Na coluna de maio deste ano, abordei o sensível tema da transição energética e a sua importância para as questões relativas às crises ecológica e climática. Ali, procurei mostrar como nossos expressivos avanços em termos de nossa capacidade técnica de prescindir de combustíveis fósseis não têm se traduzido em uma real diminuição de nossa dependência desses combustíveis. Ao contrário, usamos mais petróleo, gás e carvão do que nunca. Esse aparente paradoxo, conforme também procurei apontar, não deve ser explicado apenas por falta de vontade política, ou falta de pressão popular, ou poder excessivo de lobbies associados ao setor fóssil. A incapacidade crônica de abrir mão de energia baseada em combustíveis fósseis é mais bem explicada por limites estruturais objetivos do metabolismo próprio do capital. Sua compulsão expansionista simplesmente não pode abrir mão de energia abundante, barata e com fornecimento estável, administrável e previsível. A conclusão dessa linha de raciocínio é que uma transição energética que nos livre dos combustíveis fósseis não é obtenível enquanto ainda estivermos na sociedade capitalista. Ela fica ao nosso alcance apenas em meio a um processo de ruptura com essa sociedade, i.e. em meio a um processo revolucionário.
No texto deste mês, retomo essa questão a partir desse ponto. A ideia de transição é muito presente no pensamento ecossocialista e indica o caráter necessariamente processual de superação da sociedade capitalista. Detalhando um pouco mais essa processualidade, poderíamos dizer o seguinte: vivemos em um mundo regido pelo capital e defendemos um outro mundo possível, em que o capital tenha sido superado; esse novo mundo, contudo, não é criado ex nihilo, mas parido das entranhas do mundo atual; logo, nossa práxis se defronta com (e se dirige a) os parâmetros, as estruturas, as necessidades e as urgências do mundo atual; daí se impõe a necessidade de um programa de transição — i.e. um programa de ações que, travando luta com o (e no) presente, aponta para um outro futuro possível.
Aqui começam os problemas. O primeiro, mais óbvio, é confundir um programa de transição com a própria transição. Se nos debruçarmos sobre um dos programas de transição mais conhecidos1, vemos que o conjunto de embates proposto ambiciona variados avanços do ponto de vista da classe trabalhadora, é verdade. Mas não tem a pretensão de operar, apenas com esses avanços, uma transição da sociedade vigente à sociedade futura. Nesse sentido, o programa de transição não opera uma transição, à espera de um período revolucionário. Muito menos opera uma transição que permitisse prescindir da revolução, pelo tempo que fosse. O programa de transição, se levado a cabo de maneira bem sucedida, cumpre a tarefa de tensionar o presente até seu ponto de ruptura. Em outras palavras, cumpre a tarefa de desatar a revolução, não de esperar por ela. É a revolução, por sua vez, que abre de fato as possibilidades de uma efetiva transição.
Neste momento, já podemos enunciar a conclusão que nos interessa: um programa de transição ecossocialista não pode alimentar ilusões de que problemas ecológicos nevrálgicos do capitalismo sejam resolvidos ainda no capitalismo, sem que seus parâmetros fundamentais de reprodução estejam sendo desafiados e destruídos na medula. Um programa ecossocialista de transição precisa delinear um caminho de construção de uma revolução à qual possa ser dada uma direção ecossocialista.
A maneira como situamos transição e revolução no tempo pode a princípio parecer um esforço de puro preciosismo teórico, mas nas questões que interessam ao pensamento ecossocialista, é decisiva uma adequada compreensão do que é possível antes de uma revolução e o que se torna possível apenas em meio a uma revolução.
Sequer precisamos excluir a priori a possibilidade de que, para uma série de transformações sociais importantes, ocorram transições no interior da ordem vigente. Mas o tema da crise ecológica cobra uma análise mais específica. Conforme apontei há pouco, no centro do debate a respeito da transição ecossocialista, figura a urgência de realizar uma transição energética capaz de descarbonizar nossas atividades produtivas. Isso traz consigo uma série de desafios monumentais, todos eles inconciliáveis com a reprodução da sociedade capitalista. Tentemos abordar esse ponto usando um método de demonstração por absurdo.
Dado que o mundo é hoje profundamente desigual, uma transição energética que imponha igualmente a abolição das energias fósseis a todas as nações certamente será injusta, deixando frações imensas da humanidade aprisionadas em uma situação de penúria material ainda mais deplorável do que é hoje. Mas os ecossocialistas defendem uma transição justa, o que implica a necessidade de que as nações mais poderosas do sistema façam os maiores sacrifícios. É plausível imaginar que as nações econômica e militarmente mais poderosas do planeta, onde estão todos os maiores e mais importantes centros gravitacionais do capital, tomariam a frente desse processo? Ou que assistiriam passivamente ele transcorrer, movido por vontade política e pressão popular reformistas?
Outro ponto relevante também diz respeito a algo que apontei naquela coluna de maio. Nossa capacidade atual de ofertar energia a partir das fontes ditas renováveis gira em torno do volume primário de energia demandado no início dos anos 50 do século XX. A rápida eliminação dos combustíveis fósseis exigiria, portanto, acomodar a demanda por energia a algo compatível com esse nível de oferta. Naturalmente, isso exigiria uma contração colossal não apenas do consumo residencial, mas especialmente do consumo de energia nas diversas atividades produtivas. Tal contração implicaria, evidentemente, uma retração também extraordinária da atividade produtiva/econômica. É plausível imaginar que a economia global capitalista tolere um encolhimento abrupto, imenso e permanente da atividade econômica?
Pergunta semelhante pode ser feita quanto ao consumo. De imediato, é fácil perceber a necessidade de eliminar o consumo de quinquilharias inúteis de vários tipos. É fácil perceber que até mesmo o consumo de alguns itens imprescindíveis eventualmente pode precisar ser racionado ou suspenso. É fácil perceber que os itens produzidos para consumo precisam durar cada vez mais, não cada vez menos. Diante dessas constatações triviais, novamente, pergunto: é plausível imaginar que um sistema de produção que despeja de maneira crescente, acelerada e incontrolável montanhas de produto no mercado pode tolerar algum tipo de moderação do consumo global?
Para assumirmos, nesses casos, a ideia de transição como um processo que antecede um processo revolucionário, precisaríamos supor que essas tarefas são todas realizáveis ainda nos marcos da sociedade capitalista. Assim, supõe-se, a transição seria uma meta que, uma vez alcançada, ao menos garantiria as condições ecológicas de vida no planeta para que, enfim, em algum momento do futuro, a revolução seja desatada. Admitir isso implica admitir, mesmo a contragosto, que a sociedade capitalista é capaz de resolver e superar seu caráter destrutivo e desestabilizador no âmbito energético/climático. Infelizmente, é grande o número de camaradas ecossocialistas brilhantes que caem, em maior ou menor grau, nessa armadilha.
Notem que algo aparentemente simples — conceber a transição como processo que antecede a revolução ou conceber a transição como um processo tornado possível pela revolução — tem implicações muito profundas na forma de pensar as questões táticas. Por um lado, se admitimos a possibilidade de as transições necessárias serem obtidas ainda no capitalismo, nosso programa de transição estará povoado de reformas. Reformas que podem até, ao fim e ao cabo, proporcionar tímidos avanços. Por tudo que vimos, contudo, estamos em condições de afirmar que eles seriam eclipsados pela magnitude dos avanços realmente necessários. Por outro lado, se admitimos que a transição só pode ser disputada em meio a um processo revolucionário, nosso programa de transição estará povoado de lutas que, embora formuladas em termos das urgências do presente, terão a pretensão consciente de esgarçar o tecido da sociedade capitalista até seu ponto de ruptura. Terão a pretensão de catalisar a revolução. E, posto que estamos falando de crise ecológica e climática com implicações severas para a vida no planeta, terão máxima urgência em fazê-lo.
** Imagino que as leitoras e os leitores com maior familiaridade com o tema tenham lembrado das discussões relativas ao programa mínimo e máximo. Abordarei esse tema na coluna do próximo mês.
Referências
- Trotsky, L. (2017). Programa de transição da IV internacional. São Carlos: Editora Sundermann