia no prazo combinado. 

Decidia, ali perto das flores, contar ou não os detalhes em função dos quais o prazo do professor restava perdido: a tentativa de compartilhar o notebook com a sua colega de quarto da Residência Universitária até o momento em que a moça derrubou uma lata de refrigerante por cima do teclado; o fim de semana inteiro em que faltou luz na Residência justamente quando ela terminaria o segundo capítulo, antes de o computador quebrar; a bolsa mais uma vez atrasada da Pró-Reitoria de Assistência Estudantil (não que pudesse com ela pagar o conserto da máquina); a raiva que sentiu do irmão mais velho por ter se negado a ajudá-la; o fato de estarem fechados os laboratórios de informática da universidade.

Lembrou de uma colega sua, também sem computador, quando viu se aproximar o fim do prazo para entregar o relatório final do projeto de iniciação científica. Depois de três dias tentando resolver o problema, ela resolveu compartilhá-lo com a sua orientadora. Pois essa professora pegou o notebook da filha numa sexta-feira à noite e levou até a casa da aluna, do outro lado da cidade, para ela terminar o relatório durante o fim de semana. Talvez Maria Luísa, contando essa história, amolecesse o coração do professor para o estendimento do prazo e quem sabe até ele compreendesse o recado, arranjando um notebook para ela terminar o trabalho.

Melhor nem sonhar, pois coisas assim não costumavam acontecer na vida dela. Sempre uma luta para estudar, desde quando ainda morava em casa e não tinha sossego nem um canto onde se sentar para fazer as tarefas da escola. Não desistiria agora tão perto de se formar só por causa de um computador quebrado, depois de quatro anos de cuscuz com salsicha no Bandejão dos Cafundós. Mas o professor não quer saber se você tem vida sofrida, só quer o trabalho ali no prazo e pronto. Reprova mesmo, a gente que se vire para terminar noutro semestre.

Que cara é essa, Malu? Era Rosália, uma das moças da limpeza. O conserto do computador, ela não resolvia, mas ofereceu um cafezinho que tinha acabado de passar. Soltou por uns instantes o balde com o pano de chão, o desinfetante, o rodo e a vassoura, para encher um copo plástico com o líquido preto, amargo e doce da garrafa térmica que carregava debaixo do braço. As coisas podiam até não andar bem, mas podia sempre contar com esses pequenos gestos que, se bem não resolvessem seus problemas, melhoravam muito o seu humor para enfrentá-los. 

A menina agradeceu com um sorriso e foi se levantando, devagarinho. Primeiro, ergueu o tronco um pouco, apoiada nos cotovelos. Depois sentou-se para tomar o café de Rosália. Mais um fim de tarde no Pátio dos Bons Ventos. Aquele cumprimento diário do prazo de anoitecer, no que o céu vai ficando espontaneamente alaranjado antes de escurecer de vez e acenderem as luzes para outro turno de aulas, palestras, reuniões. As lanchonetes já começavam a se agitar com seus espremedores de laranja e liquidificadores, suas chapas quentes para alimentar professores, estudantes e todo mundo que andava de um lado para o outro dos Cafundós. A poucos metros e dez minutos de antecedência, Malu já avistava seu professor devorando um salgado.

CORDEL - UFPB

Coletivo Representativo dos Docentes em Luta na UFPB

Um comentário sobre “Cafundós #EP01

  • 16 de setembro de 2021 at 11:07 pm
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    Adorei a nova série de contos. Parabéns minha irmã.

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