Nos debates em que participo, tenho dito frequentemente que, diante da crise ecológica, a revolução é nosso programa mínimo. À primeira vista, isso pode ser visto como uma provocação de mau gosto com os camaradas trotskistas. Ou, pior, como uma bravata vazia. Preciso insistir que não é uma coisa nem outra. Olhemos com mais cuidado o que está por trás da ideia de mínimo, porque no calor de nossos debates isso raramente recebe a devida atenção.
De saída, não é difícil perceber que o conceito de mínimo comporta muitas ideias diferentes, com implicações táticas diferentes, algumas inconciliáveis entre si. Ele pode referir-se ao mínimo possível de ser obtido, dadas as condições do presente. Ele pode, numa versão mais completa, referir-se ao mínimo possível no presente e que nos faz avançar em direção ao programa máximo. Numa versão piorada, ele pode referir-se ao mínimo possível sem romper com o sistema vigente; ou sem causar nenhum tipo de instabilidade social. Ele pode, ainda, referir-se ao mínimo necessário, dadas as urgências do presente ou algum horizonte temporal mais distendido. Ou ele pode, por fim, referir-se ao mínimo necessário, dado o programa máximo.
Note que em meio a essa variedade de mínimos, duas classes básicas aparecem: o mínimo possível e o mínimo necessário. Como nem sempre damos atenção suficiente a essas nuances, colapsamos sem perceber o possível no necessário e o necessário no possível. Em outras palavras, admitimos inadvertidamente que o necessário é possível, simplesmente por ser necessário. E que o possível é necessário, simplesmente por ser possível.
Naturalmente, pode existir um conjunto imenso de tarefas em que o imediatamente possível e o necessário coincidem ou tenham interseções substantivas. Esse, infelizmente, não é o caso das tarefas postas pelos desafios relacionados às crises ecológica e climática. Desde que comecei a escrever nesta coluna, em inúmeras ocasiões procurei destacar a magnitude do que precisamos fazer. A descarbonização do nosso modo de vida não é nenhuma tarefa banal. A moderação quantitativa e qualitativa do consumo total da humanidade não é tarefa banal. As transições que imponham mais sacrifícios às nações ricas do que às nações pobres não é tarefa banal. O acúmulo de força suficiente para impor as transições ao campo reacionário e conservador não é tarefa banal.
As dificuldades, inclusive, não se limitam à evidente magnitude colossal dessas tarefas. As dificuldades mais importantes devem-se à impossibilidade de elas serem cumpridas de maneira bem sucedida fora de um processo de ruptura com a ordem do capital. Reconheço que essa afirmação é muito mais contundente e cobra uma demonstração de fôlego muito maior do que cabe no espaço de uma coluna.1 Por ora, admitamos que ela está correta e vejamos como isso pode influenciar nossa discussão a respeito do mínimo. Duas coisas sobressaem.
Em primeiro lugar, se o mínimo necessário é impossível, então o possível estará certamente aquém do necessário. E se o necessário diz respeito ao mínimo para garantir a sobrevivência de nossa espécie, então ficar aquém do necessário é, muito literalmente, mortal. E dada a velocidade dos processos de desestabilização climática e ecológica em curso, as consequências de ficarmos aquém do necessário chegam a galope. Dirigir toda nossa energia de luta ao que é possível, simplesmente por ser possível agora, não é realismo, não é pragmatismo, não é se preocupar com os carecimentos mais urgentes da classe trabalhadora. Embora, superficialmente, a aparência seja essa, tal dedicação acrítica ao possível agora corresponde a construir uma casinha de sapê ao invés do arranha-céu (tal como vimos na metáfora proposta no primeiro texto desta série). Corresponde a procrastinação histórica!
Em segundo lugar, não é nem um pouco trivial afirmar que um conjunto tão fundamental de tarefas é impossível. Isso costuma provocar uma reação muito forte (e legítima) contra aquilo que tem toda aparência de ser uma afirmação fatalista, com todas as suas implicações deletérias. Assim, é preciso enfatizar incansavelmente que essa impossibilidade está — ao menos por enquanto — circunscrita à sociedade capitalista. Ou seja, o que está sendo dito é que tudo aquilo que precisamos fazer para resguardar um planeta habitável, até mesmo o mínimo, é impossível no capitalismo.
É o capital que não pode abrir mão de energia fóssil, não a humanidade. É o capital que não pode abrir mão de crescer, não a humanidade. É o capital que não pode abrir mão de inúmeras atividades produtivas destrutivas, não a humanidade. É o capital que precisa mobilizar todas as nossas proezas tecnológicas para garantir crescimento a qualquer custo, não a humanidade. É o capital que precisa do espaço de florestas inteiras para ocupá-lo com monoculturas intensivas, não a humanidade. É o capital que precisa garantir que o consumo seja cada vez maior, mais variado e mais veloz, não a humanidade.
A humanidade, ao contrário, precisa realizar a transição energética, contrair a demanda material sobre o planeta, eliminar setores destrutivos, mobilizar a tecnologia e o avanço tecnológico para moderar nosso impacto ecológico, garantir a plena existência e reprodução de biomas e ecossistemas, moderar o consumo global. Assim posto, fica patentemente claro o quanto aquilo que precisamos fazer é inconciliável com as necessidades mais básicas do capital. Essa incapacidade da sociedade capitalista de acomodar em qualquer medida o nosso programa mínimo (entendido, aqui, como o mínimo necessário) nos obriga a pensar um mínimo antes do mínimo.
Algo que poderia ser formulado nos seguintes termos. O mínimo necessário envolve realizar uma série de transições (energética, agrícola, industrial, urbana etc.), e a que parece ser mais urgente e estar mais ao alcance é a energética. Mesmo ela, contudo, é irrealizável a partir de um conjunto de reformas. É, portanto, impossível enquanto ainda vivermos sob o signo do capital. Se ela é realmente necessária (se é, de fato, uma questão de vida ou morte), é preciso torná-la possível. Como é a dinâmica reprodutiva do capital que a torna impossível, apenas a superação do capital a traz para dentro do rol de possibilidades. Em outras palavras, apenas em meio a um processo revolucionário convertemos essas impossibilidades em possibilidades. Se esse raciocínio estiver correto, estamos enfim em condições de afirmar — sem hiperbolismos, sem impaciência afoita e irrefletida diante da conjuntura x, y ou z — que a revolução é nosso programa mínimo.
Do ponto de vista tático, há ramificações cruciais dessa conclusão. Ao percebermos claramente os limites e insuficiências da política institucional no interior do Estado burguês, não apostamos todas as (nem mesmo a maioria das) nossas fichas nessa via. Nessa via, estabelecemos trincheiras, sabendo que ali, na melhor das hipóteses, criamos algum atrito para o apetite destrutivo do capital.
Ao compreendermos que apenas a revolução destratava as possibilidades de ações realmente efetivas de enfrentamento das crises climática e ecológica, nos voltamos a construir a revolução, explorando sempre ao máximo as condições postas no presente (mesmo que escassas). Por fim, entendendo que alguns impactos perturbadores já são inevitáveis, nos preparamos para eles de maneira autônoma, por fora do Estado.
Em síntese, lutar pelo mundo que queremos, mas sabendo que teremos que encontrar meios de lidar com um planeta de natureza mais hostil, fruto dos séculos de destruição global impelidos pela lógica cega do capital. E precisamos, sim, modular nossa paciência a partir das urgências reais com as quais nos deparamos, não a partir de um ideal abstrato de paciência. E temos que fazê-lo sem um mínimo de apego pelas estruturas da sociedade burguesa em que vivemos.
Referências
- Em alguns de meus trabalhos acadêmicos, tenho buscado propor esse tipo de demonstração. Indico, por exemplo: https://www.academia.edu/45582380/Mudanças_climáticas_e_a_tarefa_dos_ecossocialistas_pelo_abandono_do_voluntarismo_geológico e https://www.academia.edu/40899023/_LIVRO_COMPLETO_O_capital_na_estufa_para_a_cr%C3%ADtica_da_economia_das_mudanças_climáticas