Cartilhas ou bloqueio da crítica

Na Crítica da Razão Pura, Kant estabelece, basicamente, os limites do conhecimento humano: até onde a Razão poderia alcançar e conhecer com segurança, sem abstrações metafísicas infundadas. O enredo da Crítica é a Teoria do Conhecimento e o estabelecimento dos parâmetros para a ciência moderna, fundados nas Luzes da Razão. É a Razão, a lógica ocidental, que está em jogo; é o conhecimento crítico, ao que nada escapa: tudo que é passível de ser conhecido poderá sê-lo por qualquer ser racional – seja deste mundo ou de qualquer outro, contanto que a estrutura seja a da Razão1 –, conforme estabelece Kant em sua filosofia da história.2 Kant é o mais alto dos modernos, aquele do qual o restante da história do pensamento crítico ocidental jamais conseguiu se desvencilhar. 

A Razão, no sentido posto, seria capaz de conhecer tudo aquilo que aparece, o que Kant chama de fenômeno. Todo fenômeno que aparece à Razão – já que não é possível o conhecimento do “substrato”, que o filósofo chama de coisa-em-si – é passível de conhecimento crítico. A crítica, por sua vez, não deve se limitar ao contexto histórico como um dado abstrato ou mesmo petrificado, tampouco deve se abster para evitar “ferir” aquilo ou aqueles que poderão se sentir feridos. Isto é: o limite da crítica são os limites da Razão, não quaisquer outros. 

O avanço da Teoria do Conhecimento de Hegel se dá em relação a Kant, entre outros diversos aspectos, pelo fato de aquilo que aparece já ser a coisa mesma, isto é, não existe uma dicotomia entre coisa-em-si, como substrato abstrato, e fenômeno. Para Hegel, tudo que se efetiva na história é racional – como diz no Prefácio da Filosofia do direito: “o efetivo é racional e o racional é efetivo”. Tudo que ocorre na história seria manifestação do Espírito, sua efetivação concreta em seu desenvolvimento no mundo, desenvolvimento histórico. Nesse sentido, a “função” do entendimento humano seria desvendar as contradições da coisa – doa a quem doer. É a partir da contradição que a coisa progride, evolui (mesmo que historicamente nos pareça um retrocesso3). O próprio movimento da coisa gera sua contradição e a superação evolutiva dessa contradição – em termos vulgares, a síntese que se transforma em nova tese.4 Não há limites, então, para o entendimento humano: as contradições são reais, não uma invenção teórica da dialética ou mesmo produto da mente do pensador. 

Temos aqui duas vias, duas teses: por um lado, os limites do pensamento crítico não são dados a partir de fora, tampouco pela coisa pensada; e, por outro, as contradições imanentes à coisa devem ser compreendidas sem receios ou medos; somente assim a compreensão (o entendimento) se aprofunda, visando a verdade do processo.

Para a teoria frankfurtiana, no entanto, há um bloqueio quase total até mesmo ao conhecimento da totalidade social e suas contradições particulares. É que, entre outros fatores, o próprio desenvolvimento da razão (ocidental) levou ao bloqueio (quase total) da Razão. A efetivação da razão a faz transformar-se em seu oposto: irracionalidade. Contudo, o ponto alto da Teoria Crítica da Sociedade5 é desvendar, não sem a ajuda da teoria weberiana, a duplicidade da Razão. Por um lado, a Razão Crítica, fundamentalmente humana, direcionada “a fins” humanos; por outro, a razão instrumental (ou técnica), voltada aos “meios” de realização técnicos do capital. O problema estaria essencialmente no “eclipse” da Razão crítica causado pela razão Instrumental. Esta ocuparia quase todas as dimensões da vida, não somente a dimensão da produção material capitalista – aqui o “desencantamento do mundo” e a “jaula de aço” weberianos. 

Ora, mas o bloqueio é quase total. Isto faz toda a diferença. O esforço teórico no “capitalismo tardio” e sobre todas as suas vicissitudes seria também o esforço prático de não se deixar engolir pela ideologia6 – que agora, como diz Adorno, “é a própria sociedade” e se manifesta não somente como “falsa consciência”.7

Ao que parece, hoje, com a “esfera pública” das redes sociais – nas quais sobram subcelebridades de si mesmas e verborragias de todas as espécies –, estamos aquém dos pensadores da modernidade. Estabelecem-se “verdades” a priori sobre as coisas e, a partir dessas “verdades”, como que por encanto, impõem-se limites ao pensamento, o que faz a reflexão ser bloqueada por algum elemento externo – e esdrúxulo. Qualquer tema em voga possui sua própria cartilha de formas (compósitas) para se pensar. Seguem-se cartilhas por medo da anulação do crítico vinda dessa pretensa esfera pública “crítica”; seguem-se doutrinas putrefatas por medo do avanço crítico que poderia desestabilizar, até mesmo, a inserção nessa esfera pública que somente permite quem se enquadra8 – e a crítica sem travas poderia desmitificar a própria “verdade” dessa esfera pública, esfacelando-a. Por seu turno, para esse tipo de “pensar crítico”, revelar as contradições inerentes à coisa é um acinte. Todo aquele que se preza deve pensar dentro da caixa, mas por fora da coisa. A ideia de totalidade, ou mesmo um modelo dela – uma constelação –, desaparece quase por completo, deixando-se entrever somente nas evocações acríticas de grandes pensadores (na esquerda atual, por exemplo, Lenin, ou seu simulacro, é uma dessas muletas; conceitos abstratos sem ancoragem real e sem contextos, outra muleta9). A vivência concreta – e ideológica –, que se expressa nessa esfera pública, toma o lugar da experiência, como se a vivência fosse o parâmetro crítico pelo qual se pega a coisa pelo chifre, completamente. Os críticos se esquecem, no entanto, de que, se o que aparece é a ideologia do capital, a vivência não pode ser pura, reveladora, sendo, quando muito, ratificação do estabelecido – estão aquém de Walter Benjamin10; também, aquém de Descartes ao confiar completamente nos sentidos e na empiria acrítica. São pobres, e lutam para ostentar a pobreza da forma mais visível, e vil, possível.11

É preciso ratificar o que é dado como verdade, não fazer a crítica radical. Quem ousa, morre socialmente, é anulado da esfera pública e do pretenso debate público. A existência danificada se reflete na crítica pela metade: “semicrítica”, igualmente danificada, unilateral. O entendimento não alcança a contradição da coisa; quando muito, a vê e a repele de pronto: a verdade revelada seria o fim do sonho harmonioso da “crítica” fácil e pronta, e do “ganha-pão” do crítico e/ou militante. Tal “verdade” é “dialética” como um alimento ultraprocessado: já previamente preparada, mas com um custo altíssimo para a saúde.  Evita-se a experiência do diverso, da contradição e, por isso, constrange-se a crítica aos parâmetros dados pela sociedade existente. 

Mesmo um pretenso marxismo atual está longe da razão de ser da dialética, que seria superar a si mesma como crítica radical. Isto por um motivo especial: de 30 anos para cá, mais ou menos, vem ocorrendo uma substituição, ora sutil, ora explícita, das categorias de dominação pelas de opressão, como se ambas pudessem se desligar mecanicamente. Isso, na soma dos anos, fez com que o marxismo se distanciasse cada vez mais de sua capacidade de crítica imanente pela perspectiva da totalidade social engendrada pelo capital como sociabilidade capitalista. Importa menos a dominação e mais a expressão, e talvez a superação mental, pela consciência somente, das supostas opressões concretas – isto é, a aparência fantasmagórica, e a “solução” ideológica, do problema12. Aliás, o que resta de marxismo nas esquerdas está, em grande parte, petrificado como doutrina; o que existe hoje é um distanciamento do marxismo, especialmente da dialética de Marx, seja consciente ou inconscientemente, e, por consequência, um distanciamento da crítica radical e do horizonte de emancipação real.13

Ao aceitar o dado pela sociedade existente como algo petrificado ou movimento natural, colocamo-nos abaixo da crítica de quase 300 anos: aquém de Kant, aquém de Hegel.14 Quem, hoje, ousa revirar as coisas para ao menos tentar encontrar um caminho à verdade? Quem ousa pensar as contradições sem medo de ser sugado pelo vórtice da instabilidade e não ter mais a roupa justa da “personalidade”, coletiva e individual, petrificada e putrefata como apoio?15 Ao que tudo indica, estamos aquém da possibilidade de emancipação. 

Referências

  1. As categorias e conceitos, a priori, da Razão, tais como desenvolvidos na Crítica da Razão Pura.
  2. KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita.
  3. Para Hegel, o período chamado de “Terror”, na Revolução Francesa, não seria um retrocesso, mas uma forma de a Razão se efetivar, ainda que imediatamente pareça antinômico. É o que ele chama de “astúcia da Razão”.
  4.  A diferença básica entre Hegel e Marx e os marxistas (especialmente os frankfurtianos – há quem diga que não são marxistas…) é que, para Hegel, a “evolução” e o “desenvolvimento progressivo” do Espírito é inevitável, isto é, a história anda para a frente no sentido de sua própria superação, e para os marxistas a contradição pode gerar uma evolução que faz a coisa se manter, ainda que com outro aspecto – isto pode ser visto na teoria sobre o tempo abstrato, em Marx (cf. POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social, especialmente o cap. 5, tempo abstrato, e o cap. 8, A dialética do trabalho e do tempo) – e, igualmente, nas formas de dominação sempre renovadas da produção da subjetividade pelo movimento do Capital que, ao se superar, se mantém (como a Indústria Cultural, de Adorno e Horkheimer, por exemplo).
  5.  Aqui me refiro à “Primeira geração”: Adorno, Marcuse e Horkheimer, especialmente.
  6. Já que tudo que surge, aparece, existe ou se efetiva na sociedade capitalista se identifica prontamente ao capital – até por ser um produto da sociabilidade capitalista voltado aos seus fins –, Adorno não nomeia o negativo. Semanticamente, tudo que tem nome se identifica, então negativo não pode ser nomeado: não-idêntico.
  7. Ao que parece, o capitalismo tardio, que torna a ideologia totalidade – “totalidade falsa”, para Adorno –, faz uma espécie de retorno a Kant: (quase) tudo que se manifesta já é um requentadão do capital como sociabilidade, não a coisa tal como é.
  8. Por exemplo: quem ousa, sem ser negro, fazer uma crítica radical da condição dos negros na sociedade de classes atual? Quem ousa, sendo negro, fazer a crítica radical da condição dos negros na sociedade de classes atual? E da condição dos grupos minoritários em geral? As cartilhas são para dizer quem pode, mas na verdade não faz e não pode; e servem também para quem não pode, e não ousa.
  9. “Racismo estrutural” é um desses conceitos. Na maioria dos casos – com exceção de Dennis de Oliveira e Silvio Almeida, entre alguns outros, cada um a seu modo –, o conceito (se é que se pode chamar assim) é usado sem critérios, quase como um mantra, um provérbio, um versículo recitado sem reflexão.
  10. BENJAMIN, W. “Experiência e pobreza”. Quanto a Descartes, na “Primeira meditação”, das Meditações Metafísicas, estabelece-se, tendo como método a dúvida hiperbólica, que “não se pode confiar em quem nos enganou uma vez”; os 5 sentidos nos enganam algumas vezes, levam-nos ao erro, portanto, não são passíveis de nos levar ao conhecimento da verdade. Contudo, para fazer jus às Meditações, é preciso dizer que depois do estabelecimento da ideia de Deus, da verdade divina, nas terceira e quarta meditações, Descartes pôde provar a verdade sobre a extensão (o mundo extenso; material) e, assim, estabelecer a verdade sobre os sentidos, do conhecimento provindo através deles.
  11. “Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna” (BENJAMIN, W. “Experiência e pobreza”). A título de exemplo, que sintetiza muito do pensamento pretensamente “libertador” na atualidade: recentemente, Celso Athayde escreveu um texto emblemático que ofusca a visão dos desavisados (mesmo que estes sejam doutores ou militantes) e faz saltar aos olhos uma tristeza, e uma revolta, sem fim naqueles que lutam por emancipação real, que traz uma frustação que nos diz: “perdemos…”. Vejamos: “Favela é potência, não é carência”, diz o texto. O que isso significa? “Desde o seu surgimento, a favela foi vista como um lugar de carência, criminalidade e miséria. Essa visão, reforçada por políticas de Estado, é a expressão do racismo estrutural enraizado na sociedade brasileira.” (negritos do próprio texto). Em poucas linhas, o militante consegue deixar subentendido, para quem souber ler, que o problema não é a existência da favela, mas como a vemos, nós, moradores dela; o problema está em nós… Além disso, salta aos olhos também a ideia de que o Estado “atrapalha” – nada mais próximo de um liberal rico que um… liberal oportunista! E o uso de conceitos em voga, que de tão batidos nada significam senão um chavão que ratifica o lugar do texto. O texto termina colocando as cerejas, no plural, em cima do bolo da naturalização ideológica da miséria consentida: “Eu sempre digo que a próxima revolução virá das favelas, e não será uma revolução política, mas econômica. Ela será mais rápida se contar com a associação do setor empresarial. É preciso que as empresas enxerguem o potencial de geração de valor do empreendedorismo na base da pirâmide, agregando um olhar capitalista a esse fenômeno social, para elevar a favela a uma condição de motor do crescimento econômico. O Brasil só tem a ganhar com isso.”ATHAYDE, Celso. “Favela é potência, não é carência”, diz Celso Athayde, da Favela Holding, de 29 nov. de 2021. Disponível em: <https://exame.com/colunistas/favela-s-a/favela-e-potencia-nao-e-carencia-diz-celso-athayde-da-favela-holding/>
  12. Aqui, mais uma vez, entre diversos outros exemplos possíveis, o texto de Celso Athayde.
  13. Não se trata, obviamente, de deixar de lado as diversas pautas sobre as opressões. Antes, seria o caso de vê-las, inseri-las, dentro do movimento da totalidade, da sociabilidade capitalista como um todo, não como pautas supostamente autônomas e desligadas do movimento geral da sociedade. Dominação e opressão andam juntas, não se excluem. Anular a primeira em favor da segunda é, inversamente, ratificar e naturalizar a dominação em suas diferentes dimensões.
  14. Não por acaso, também ao nível da provocação, citei apenas filósofos alemães (com exceção de Descartes), isto é, europeus e brancos.
  15.  Tal como, a título de exemplo, a personagem central no conto “O espelho”, de Machado de Assis.

Vinicius dos Santos Xavier

Militante marxista desde o início dos anos 2000, Professor de filosofia da rede estadual de São Paulo, integrante do grupo de estudos “Repensando o Desenvolvimento”, do LABIEB-USP no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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