“As revoluções são impossíveis até se tornarem inevitáveis.” – Trotsky
Precedendo o colossal estrago provocado pelo novo coronavírus, em meados de 2007, eclodiu a crise das hipotecas imobiliárias na Meca do capitalismo globalizado. Era a ponta de um iceberg. Desde então, de espanto em espanto, o pensamento único foi se desmilinguindo.
A financeirização da economia capitalista produziu uma bolha de 600 trilhões de dólares em ativos financeiros para um produto bruto mundial de 60 trilhões de dólares. Essa foi a pior crise do capitalismo desde 1929. Ela produziu reviravoltas inesperadas: a intervenção do Estado na economia foi reclamada por economistas que até à véspera defendiam o receituário neoliberal sem margem para controvérsias. E quem diria que o governo Bush promoveria a estatização de bancos?
Para entender o processo que conduziu a essa crise geral, vale a pena compreender conceitos como globalização, pós-moderno e neoliberalismo, que dão conta desse modelo falido.
Globalização
A globalização é um processo deslanchado a partir da segunda metade do século XX, que conduz à crescente integração das economias e das sociedades dos vários países, especialmente no que toca à produção de mercadorias e serviços, aos mercados financeiros e à difusão de informações. Mas a globalização é, sobretudo, a integração cada vez maior das empresas transnacionais, num contexto mundial de livre-comércio e rarefação de regulação estatal, no qual grandes corporações podem operar simultaneamente em muitos países diferentes e explorar em proveito próprio, com base nas vantagens comparativas, as variações nas condições locais. Isso se dá através da ação neocolonialista dessas empresas transnacionais e da pressão política e econômica exercida por organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial de Comércio no sentido da renúncia às barreiras protecionistas. O cerne desse processo é econômico e responde aos interesses dos Estados Unidos da América.
As novas tecnologias de telecomunicação e de processamento de dados contribuíram enormemente para a globalização, fornecendo sua base técnica. Mas essa integração do mercado mundial só foi possível com a implosão do bloco soviético: por um lado, isso permitiu que os Estados Unidos assumissem o papel de única superpotência no mundo; e, por outro, o capitalismo, como único sistema econômico mundial (dos regimes “comunistas”, de significativo no panorama internacional, só sobrou a China, e assim mesmo em avançado processo de integração à economia capitalista), pôde se afirmar sem contestação.
Neoliberalismo
À política de desmonte do Estado (como agência econômica, de prestação de serviços públicos e de proteção social), de desregulamentação do mercado e retirada das barreiras protecionistas, de precarização das relações trabalhistas e do emprego deu-se o nome de neoliberalismo. Trata-se da velha ideologia liberal, que correspondia à época do capitalismo de livre concorrência, só que ressurgida em condições históricas de crescente monopolização da economia, dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural, apontando não para o pluralismo, mas para a homogeneização, a massificação, a uniformização do consumo de descartáveis, a tendência ao pensamento único. O discurso liberal é o mesmo, mas o acontecimento discursivo é outro.
Antes de se generalizar como diretriz de política econômica dos países capitalistas, o neoliberalismo foi implantado primeiro no Chile de Pinochet (1973-1990) e, em seguida, na Inglaterra de Margaret Thatcher (1979-1990).
No Brasil, o neoliberalismo surge como política de governo sob a presidência de Collor (1990-1992) e atinge o seu clímax no auge das privatizações durante os governos FHC (1995-2002), tendo sequência nos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), e ganhando um novo impulso nos governos Temer (2016-2018) e Bolsonaro.
As consequências sociais dessa política são graves: a combinação de desemprego, exclusão social e apelo ao consumo ─ numa sociedade atomizada pelo individualismo e pela competitividade, na qual o marketing dita a moda e as pessoas valem mais pelo que têm do que pelo que são ─ delineia um quadro de degradação da convivência social que fomenta a desesperança, a violência e a barbárie.
Carlos Nelson Coutinho conceitua a época neoliberal como um período de contrarreformas.
Pós-moderno
A globalização é o pano de fundo que fornece o enquadramento sócio-histórico do fenômeno cultural e artístico da pós-modernidade.
A modernidade está geralmente associada à Segunda Revolução Industrial; a pós-modernidade, à Terceira Revolução Industrial.
A Primeira Revolução Industrial, como se sabe, foi o conjunto de transformações socioeconômicas iniciadas por volta de 1760, na Inglaterra (e mais tarde nos outros países), e caracterizadas especialmente pela substituição da mão-de-obra manual (manufatura) pela tecnologia (tear mecânico e máquina a vapor, a princípio), seguida da formação de grandes conglomerados industriais.
A Segunda Revolução Industrial, iniciada por volta de 1870 com a industrialização de França, Alemanha, Itália, EUA e Japão, caracterizou-se especialmente pelo desenvolvimento de novas fontes de energia (eletricidade e petróleo), pela substituição do ferro pelo aço e pelo surgimento de novas máquinas, ferramentas e produtos químicos (como o plástico). Entre 1909 – quando Henry Ford criou a linha de montagem, inaugurando a produção em série – e o final do século XX, quase todas as indústrias se mecanizaram e a automação se estendeu a praticamente todos os setores fabris.
A Terceira Revolução Industrial se desencadeia a partir da segunda metade do século XX, com o surgimento de complexos industriais e empresas multinacionais, o desenvolvimento das indústrias química e eletrônica, os avanços da automação, da informática e da engenharia genética, e respectiva incorporação ao processo produtivo, que passou a depender cada vez mais de alta tecnologia e de mão-de-obra especializada.
Moderno é o tempo que se abre com a primeira grande guerra (1914-1918). No decorrer da conflagração mundial, há a vitória da revolução bolchevique, em 1917, na Rússia. Esse período histórico se encerra com a debacle do bloco soviético, em 1991. No Brasil, isso foi percebido como uma dupla queda: a da Ditadura Militar (1964-1985) e a do Muro de Berlim (1961-1991), o que enseja a emergência da Nova República.
“Pós-modernidade” – ensina Terry Eagleton – “significa o fim da modernidade, no sentido daquelas grandes narrativas de razão, verdade, ciência, progresso e emancipação universal que, como se acredita, caracterizam o pensamento moderno a partir do Iluminismo.” Na perspectiva pós-moderna, essas ilusões, “ao fazerem flutuar ideais impossíveis diante de nossos olhos, nos afastam de todas as mudanças políticas modestas, porém eficazes, que temos reais condições de criar”. E mais: para o pós-moderno, “a verdade é o produto da interpretação, os fatos são construções do discurso, a objetividade é apenas aquilo que qualquer interpretação questionável das coisas tenha conseguido impor, e o sujeito humano é uma ficção, tanto quanto a realidade que contempla – uma entidade difusa e autodividida que carece de qualquer natureza ou essência fixa”.
O pós-modernismo é a cultura da era pós-moderna. “A obra de arte pós-moderna típica é arbitrária, eclética, híbrida, descentralizada, fluida e descontínua, lembra o pastiche.” Isso é especificado por Terry Eagleton nos seguintes termos:
“Fiel aos princípios da pós-modernidade, rejeita a profundida metafísica em favor de uma espécie de superficialidade forjada, jocosidade e falta de afeto; é uma arte de prazeres, superfícies e intensidades fugazes. Por desconfiar de todas as verdades e certezas estabelecidas, sua forma é irônica, e sua epistemologia relativista e cética. Por rejeitar toda tentativa de refletir uma realidade estável para além de si mesma, existe, de modo autoconsciente, no nível da forma ou da linguagem. Por saber que suas próprias ficções são infundadas e gratuitas, pode atingir uma espécie de autenticidade negativa apenas ao alardear sua irônica consciência desse fato, pervertidamente chamando atenção para seu próprio status de artifício construído. Impaciente com toda identidade isolada, e desconfiada da noção de origens absolutas, chama atenção para sua própria natureza ‘intertextual’, sua reciclagem paródica de outras obras que, por sua vez, nada mais são que o resultado de tal reciclagem.”
Todavia, o mais característico do pós-modernismo, para Terry Eagleton, é que “a cultura pós-moderna volta sua aversão por limites e categorias fixos para a tradicional distinção entre ‘grande arte’ e ‘arte popular’, desconstruindo o limite entre elas ao produzir artefatos autoconscientemente populistas ou comuns, ou que se oferecem como mercadorias para o consumo enquanto fonte de prazer”.
Terry Eagleton coloca questões interessantes. Por exemplo: “A pós-modernidade é a filosofia apropriada ao nosso tempo, ou será a visão de mundo de um exausto grupo de ex-intelectuais ocidentais revolucionários que, com típica arrogância intelectual, projetaram-na sobre a história contemporânea como um todo?”
Ou, visto por outro ângulo: “Como acredita Frederic Jameson, estaremos diante da cultura do capital tardio – a penetração final do bem de consumo na cultura –, ou será que se trata, como insistem seus expoentes mais radicais, de um golpe subversivo em todas as elites, hierarquias, grandes narrativas e verdades imutáveis.”
Uma cultura que semeia incertezas? Qual a função das incertezas semeadas? Desestabilizar o pensamento único ou diluir toda crítica? Seja como for, embora denuncie “as ilusões do pós-modernismo”, Terry Eagleton reconhece que “a discussão certamente terá continuidade, sobretudo porque o pós-modernismo é a mais vigorosa de todas as teorias, com raízes num conjunto concreto de práticas e instituições sociais”. Com efeito, não se pode ignorar “o consumismo, os meios de comunicação de massa, a política estetizada, a diferença sexual”.
Haroldo de Campos propôs o conceito de pós-utópico para dar conta deste curioso e desconcertante clima de ceticismo e cinismo. Trata-se da suspensão do princípio esperança (conceito de Ernst Bloch), que sustentara o imaginário modernista e alimentara seu caráter eminentemente crítico.
Mudança de cenário
Esse cenário evoluiu para uma situação internacional atravessada por tensões provenientes da concorrência interimperialista. Há que se destacar aí o deslocamento da dinâmica do capitalismo do Ocidente para o Oriente, com a emergência da China como polo alternativo à hegemonia estadunidense em decadência, mas que resiste a decair.Nesse novo quadro, as trombetas da crise do capitalismo soaram na implosão financeira de 2008/2009 e na atual catástrofe civilizatória do coronavírus. O deus mercado ficou nu, deixando expostas as taras da globalização, do neoliberalismo e da pós-modernidade. Nesse novo contexto histórico, degradado, ousar um novo tempo utópico torna-se necessário para reafirmar o princípio esperança face à distopia de um sistema social esgotado. Ousar lutar, ousar vencer!