Curta reflexão sobre tática e estratégia I

Pretendo aproveitar os próximos textos para abordar inquietações minhas relacionadas à estratégia revolucionária. A pertinência para as questões ecológicas pode não ficar totalmente evidente de início, mas eventualmente farei o caminho de volta, reconectando essas divagações ao tema principal da minha coluna no Contrapoder. 

Começo este texto com uma conhecida afirmação de Lenin. Diz ele, como todos sabemos: “Sem teoria revolucionária, não pode haver movimento revolucionário”.1 Não o faço para me apoiar grosseiramente em um argumento de autoridade, mas para economizar o espaço que normalmente seria ocupado com uma longa introdução alertando que o que vem na sequência não é mero preciosismo teórico; é uma discussão sobre alguns dos fundamentos sobre os quais procuramos apoiar nossa prática revolucionária. 

Não é difícil perceber que, se apoiamos o edifício da prática revolucionária sobre terreno movediço ou sobre pilares frágeis, qualquer estratégia que possamos conceber padecerá de problemas debilitantes de origem. Aliás, o par tática/estratégia é o complexo de problemas que pretendo tratar neste texto. 

Evidentemente, não é o caso de, aqui, recuperar formulações diversas específicas sobre o tema. Para a continuidade do raciocínio, basta reconhecer que essas duas categorias comparecem em nossos debates e reflexões com muita frequência. E é comum esbarrar com apropriações bastante heterogêneas a seu respeito: desde as mais rigorosas e sofisticadas até as mais frouxas e vulgares. Sem ter pretensão de bater em espantalhos, tomo aqui duas das piores versões. Não o faço para facilitar meu exercício crítico, embora esse seja um óbvio efeito colateral ao criticarmos as piores versões de qualquer ideia. Tomo essas piores versões porque – a despeito de circularem entre nós excelentes reflexões acerca de tática e estratégia – são elas que normalmente são traduzidas em prática efetiva. 

As duas versões às quais me refiro são: uma que faz um recorte meramente temporal, tomando a tática como o horizonte de curto prazo e a estratégia como o horizonte de longo prazo; e outra que faz um recorte de possibilidades, tomando a tática como o conjunto de ações dirigidas às possibilidades de sucesso imediato (ou às urgências do cotidiano) e a estratégia como o conjunto de ações dirigidas a um futuro indeterminado, ainda fora do alcance das possibilidades.

Um primeiro problema, compartilhado por essas duas versões, é que tática e estratégia comparecem como âmbitos de ação pertinentes a conjuntos de objetivos dissociados. As urgências do cotidiano, de um lado, e um sonho de futuro, de outro. As pequenas vitórias insuficientes (mas possíveis) de hoje, de um lado, e as grandes vitórias necessárias (porém impossíveis no momento) de outro. 

Numa leitura rápida, talvez não pareça tão problemático assim, tamanha é a recorrência com que tratamos a coisa desse jeito. No entanto, é crucial resgatarmos a compreensão viva de que há (e deve haver) uma relação de subordinação entre tática e estratégia. Mais importante do que resgatar essa compreensão, que nunca deixou totalmente de circular entre nós, é nos tornarmos capazes de extrair dela uma linha política consequente. É verdade que a estratégia é concebida tendo em vista um horizonte de tempo distendido. Mas não num sentido em que apontamos para um longo-prazo distante e desconectado do presente para, em seguida, voltarmos todas as nossas energias para os atropelos do dia a dia. Ao contrário, o horizonte temporal distendido alcança o futuro (que pode ser mais ou menos distante), mas começa hoje, no presente. É assim que a tática está (ou deve estar) subordinada à estratégia. A pergunta que estrutura a tática não pode ser “O que posso (ou tenho que) fazer hoje?”. A pergunta que estrutura a tática tem que ser “O que posso (ou tenho que) fazer hoje a serviço da estratégia?”.

Joelson Ferreira e Erahsto Felício, em seu interessantíssimo Por terra e território: caminhos da revolução dos povos no Brasil, capturaram perfeitamente essa relação de subordinação. Ali, eles substituem estratégia por jornada, tática por caminhada e tarefas por passos. Mas o fundamental está preservado e ressaltado: a relação de subordinação. Os passos são determinados por sua relação com a caminhada, não por sua localização no tempo ou nas agendas mais imediatas. Da mesma forma, a caminhada é determinada por sua relação com a jornada. 

Para tornar as coisas um pouco mais claras, pensemos num exemplo concreto (embora simplificado) para sublinhar de que maneira um fundamento teórico importante pode debilitar nossa política quando mobilizado de maneira frouxa, como mera fórmula vazia. Pensemos naquilo que normalmente chamamos de tática eleitoral. Se abordamos essa questão com uma daquelas compreensões ruins de tática e estratégia, podemos ser facilmente levados a organizar nossa intervenção em eleições da democracia burguesa a partir das seguintes perguntas: “Que resultados queremos das eleições? O que precisamos fazer para consegui-los?”. Respostas comuns a perguntas como essa: ocupar espaço(s) na estrutura do Estado burguês, o que fatalmente nos obriga, mais cedo ou mais tarde, a ter bom desempenho eleitoral. Desnecessário lembrar que não é raro que um bom desempenho eleitoral exija concessões programáticas importantes. Concessões programáticas importantes envolvem, por sua vez, deslocar indefinidamente os objetivos estratégicos para um futuro indeterminado. 

Se, por outro lado, abordássemos a questão eleitoral a partir de uma perspectiva de subordinação da tática à estratégia, nossas perguntas e respostas poderiam ser outras. Nos perguntaríamos: “Nossa participação nas eleições burguesas pode servir aos nossos objetivos estratégicos? Se sim, como? Qual deve ser o caráter dessa participação? Uma participação que almeja bom resultado eleitoral nos leva por caminhos que nos distanciam ou que nos aproximam dos objetivos estratégicos?” E enfim, com uma clareza e segurança muito maior, poderíamos chegar a responder que o bom resultado eleitoral é dispensável. Ou, em outros termos, que deveríamos rejeitar qualquer bom desempenho eleitoral que venha às custas de concessões programáticas importantes; i.e. que venha às custas de transigirmos com nossos objetivos revolucionários, mesmo que de maneira supostamente provisória.

Passo agora, para encerrar essa primeira discussão sobre o par tática/estratégia, a abordar dois outros problemas. Um específico daquela versão relativa a “curto/longo prazo”. Outro específico da versão relativa a “possível/ainda impossível”

Quando circunscrevemos tática ao curto prazo e estratégia ao longo prazo, dissociando-os arbitrariamente, incorremos inadvertidamente no inusitado erro de conceber o longo prazo como uma espécie de resultado linear e necessário do curto prazo. Algo que poderia ser enunciado mais ou menos assim: se nos lançarmos com toda a nossa energia às lutas do presente, as condições de vitória no longo prazo serão mais ou menos automática e espontaneamente gestadas. Sendo assim, estaríamos, a rigor, construindo as vitórias do longo prazo ao simplesmente travar todas as lutas do presente que nos pareçam urgentes no presente

Há dois erros importantes aí. Em primeiro lugar, o presente sempre estará povoado de lutas, ataques e urgências. Se a construção sistemática, diligente e persistente da revolução é adiada porque há lutas urgentes a serem travadas, então é líquido e certo que essa construção será adiada para sempre. Em segundo lugar, dessas lutas urgentes do presente, haverá aquelas que nos desviam do caminho revolucionário, as que suspendem momentaneamente a caminhada nessa direção e as que trazem possibilidades de efetivamente acumular forças para caminhar nessa direção. Notem: se a tática está circunscrita ao curto prazo, dissociada da estratégia, todas as lutas urgentes devem ser travadas. Mas se a tática está conscientemente subordinada à estratégia, até mesmo as lutas urgentes apresentam naturezas distintas e cobram, portanto, reflexão e engajamento qualitativamente distintos.

Por fim, quando circunscrevemos a tática ao âmbito do imediatamente possível, colocamos, claro, pequenas vitórias ao nosso alcance. Como, nesse caso, a tática não está explícita e conscientemente subordinada à estratégia, sequer nos perguntamos se essas pequenas vitórias podem ou não ser acumuladas até o eventual desatar de um processo revolucionário; ou se essas pequenas vitórias, por sua própria natureza, são ou não frágeis e sujeitas a revogação; ou até mesmo se essas pequenas vitórias são ou não ilusórias. 

Para deixar mais claro o que quero dizer, pensemos num exemplo metafórico. Pensemos na construção de um grande arranha-céu. Pelo que vimos na discussão sobre tempo, sabemos que a revolução não começa no último andar. Ela pode até ser desatada (enquanto um processo de ruptura) no último andar, se quisermos elaborar a metáfora nesse sentido. Mas ela pressupõe a construção de todo o edifício!

Quando a tática está subordinada à estratégia, não precisamos nos afligir com a falta de glamour que os primeiros andares têm. Não precisamos nos afligir com a pouca “cara de vitória” ou de “coisa acabada” que os primeiros andares têm diante da monumental imagem do arranha-céu que figuramos na cabeça. Não precisamos nos afligir com a falta de uma conexão direta aparente entre os primeiros andares e essa imagem. Se temos uma reflexão rigorosa a respeito do processo como um todo, sabemos que erguer os andares mais baixos é um momento da construção do arranha-céu (i.e. da revolução) tanto quanto o resto.2

E aqui encontramos a diferença crucial. Não é aconselhável supor que em algum momento será possível reunir todas as condições necessárias para a construção do arranha-céu. Quando limitamos a tática ao âmbito das lutas que reúnem condições de sucesso imediato, ao invés de construir as fundações e os primeiros andares do edifício, construímos uma casinha de sapê. 

Nada contra as casinhas de sapê, evidentemente. Além disso, é perfeitamente possível que a casinha de sapê seja uma belíssima vitória, dadas as condições de construção imediatamente postas e ao alcance. Mas de uma casinha dessas jamais seremos capazes de parir um arranha-céu.

Referências

  1.  V. I. Lênin. O que fazer?. São Paulo: Boitempo editorial, 2020, p. 39.
  2. A metáfora tem uma limitação importante, pois dá um acento etapista ao raciocínio. Não é essa concepção problemática que quero trazer à tona com tal ilustração. Meu objetivo é propor um exemplo para discutirmos “condições de possibilidade”.

Eduardo Sá Barreto

Professor de Economia, pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro "O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas"

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