Como evitar que nos colonizem a cabeça?

Outro dia, uma compa, que vou chamar de Zulema, assentada da reforma agrária que, com outras mulheres do assentamento, se organiza para plantar alimentos sem agrotóxicos (para o consumo da família e para vender no município), contava-me que o cultivo da cana ocupa 90% dos lotes do assentamento. Alguns plantam diretamente e há aqueles que arrendam a terra a outros, com mais recursos. Toda essa cana é comprada pela Raízen, empresa que nasceu como fusão entre a Shell Brasil e a Cosan, empresa brasileira produtora de açúcar do estado de São Paulo. A estratégia da transnacional Shell é entrar na cadeia dos biocombustíveis.

Destinar o lote de reforma agrária para outra coisa que não seja alimento, ou dá-lo em arrendamento, é proibido. Por esse motivo, muitos assentados querem o título de propriedade, para sair da ilegalidade. Grande parte dos incêndios que afetaram os canaviais e os cultivos vizinhos em nosso município foram causados pelo manejo da cana-de-açúcar em unidades econômicas de todos os tamanhos. Um companheiro, a quem chamarei Marco, para não o dedurar, propôs que defendêssemos uma lei para exigir uma faixa corta-fogo de 100 metros de largura em torno dos plantios de cana. No caso do assentamento, onde os lotes não ultrapassam 8 ha, uma normativa como essa inviabilizaria o canavial. Num cálculo rápido, cada lote não poderia plantar mais de um hectare com cana, o que não resultaria rentável. Porém, perguntamos a Marco: por que seria respeitada uma normativa como essa, se nem sequer se respeitam as leis de apenas plantar alimentos e não dar em arrendamento áreas da reforma agrária? A pressão da demanda da cadeia do etanol impõe-se para driblar toda e qualquer legislação. E, se, por alguma razão milagrosa, o Estado fizesse cumprir essa lei, as grandes operadoras da cadeia, como a Raízen, que controlam o uso dessas terras na esfera da comercialização, ficam a salvo de qualquer punição. Os riscos ficam com os que têm a posse da terra (pequena, média ou grande).

Bom, assim vem funcionando a cadeia do etanol no estado de São Paulo1. No entanto, isso não acontece apenas com o etanol: faz muitos anos que a integração de agricultores familiares à cadeia do tabaco nos estados do Sul atinge a autonomia e a saúde de grande parte dos produtores rurais da região2, que se endividam com a operadora Souza Cruz, agora chamada British American Tobacco (BAT) Brasil, na compra do pacote tecnológico. Esse pacote inclui venenos potentes, que inviabilizam a produção de alimentos saudáveis no lote e nos lotes vizinhos e adoecem severamente as famílias.

Entre os Kaigáng, nos mesmos estados do Sul, os A’uwe, em Mato Grosso, e os Guarani e Kaiowá, no estado de Mato Grosso do Sul, a cadeia da soja e também da cana para etanol pressionam e seduzem parte das comunidades para arrendar suas terras. Ainda estando proibido por lei o arrendamento de terras indígenas, encontraram figuras legais como a da “parceria” para disfarçar contratos de arrendamento. A pressão divide as comunidades e resulta em violências e mortes. Na maioria dos casos, são as mulheres e as autoridades espirituais (mulheres e homens) que se opõem ao arrendamento e ao plantio de commodities em suas terras. No caso dos Guarani e Kaiowá, os fazendeiros vêm patrocinando a expansão das igrejas evangélicas nos tekoha3, como ponta de lança do combate ao nhanderekó4, defendido pelas autoridades tradicionais. As acusações de feiticeira geraram perseguições que cobraram a vida de pelo menos quatro rezadores e rezadoras nos últimos anos.5

A integração dos de baixo às cadeias de commodities vem crescendo nas últimas décadas. Coisa parecida acontece com as cadeias do leite e da carne de aves e suínos, em que pequenos agricultores vendem os insumos para a grande agroindústria. Os pequenos agricultores são seduzidos para a integração, reproduzindo “em pequeno”, como “agronegocinho”, a lógica do grande agronegócio. Só que são o elo mais débil da cadeia, descartáveis quando a terra está esgotada ou quando os fundos de investimento, no vai e vem das flutuações financeiras, decidem investir em outras geografias, em outras atividades econômicas.

Essa dinâmica não acontece apenas no Brasil. No Chile, durante o governo de Michelle Bachelet, os subsídios de 75% para o plantio de pinho e eucalipto que Augusto Pinochet tinha implementado para as grandes operadoras de pasta de celulose foram estendidos aos médios e pequenos agricultores, inclusive àqueles com mais de 10 ha de terra. O resultado foi desastroso durante os incêndios de janeiro de 20176. Mesmo as numerosas retomadas de terra realizadas pelos Mapuche (terras que tinham sido usurpadas desde as últimas décadas do século XIX e a partir do governo Pinochet destinadas para esses cultivos) resultaram em penoso trabalho de arrancar as raízes de pinho e eucalipto, que rebrotam teimosamente, para recuperar a vegetação nativa e os cultivos tradicionais de seu território. A tentação de continuar vendendo a madeira para as grandes operadoras “apenas desta vez” ronda o difícil dia a dia das famílias. Essas grandes operadoras tendem a se retirar dos trechos mais arriscados e menos lucrativos da cadeia, controlando o uso da terra através da esfera da comercialização.

Na Colômbia, já funcionavam assim os “cultivos ilícitos”, plantados por pequenos produtores e que enriqueciam as cadeias do narcotráfico. Nas outras cadeias, porém, predomina ainda a tendência a acaparar terras. Agora, a proposta de “reforma agrária” do presidente Gustavo Petro pretende que os pequenos agricultores se dediquem à pecuária para se integrar à cadeia exportadora de carne, comandada pela Federación de Ganaderos (Fedegan). São os mesmos pecuaristas que expulsaram com violência os camponeses agora demandantes de terra, os “desplazados” pelos paramilitares para que os pecuaristas ficassem com 8 milhões de hectares de terra grilada. Petro quer comprar 3 milhões dessas terras dos pecuaristas para essa “reforma agrária”, e que os camponeses se dediquem à criação de gado sob assessoria dos mesmos que os expulsaram7.

Alguns territórios comunitários são integrados aos mercados de carbono, o que inviabiliza suas práticas tradicionais8.

São exemplos que não se restringem às cadeias agropecuárias. Nos últimos tempos, os outrora irredutíveis Munduruju têm se dividido em razão da pressão da cadeia aurífera. Muitos membros do povo viraram garimpeiros em sua própria terra indígena9.

Isto é, os segmentos superiores das cadeias extrativo-produtivas tendem a reduzir seus riscos e não querem imobilizar capital em terras que, por suas práticas predadoras, se esgotam em pouco tempo. Preferem controlar o uso da terra por meio da esfera da comercialização, e atuar de maneira velozmente flexível. Ao mesmo tempo, desenvolvem estratégias de convencimento dos segmentos mais débeis, especialmente aqueles dos territórios de extração. A economia do terror e as ameaças violentas que predominam durante o avanço da fronteira das “manchas” das commodities internalizam-se de tal maneira na alma das gentes, que a ameaça não precisa sequer ser enunciada. E se combinam com seduções econômicas imediatas. Muitas operadoras vêm desenvolvendo tecnologias de “permisiologia” para driblar “amigavelmente” as resistências da populaçã10. Colonizam as subjetividades de muitos dos nossos. Como dizem na Argentina: “les comen la cabeza”. Ao perderem as bases materiais para uma vida humana, são reduzidos em sua condição de sujeitos e se tornam inimigos de si próprios.

Lembro um detalhe do enredo de Matrix11, o filme de ficção científica: num mundo distópico, qualquer um poderia virar o vilão Smith, personificação da grande máquina que dominava a humanidade.

Pergunta nada retórica para as e os leitores desta coluna: como parar isto?

Referências

  1. Ver a dissertação de mestrado de Rodolfo Pelegrin “Agroindústria canavieira no interior de São Paulo: o caso de Lençóis Paulista”. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/server/api/core/bitstreams/b87e2484-46c0-4136-aeed-c6d4bfefa012/content
  2. Ver: https://www.scielo.br/j/csp/a/RhFwsYSn5cKVgKLCkDZKYjq/
  3. Literalmente: “lugar em que se é”, denominação dos territórios pelos povos Guarani.
  4. “Modo de vida” guarani.
  5. Ver: https://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/5256/4375
  6. Ver: https://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/5256/4375
  7. Ver: https://congresodelospueblos.org/convencion-nacional-campesina-reforma-agraria-o-integracion-de-los-territorios-a-las-cadenas-de-exportacion-de-alimentos/
  8. Ver: https://contrapoder.net/colunas/fe-na-fotossintese-compensacoes-e-o-mercado-de-carbono/
  9. Ver: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2024/12/02/na-terra-munduruku-indigenas-exploram-ouro-ilegal-e-tornam-complexa-missao-de-desintrusao.htm
  10. Como vem estudando o Colectivo El Kintral, do Chile
  11. Matrix, de Lana Wachowski y Lilly Wachowski, Estados Unidos, 1999, 136 minutos.

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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