Cafundós #EP02

Episódio 02: O Professor Demóstenes

O pastel de dona Jose era o melhor dos Cafundós. Crocante e sequinho, sem aquele pingado de óleo escorrendo no papel toalha, bem recheado, o queijo derretido por toda a parede da massa salgada e fininha. Quando dona Jose fritava os pastéis, o cheiro se espalhava pelo Pátio dos Bons Ventos e invadia as salas de aula, tirando a concentração dos alunos e dos professores. O jeito era terminar a aula mais cedo e correr para a Cantina do Intervalo.

O professor Demóstenes bem sabia o impacto daqueles pasteizinhos no desgoverno das suas taxas de colesterol, afinal, já se iam seis meses de massa frita desde seu último divórcio. Os pastéis ajudavam a passar o tempo nos Cafundós, onde o professor chegava logo cedo de manhã e muitas vezes só saía à noite, trabalhando todo o tempo para se distrair da saudade de sua ex-mulher e dos dois filhos que saíram da sua vida numa separação traumática. Dona Jose, com seus pastéis de queijo, afagava o coração do professor Demóstenes ao mesmo tempo que entupia suas veias de colesterol, o que por sua vez o levava à beira do infarto. A situação estava equacionada dessa maneira até o cardiologista do professor sentenciar-lhe uma vida de saladas e caminhadas distantes da cantina de dona Jose.

E o pior que, agora, para administrar outra renovação do crédito consignado, Demóstenes cogitava seriamente largar o plano de saúde, ou no mínimo mudar para outro mais simples no qual dificilmente encontraria o seu cardiologista. As contas do professor não já não fechavam desde a reforma do apartamento chique para onde a ex-mulher fez questão de se mudar já no meio da crise do casamento. Veio a viagem para o exterior, tentando salvar a relação, e as dívidas só se acumularam. Depois, as contas do divórcio, às quais ele ainda estava se adaptando: mobiliar um novo apartamento, pagar pensão, transformar um carro em dois, e por aí o professor foi se endividando com a facilidade dos que podem ter desconto em folha de pagamento. Em resumo, seu orçamento estourava junto com suas taxas de colesterol.

Havia uma escolha difícil a ser feita pelo professor Demóstenes entre a própria vida, que valia cada vez menos a pena, e aquela crocância de queijo que recompensava sua rotina de muitas aulas, longas reuniões de departamento, palestras intermináveis e exaustivas orientações de pesquisa. Como suportar sem um pastelzinho, por exemplo, a ladainha de Maria Luísa sobre os adiamentos da entrega de seu trabalho de conclusão de curso? 

A menina tinha uma vida difícil, ele estava a par, mas nem por isso seus colegas o dispensariam da chacota por desmarcar outra vez a banca de defesa do TCC, composta e adiada há dois semestres, entrando pelo terceiro. Uma garota tão inteligente, com tino para a pesquisa, devia cuidar de se formar logo e passar em um bom programa de mestrado, mas Maria Luísa não desenganchava daquele segundo capítulo. Vinha sempre com uma história de computador quebrado, de falta de luz na Residência Universitária, mil desculpas que Demóstenes ouvia com benevolência, disfarçando a irritação. Afinal, ele já tinha seus muitos problemas e não podia se envolver com as complicações da vida dos outros. Houve um tempo em que ele ajudava bastante os estudantes mais próximos, levava para almoçar, pagava lanche, bancava passagem e hospedagem em congresso, mas isso era quando o salário dele ainda sobrava um pouquinho depois de pagar as contas do mês. Agora, com o desconto dos empréstimos, mal ele podia fazer a própria feira, quem dirá resolver as dificuldades de Maria Luísa. 

O melhor mesmo era entregar aquela orientação, passar adiante para um professor menos ocupado e com a saúde mais em dia, porque ele ia terminar infartando com esse desmarcado das bancas de Maria Luísa. Daqui que explicasse para os três professores, pedisse mais prazo, negociasse nova data nas agendas lotadas de todo mundo, para quando chegar faltando quinze dias a menina vir de novo dizer que não terminou, o coração de Demóstenes não podia aguentar. Daquele jeito, seu nome ia terminar grafado em memória póstuma nos agradecimentos do TCC da menina. 

Nas últimas mordidas do pastel, o professor levantou os olhos em direção ao canteiro florido do Pátio dos Bons Ventos. Seu olhar encontrou o de Maria Luísa, sentada no tablado sombreado, introspecta, tomando um café. A menina acenou discretamente, com o sorriso contido dos que portam uma má notícia. Demóstenes retribuiu o aceno ao mesmo tempo em que verificou o relógio. Faltavam ainda dez minutos. Terminou o pastel e pediu um café a dona Jose. Sem açúcar, para não aumentar a glicose.

CORDEL - UFPB

Coletivo Representativo dos Docentes em Luta na UFPB

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