Caiu Salles, o ministro liquidações

(Arte: Claudio Duarte)

Nas últimas horas, enfim Ricardo Salles deixou de ser o responsável pelas canetadas da política ambiental deliberadamente destrutiva do governo Bolsonaro. Como há muito tempo ambientalistas de todas as estirpes pediam sua cabeça, é natural que essa notícia venha com alguma dose de alívio, mesmo que em meio à certeza de que os rumos da pasta pós-Salles não apontarão para nenhuma direção minimamente desejável. Sem pretender simplesmente afirmar que tudo continuará igual, ou que essa queda não faz diferença alguma, gostaria de abordar três pontos para contribuir para a reflexão sobre esse caso.

O primeiro deles é a figura abertamente afrontosa e desprezível do ex-ministro. Entre nossas fileiras, Salles atraiu para si um ódio comparável apenas àquele dirigido a Bolsonaro. Mesmo entre aliados do governo, seu indisfarçado tesão pela destruição ambiental gerou muitas tensões e alguma pressão pela sua demissão. Mas notem que a razão para a demissão de Salles não foi nem mesmo tal pressão, motivada por uma rejeição meramente estética da postura obscenamente indiscreta do ministro. Conforme noticiado, seu pedido de demissão teria sido causado por questões familiares. O mais provável, na verdade, é que sua queda tenha sido precipitada pelas investigações da PF que o envolvem. Reunindo esses elementos, fica fácil perceber que (apesar da satisfação de vê-lo defenestrado) não há razões para expectativas a respeito de qualquer mudança de rumo (mesmo que mínima) da política do governo Bolsonaro para o meio ambiente. Salles não caiu porque sua política era dissonante com a agenda governamental. Tampouco caiu apenas porque não soube cumprir com adequação estética a liturgia do desmonte. Caiu porque repentinamente se tornou um nome inconveniente para estar no comando do “correntão”. O “correntão” não caiu, está vivo e segue.  

O segundo ponto diz respeito à afamada passagem da boiada. Quando as gravações daquela notória reunião ministerial foram mostradas à população, Salles foi alçado à fama nacional instantânea por ser visto defendendo que o governo se aproveitasse da crise sanitária para acelerar o desmonte da legislação, regulação e fiscalização ambiental pela via infralegal, isto é sem precisar passar pelo Congresso. Receio constatar que ficamos com a visão um pouco nublada, tamanha a indignação com uma fala repulsiva em incontáveis sentidos. Deixamos de dar a devida atenção ao “detalhe” realmente importante: a legislação ambiental brasileira e todo o correspondente aparato regulatório e de fiscalização são desmontáveis apenas com parecer e canetada. A destruição de décadas de construção de toda essa estrutura esteve esse tempo todo ao alcance de um alguns poucos anos de um governo mal-intencionado, ou ensandecido, ou ecocida (ou nesse caso, tudo isso ao mesmo tempo). A rigor, olhando em retrospecto, Salles foi até um pouco pessimista naquele momento. O Congresso não tem tido muito pudor em garantir a passagem da boiada no legislativo também. Tudo indica que não é só o “correntão” que é movido a tratores.

O terceiro ponto é o mais importante. Admito que a queda de Salles provoca gozo. Admito que existe uma exígua possibilidade que o próximo sujeito a ocupar a pasta não encampe com tanto entusiasmo e naturalidade a agenda de morte. Admito até que uma mera mudança estética pode provocar discreto alívio para nosso fígado. Mas não podemos nos dar ao luxo da auto-ilusão. Não se trata apenas de saber que o governo Bolsonaro sempre apontará na direção do precipício. Trata-se de saber que nenhum governo, especialmente na periferia do capitalismo, pode ser realmente consequente com o tipo de reorganização do metabolismo entre sociedade e natureza que precisaríamos efetivar. 

Como venho dizendo em praticamente todas as minhas participações no debate público, a crise climática que se avoluma rapidamente abaixo da superfície do cotidiano exige de nós reestruturações da nossa forma de viver em sociedade que não têm qualquer precedente tanto em escala quanto em velocidade. E não me refiro a exigências para “preservar a natureza” ou coisa que o valha. Me refiro a transformações necessárias apenas para nos darmos uma chance de sobrevivermos e nos adaptarmos aos impactos produzidos por tal crise. Praticamente tudo que precisaríamos fazer violenta frontalmente os requisitos mais básicos da reprodução da sociedade capitalista: a produção pela produção, o consumo pelo consumo, o lucro pelo lucro. Assim, não convém imaginarmos nem mesmo que um eventual governo de esquerda dê um giro suficiente na política ambiental. Especialmente se esse eventual governo de esquerda vier carregado de sonhos desenvolvimentistas. Por mais ilustrado que um hipotético governo pós-Bolsonaro seja e por mais apoio popular que tenha, a política institucional no Estado burguês é povoada de becos sem saída. Ou destruímos esses becos, ou uma queda como a de Salles será apenas mais uma alegria fugaz, entre tantas outras (talvez nem tantas assim) que nos distraem de nossa tarefa histórica.

Eduardo Sá Barreto

Professor de Economia, pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro "O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas"

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