Episódio 03: Dona Jose
Junto com o cafezinho do professor Demóstenes, dona Jose também trazia cinco tapiocas, um pão com ovo, três sucos de laranja e um caldo de cana. Tudo isso se amontoava calculadamente na bandeja exigindo concentração total, coisa que faltava à jovem senhora naquele dia. Além da grave preocupação que lhe acometia, não possuía a devida experiência com aquela tarefa de equilibrista. Sua função era na cozinha, preparando os alimentos, e na administração da Cantina do Intervalo. Ultimamente, no entanto, Dona Jose substituía Albertina cada vez mais, por conta da gravidez que já contava oito meses. Quando não era consulta, era cansaço.
Parte dos cabelos brancos de Dona Jose, aliás, devia-se à barriga de Albertina. Já estava em tempo de ser avó, mas o filho perdera o trabalho de vigilante nem tão cedo sairia debaixo do teto dela. Robertinha cedeu o quarto, na maior boa vontade, mas não podia passar o resto da vida dormindo na sala, ainda mais estudando para o Enem. Dona Jose, além disso, não tinha mais paciência para ter bebê em casa, ia terminar tendo que ajudar a nora, aquele chororô de madrugada, e quando ela chegava dos Cafundós só queria deitar e assistir televisão. Já vinha até jantada, para não pisar nem na cozinha.
A bem da verdade, Dona Jose não queria levar Albertina para trabalhar na cantina, pois não se agradava de misturar a família com os negócios. Aquilo já havia dado errado uma vez, quando acabou cedendo em levar a cunhada para o caixa. Foram os piores dois anos de sua vida; Paulo Roberto se metendo o tempo todo no serviço para defender a irmã das muitas besteiras que ela fazia. Primeiro, nem era boa o bastante na matemática. Inventava de fazer as contas de cabeça e muitas vezes passava troco errado _ especialmente para menos. Dona Jose cismou antes mesmo das primeiras reclamações dos cliente, mas Paulão colocava panos quentes. Dizia que não, de jeito nenhum, que na família dele só tinha gente honesta e a irmã era uma santa, cuidava da mãe com bastante bondade e muitas coisas mais.
Depois Cibelle começou a misturar os orçamentos. Tirava da lanchonete para pagar as contas atrasadas de casa, dizendo que depois acertava, que estava tudo anotado certinho, e nunca essas anotações apareceram. Quando a sogra piorou da doença, tudo desandou de vez. Cibelle restaurava a saúde da mãe com o caixa da Cantina do Intervalo. Um remédio aqui, um tratamento acolá, até que dona Cecília ficou acamada e quiseram contratar uma cuidadora. Dona Jose foi contra, sabendo que a situação da Cantina ia piorar de vez. Mas quando bateu o pé e disse que não concordava, que, sendo ela a proprietária da Cantina, a decisão estava tomada, Paulão fez que ia sair de casa e começou uma confusão danada.
Robertinha apoiava a mãe, só que o filho mais velho virou-se contra elas. Passou a querer cantar de galo, dizendo que também não pisava mais em casa, que ia morar com o pai e sumiria da vida delas, que aquilo não estava certo, que a avó ajudou a criá-los e agora dona Jose estava fazendo questão de uma mixaria, podendo dar dignidade nos últimos dias da sogra. Todo o tempo era briga, nem eles iam embora de verdade, nem ajudavam na cantina, nem procuravam pagar as contas de outra forma. Paulão continuava trabalhando só à noite, como segurança dos Cafundós, e o restante do dia era em casa dormindo. Paulinho ainda estava rodando de uber, mas somente quando queria. Escolhia muito. Esse trajeto é muito curto; aquele, muito esquisito, e assim mais dispensava as corridas do que dirigia. Até o carro ser apreendido porque ele deixou de pagar o emplacamento. Terminou o pai arrumando serviço de vigilante para ele também lá nos Cafundós.
Este era Paulinho, toda vida uma dor de cabeça para dona Jose. Vigiando o Pátio dos Bons Ventos, passava o dia comendo o juízo da mãe com esse imbróglio familiar envolvendo a avó e a tia. Cibelle já não estava mais na lanchonete, mas também não aceitava cuidar da mãe. Paulinho e Paulão infernizavam d. Jose dia e noite para pagar essa tal dessa cuidadora, mesmo sabendo das planilhas todas, provado não haver dinheiro. Na verdade, havia um buraco tremendo no orçamento que coincidia com o tempo de Cibelle à frente do caixa. O dinheiro, que nunca sobrou muito, havia começado a faltar cada mês um pouco mais, e nos últimos meses em que ela estava por lá, o faturamento chegou a cair mais da metade.
A prova definitiva do caráter de Cibelle veio à tona assim que a mãe deles finalmente faleceu. Quando foram enterrar dona Cecília na cova que ela própria havia comprado no Cemitério da Boa Sentença, um dos melhores dos Cafundós, descobriram que não tinha pedaço de chão algum no nome dela. Cibelle ainda fingiu surpresa até o representante funerário apresentar o certificado de transferência do jazigo, escriturado com a sua firma reconhecida. Desde que dona Cecília começou a apresentar sinais de falta de memória, trataram logo de interditá-la, e era Cibelle a responsável por tudo. Recebia a aposentadoria, pagava as contas e administrava os bens, por isso vendeu a cova da mãe sem perguntar nada a ninguém. O valor estava lá muito bem descrito no documento: doze mil reais. O que ela fez com esse dinheiro todo, nunca se soube. Enterrou-se o assunto junto com a mãe, e Cibelle tratou de sumir antes da missa de sétimo dia, muitíssimo abalada. Quem pagou o caixão, o velório, o sepultamento, a missa, tudo? Depois de uns tempos com uns parentes distantes, noutro estado, Cibelle voltou para os Cafundós com a cara mais lavada, pedindo dinheiro emprestado ao irmão. Só sobrava para dona Jose e para a Cantina do Intervalo.
O único dinheiro que Paulão chegou a empregar no negócio foi uma pequena parte do apurado com a venda da casa de d. Cecília, depois de muita briga e do desconto de muitos gastos. Porque Cibelle alegava o tempo inteiro que tinha parado a vida por muitos anos para cuidar da mãe, merecendo ficar com a casa toda para ela, do que quase convenceu o irmão. Não fosse d. Jose relembrar dia e noite o rombo que a cunhada havia deixado no caixa da lanchonete, os custos do inventário arcados integralmente com o orçamento da cantina _ só de imposto foi-se mais de dez mil reais, outros cinco mil de advogado _ afora, lógico, o novo jazigo que precisou ser comprado e as caríssimas providências fúnebres de d. Cecília, com todas as pompas que os filhos julgavam indispensáveis e para com as quais não podiam arcar. O caso precisou ser levado à Justiça e dona Jose só não foi chamada de bonita pela cunhada.
Depois desses problemas todos, houve um tempo de paz e bonança. Tudo ia bem nos Cafundós, as contas recuperadas, o casamento reconciliado. D. Jose até fez uma viagem com Paulão para as cachoeiras. Pousada simples, comida gostosa, muitos passeios: uma segunda lua de mel. Robertinha ganhou uma escrivaninha nova e passava o dia estudando. Paulinho começou o namoro com Albertina, boa moça, se dava bem com todos. A vida seguia alegre, calma e quieta.
Até que surgiram novas encruzilhadas. Veio a gravidez de Albertina e os dois foram despedidos. Ela, por estar grávida; ele, por corte de verbas na universidade. Mudaram-se para o quarto de Robertinha e a nora virou atendente na Cantina. Mais duas bocas e um salário para sustentar. Não era com esses problemas, contudo, que dona Jose se preocupava ao equilibrar as bandejas no lugar de Albertina naquele final de tarde.