Da dependência à reversão neocolonial 

O desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo constituiu uma economia mundial que articula formações sociais com grandes disparidades no grau de desenvolvimento das forças produtivas e na capacidade de consumo da sociedade. A integração de Estados nacionais com fortes assimetrias no poder de impulsionar a reprodução ampliada do capital num mesmo padrão de mercantilização das necessidades sociais e de concorrência intercapitalista resultou na cristalização de uma economia mundial polarizada entre regiões avançadas – que ditam o sentido, o ritmo e a intensidade das transformações – e regiões atrasadas – que absorvem com retardo e de maneira restrita as mudanças produtivas, mercantis e culturais irradiadas a partir dos centros dominantes.  

A estrutura hierárquica do sistema capitalista mundial cria obstáculos intransponíveis ao desenvolvimento nacional das economias que se encontram em posição subalterna na divisão internacional do trabalho. À potência ampliada dos Estados imperialistas corresponde necessariamente a potência reduzida dos demais Estados que fazem parte do elo fraco da economia mundial. Daí as gritantes discrepâncias entre as formas ideais de funcionamento do capitalismo e seu modo real de existência na periferia. É o caso das sociedades de origem colonial, como a brasileira, que ficaram presas às teias do capitalismo dependente. 

O controle dos elos estratégicos do sistema produtivo pelo capital internacional e a reprodução de uma superpopulação relativa permanentemente marginalizada do mercado de trabalho – características estruturais do capitalismo dependente – geram um vazio socioeconômico que impede a consolidação de formações econômicas com existência autônoma e força própria. Na impossibilidade de internalizar todas as fases do circuito de valorização do capital, o dinamismo do capitalismo dependente torna-se complexamente determinado pelas tendências que emanam do capitalismo central e pelos processos adaptativos internos que definem a forma de participação na economia mundial. O raio de liberdade da sociedade dependente para arrojar o desenvolvimento econômico fica, assim, sobredeterminado pelas tendências da divisão internacional do trabalho. 

Entre 1929 e 1980, uma configuração histórica muito particular abriu espaço para que certas economias da periferia da economia mundial promovessem processos de industrialização por substituição de importações. 

O colapso espetacular da ordem liberal na crise de 1929 criou condições objetivas mais favoráveis para que alguns países do elo fraco do capitalismo adquirissem maior comando sobre os centros internos de decisão. A instauração de uma onda protecionista no comércio internacional isolou os mercados periféricos da concorrência de produtos importados. O fim do Padrão Ouro subordinado à libra esterlina desarticulou os mecanismos draconianos de ajuste do balanço de pagamentos e controle da moeda das economias periféricas. A reorganização da economia internacional no Pós-guerra, sob a batuta dos organismos internacionais criados em Bretton Woods, inicialmente poupou a periferia latino-americana da disciplina implacável do comércio internacional e dos efeitos desestabilizadores da mobilidade internacional de capitais. Tal situação perdurou até o início dos anos 1980, quando, sob o vendaval da contrarrevolução neoliberal patrocinada pelos Estados Unidos, a região foi finalmente enquadrada na globalização dos negócios. 

A progressiva difusão das estruturas da Segunda Revolução Industrial permitiu que economias atrasadas com relativa expansão das forças produtivas, mercados internos mais expressivos, base empresarial mais robusta e alguma capacidade de planejamento econômico tivessem acesso à tecnologia necessária para a internalização dos setores estratégicos do sistema industrial. A constituição de um regime central de acumulação composto de empresas verticalmente integradas, que se articulavam em torno da indústria de transformação, voltada para o mercado interno, foi acelerada pela entrada de capitais internacionais no bojo do processo de internacionalização dos mercados internos que ganhou ímpeto a partir de meados da década de 1950. Ao contornar os bloqueios derivados da estreiteza das bases técnicas e financeiras do capital nativo, o deslocamento de filiais de multinacionais para a periferia acelerou a industrialização, dando fôlego extra à assimilação das estruturas da Segunda Revolução Industrial. 

Dentre os países engolfados nas teias do capitalismo dependente, o Brasil foi o que levou a industrialização por substituição de importações mais longe. Um contexto histórico muito específico, externo e interno, permitiu que a economia brasileira registrasse cinco décadas de acelerada expansão das forças produtivas. 

No início da década de 1930, o crescimento e a diversificação do parque industrial, sobretudo do setor de bens de consumo não duráveis, avançaram de maneira relativamente espontânea, impulsionados pela base empresarial local. Com a instauração do Estado Novo, em 1937, a industrialização tornou-se prioridade da política econômica. A criação de empresas estatais, como a Companhia Siderúrgica Nacional, a Vale do Rio Doce e a Petrobras, deu forte impulso à internalização da indústria de insumos básicos e energia. A partir da segunda metade da década de 1950, com o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, a entrada maciça de investimentos diretos viabilizou uma rápida redução no coeficiente de importação da indústria de bens de consumo duráveis. 

Após a ditadura militar de 1964, a política econômica ficou integralmente subordinada aos imperativos do capital internacional. A modernização dos padrões de consumo baseada no mimetismo dos estilos de vida das economias centrais foi levada ao paroxismo, sepultando definitivamente qualquer ilusão em relação à possibilidade de conciliar industrialização, soberania nacional e democracia. Em ritmo acelerado de expansão dos investimentos, entre 1968-1973 a capacidade produtiva da indústria mais que dobrou. A partir de 1974, com o II Plano Nacional de Desenvolvimento, a ditadura decidiu completar a qualquer custo a constituição de um departamento de bens de produção. No início dos anos 1980, à exceção dos setores tecnologicamente mais complexos de bens de capital, a indústria de transformação tinha absorvido praticamente todas as estruturas fundamentais da Segunda Revolução Industrial. 

A mimetização do padrão de industrialização das economias centrais alimentou a ilusão de que o Brasil estaria fadado a um destino manifesto. Mesmo após a crise do “milagre econômico”, quando as fragilidades do modelo brasileiro já eram evidentes, os próceres da equipe econômica da ditadura militar continuavam convictos de que o país caminhava firmemente em direção ao primeiro mundo, consolidando-se como uma potência emergente. Com raras exceções, entre as quais se destacam Caio Prado Júnior e Celso Furtado, os críticos do regime militar também avaliaram equivocadamente a solidez das estruturas industriais recém-instaladas e sua faculdade de enfrentar os desafios do tempo. 

A perspectiva do Capitalismo Tardio proclamou que, com a constituição do departamento de bens de produção, o capitalismo brasileiro teria internalizado as bases materiais para a reprodução ampliada do capital, tornando-se uma economia autodeterminada, cujo dinamismo levaria a um “catching-up” com as economias centrais. O prisma da Teoria Marxista da Dependência vislumbrou a emergência do Brasil como potência subimperialista, cuja burguesia – ainda que subordinada aos interesses do grande capital norte-americano – estaria condenada a conquistar mercados externos regionais para compensar a estreiteza do mercado interno. Em meados dos anos 1980, quando a crise da industrialização brasileira já se encontrava em estado avançado, economistas que tiveram papel de destaque na oposição à ditadura militar chegaram a vaticinar que, com a maturação dos investimentos do II PND, a economia brasileira se encontraria na iminência de uma nova marcha forçada para o crescimento.  

A distância entre o que se imaginava e o que de fato acontecia não poderia ser maior. O esgotamento da Segunda Revolução Industrial, que se manifestou plenamente na crise que abalou a economia mundial no início dos anos 1970, corroeu as bases da industrialização por substituição de importações. A necessidade de contrabalançar a tendência decrescente da taxa de lucro acirrou a concorrência intercapitalista pelo controle do mercado mundial. A reorganização do capitalismo, sob a liderança das empresas transnacionais e a rígida disciplina de políticas neoliberais propugnadas pelos Estados Unidos, submeteu todas as regiões do planeta à globalização dos negócios. O receituário imposto é conhecido: plena liberdade de movimento do capital internacional, liberalização indiscriminada do comércio exterior, privatização dos serviços públicos, desregulamentação das relações trabalhistas, independência do Banco Central e regime fiscal baseado no princípio do Estado mínimo. 

As profundas mudanças que se seguiram comprimiram dramaticamente a margem de manobra das economias periféricas para proteger seu parque produtivo da concorrência internacional e impulsionar o desenvolvimento nacional, sobretudo a partir de 1990, quando a introdução de uma onda de inovações diminuiu dramaticamente os custos com transporte, comunicação e informação, provocando um salto de qualidade na integração das forças produtivas em escala mundial. Sob o impulso da revolução algorítmica, a formação de complexas cadeias de valor redefiniu profundamente o papel do espaço econômico nacional como base de operação das fábricas das grandes corporações que controlam o mercado mundial. A corrida do capital pela busca de força de trabalho barata potencializou a capacidade de exploração do trabalho. A estrutura centro-periferia deixou de segmentar-se rigidamente entre economias produtoras de manufaturados e economias primário-exportadoras, como ocorria no final do século XIX, para extrapolar a especialização para o interior da própria indústria e dos serviços. Quanto mais padronizado o processo de trabalho e quanto menor o envolvimento de conhecimentos estratégicos para a concorrência intercapitalista, maior a possibilidade de deslocamentos de tarefas para empresas subsidiárias da periferia. 

Ainda que a decisão de fragmentar a cadeia de produção e redistribuí-la geograficamente derive de um amplo leque de fatores, a reorganização do processo produtivo responde fundamentalmente à arbitragem salarial que procura comprimir os custos relativos da força de trabalho. O segredo é combinar a tecnologia controlada pelo capital das economias adiantadas com a força de trabalho barata das economias atrasadas. O trabalho qualificado fica concentrado nas regiões desenvolvidas e o não qualificado, nas atrasadas. O desemprego estrutural generaliza-se por todo o planeta, funcionando como pressão permanente para o rebaixamento do nível tradicional de vida da classe trabalhadora. A segmentação do mercado de trabalho em espaços econômicos nacionais heterogêneos é condição necessária para que o capital possa colocar trabalhadores de diferentes nacionalidades em concorrência direta entre si, potencializando sua capacidade de rebaixar salários e retirar direitos trabalhistas em todos os rincões do mundo. 

Embora a integração profunda da economia mundial tenha aberto espaço para a expansão de indústrias subsidiárias que funcionam como verdadeiros enclaves produtivos nas economias atrasadas, como ocorreu de modo conspícuo no leste asiático, o Cone Sul ficou marginalizado do processo de formação de cadeias produtivas que impulsiona o novo padrão de desenvolvimento capitalista. A essência da Nova Dependência, que se esboça ao longo dos anos 1980, sob o trauma da crise da dívida externa, e que se consolida na década de 1990, sob as trágicas políticas do Consenso de Washington, quando a América Latina é reintegrada no sistema financeiro internacional, consiste em seu enquadramento incondicional nas exigências da ordem global. Sob o arbítrio implacável dos programas de ajuste propugnados pelos organismos internacionais e a disciplina draconiana da concorrência global, os países da região foram compelidos a abandonar definitivamente a substituição de importações e a promover a especialização regressiva na divisão internacional do trabalho. 

O caso do Brasil é emblemático. A industrialização que avançava pela linha de menor resistência – amparada no Estado, financiada pela combinação perversa de concentração de renda com endividamento externo e liderada pelo capital internacional – revelou-se extremamente vulnerável à concorrência internacional. A indústria instalada apresentava fortes heterogeneidades e operava com baixos índices de produtividade, elevados níveis de proteção e ínfimo grau de competitividade. A liderança do capital internacional nos setores estratégicos da industrialização impediu a formação de um sistema nacional de inovação. A desnacionalização da economia fragilizou as bases técnicas e financeiras da burguesia brasileira. A inexistência de mecanismos de transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para salário real acentuou a precariedade da conjuntura mercantil, atrofiando a capacidade de consumo da sociedade. Por fim, a integração do sistema financeiro nacional ao internacional acabou comprometendo irremediavelmente a integridade dos centros internos de decisão. 

As crises cambial, fiscal e monetária que mergulharam o país na hiperinflação marcaram os estertores da industrialização e o início da penosa transição para o padrão de acumulação liberal-periférico. Impotente para defender o mercado interno da concorrência de importados, o vasto parque industrial brasileiro ficou condenado a virar sucata. Sem condições objetivas e subjetivas de enfrentar um destino que colocava no horizonte a transformação do Brasil numa mega feitoria moderna, o país foi submetido a um processo devastador de reversão neocolonial, que compromete sua própria sobrevivência como sociedade nacional. Dentro da ordem global organizada em torno da economia dos Estados Unidos, o Brasil passou a cumprir, com a absoluta cumplicidade de sua burguesia vassala, quatro funções básicas:

  1. especializar-se no fornecimento de produtos primários para o mercado mundial;
  2. franquear seu espaço econômico à operação do capital internacional, à livre exploração do trabalho, à irrestrita mercantilização das necessidades sociais e à pilhagem das riquezas naturais;
  3. coibir a formação de correntes migratórias que possam desestabilizar socialmente os países centrais; e
  4. aliviar a crise ambiental produzida pela expansão desenfreada do capitalismo, cumprindo o triste papel de pulmão e lixo da civilização ocidental. 

Plínio de Arruda Sampaio Junior

Professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor do livro Crônica de uma Crise Anunciada: crítica à economia política de Lula e Dilma.

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