De Heráclito e Parmênides a Marx: as vicissitudes da dialética

Há muito tempo, na Grécia antiga, dois pensadores estabeleceram uma controvérsia que atravessaria a história. Heráclito de Efeso (540-480 a. C.) postulou um método de interpretação da realidade em que esta é considerada como um processo em permanente transformação. Para Heráclito, uma pessoa não toma banho duas vezes no mesmo rio, pois tudo está sempre mudando. No segundo banho, a pessoa já não seria a mesma e o rio também já seria outro. Contrapondo-se a Heráclito, seu contemporâneo Parmênides (515-460 a. C) defendia um ponto de vista diferente, segundo o qual a mudança seria um fenômeno superficial, pois o ser seria imutável em sua essência. O método de Heráclito foi chamado de dialética, ao passo que o de Parmênides foi nomeado metafísica.

Em todas as épocas, as classes dominantes sempre valorizaram a estabilidade: dos valores, dos conceitos, das instituições. E a estabilidade em geral era desafiada pelo modo de pensar dialético. Por isso, como o pensamento dominante em qualquer época é sempre o pensamento das classes dominantes, o pensamento metafísico prevaleceu sobre o dialético no curso da história.

O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) foi o maior pensador metafísico da modernidade. Para Kant, a consciência humana não se limitaria a registrar a realidade de forma neutra, mas tomaria partido nas disputas do mundo real. Desse modo, as interpretações não seriam desinteressadas. Então, para ele, a questão central da Filosofia seria saber “o que é o conhecimento”. Ao concentrar sua atenção na “razão pura” (anterior à experiência), constatou que ela era atravessada por contradições, as “antinomias”, que nenhuma lógica poderia superar.  Essas “antinomias” contaminavam todo o pensamento humano.

Em seguida, um outro filósofo alemão, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), seria um pensador dialético. Ele compartilharia com Kant a opinião de que o sujeito humano é ativo e, com sua atividade, interfere na realidade. Todavia, em oposição a Kant, ele sustentava a tese de que a questão central da Filosofia não era “o conhecer”, mas “o ser”, pois para “conhecer” seria preciso “ser”. Desse modo, Hegel postula uma “ontologia”: não uma teoria do conhecimento, mas uma teoria do ser.

Observando o processo contraditório da Revolução Francesa em contraste com a atrasada realidade alemã, Hegel concluiu que o homem é um ser ativo que transforma a realidade, mas que essa transformação está sujeita às limitações impostas pela resistência que as condições objetivas opõem à subjetividade humana, limitando-lhe o alcance da ação.

O filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971), em seu ensaio O Jovem Hegel, escreveu que Hegel dedicou-se à leitura do economista escocês Adam Smith (1723-1790), autor de A Riqueza das Nações (1776), e que o fundamento do hegelianismo era uma reflexão aprofundada sobre a Revolução Francesa, mas também uma reflexão radical sobre a Revolução Industrial inglesa. 

No espaço intelectual desbravado por Hegel, um outro filósofo alemão, Karl Marx (1818-1883), destacou-se. Ele subverteu a dialética idealista de Hegel, colocando-a de ponta-cabeça, e projetou a dialética materialista. Desse modo, Marx levou o método dialético a um novo patamar.

A superação dialética

Hegel empregou o verbo alemão aufheben, que significa suspender e tem três conotações: na primeira, suspender é negar, anular, cancelar; na segunda, é erguer, elevar, colocar para o alto (com o intuito de preservar); na terceira, é promover a um plano superior (uma mudança de qualidade). Para Hegel, a superação dialética é simultaneamente a negação de uma determinada realidade, a preservação de aspectos essenciais da realidade que está sendo negada e a elevação dessa realidade a um plano superior (uma mudança de qualidade).

Boa parte da obscuridade do pensamento de Hegel deve-se ao fato de ele ser idealista: subordinava os movimentos da realidade concreta a um princípio abstrato, a Ideia Absoluta. Mas se exemplificarmos com o que ocorre no trabalho, fica mais claro o que é a superação dialética.

O trabalho

Hegel percebeu que o trabalho está na base do desenvolvimento humano.  É através do trabalho que o homem produz a si mesmo. E é através do trabalho que as formas complexas da atividade criadora do sujeito humano podem ser compreendidas.

Foi com o trabalho que o homem pode contrapor-se como sujeito ao mundo dos objetos naturais. Sem o trabalho, não existiria a relação sujeito-objeto.

Os animais agem por instinto, em função de necessidades imediatas. O ser humano, por seu lado, é capaz de antecipar idealmente os resultados de suas ações com vistas aos objetivos a que se propõe. Ele planeja o que vai fazer. Sua ação se reveste de uma intenção, persegue um objetivo consciente.

O filósofo marxista brasileiro Leandro Konder (1936-2014) escreveu: “No trabalho se acha tanto a resistência do objeto (que nunca pode ser ignorada) como o poder do sujeito, a capacidade que o sujeito tem de encaminhar, com habilidade e persistência, uma superação dessa resistência.

Sobre a concepção do trabalho em Hegel, Marx observou: “O único trabalho que Hegel conhece e reconhece é o trabalho abstrato do espírito”. Desse modo, Hegel fixou sua atenção no aspecto criativo do trabalho, subestimando seu aspecto negativo como trabalho alienado na sociedade de classes.

A alienação

Para Marx, o trabalho é a atividade pela qual o homem humaniza a natureza, controlando-a (até certo ponto). Mas, como foi que o trabalho, de condição natural para a realização do homem, de instrumento de sua libertação, tornou-se seu contrário, nas palavras de Marx “uma atividade que é sofrimento, uma força que é impotência, uma procriação que é castração”?

Na base da alienação está a divisão social do trabalho, que surge da propriedade privada sobre os meios de produção, a qual, ao dividir o gênero humano entre proprietários e não proprietários (os desprovidos de propriedade), provoca o antagonismo entre exploradores e explorados com a divisão da sociedade em classes.  Surge aí a ideologia, que, na opinião do filósofo francês de origem judaico-romena Lucien Goldmann (1913-1970), é a “perspectiva parcial inevitável” das classes sociais.

Marx escreveu: “Divisão do trabalho e propriedade privada são termos idênticos: um diz em relação à exploração do trabalho escravo a mesma coisa que o outro diz em relação ao produto da exploração do trabalho escravo”.

Nessas condições, a alienação é fruto do “estranhamento” entre o trabalhador e seu trabalho, na medida em que o produto de seu trabalho, desde o processo de sua produção, já pertence ao capitalista e não ao trabalhador. Por isso, é preciso realizar um processo de “desalienação” do trabalho, através da luta de classes. Esse processo tem por objetivo a revolução socialista, na qual “os expropriadores (os capitalistas) são expropriados”.

Antes de Marx, vários autores identificaram a existência das classes e da luta de classes. James Madison, ex-presidente dos Estados Unidos, escreveu em 1787: “Proprietários e não proprietários sempre formaram interesses diversos dentro da sociedade”. Marx, em parceria com Engels (1820-1895), escreveu no Manifesto Comunista de 1848: “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes”. E mais: “A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado”.

Em O Capital (Livro I, 1867), sua obra-prima, Marx faz uma análise aprofundada do modo de produção capitalista e conclui: “A socialização do trabalho e a centralização de seus recursos materiais chegam a um ponto no qual não cabem mais no envoltório capitalista”. Assim, a superação da divisão social do trabalho torna-se necessária e constitui-se em programa político do proletariado.

O neurologista austríaco de origem judaica Sigmund Freud (1856-1939), criador da psicanálise, em “O futuro de uma ilusão”, texto de 1927, analisa:

Se nos voltarmos para as restrições que só se aplicam a certas classes da sociedade, encontraremos um estado de coisas que é flagrante e que sempre foi reconhecido. É de esperar que essas classes subprivilegiadas invejem os privilégios das favorecidas e façam tudo o que podem para se liberarem de seu próprio excesso de privação. Onde isso não for possível, uma permanente parcela de descontentamento persistirá dentro da cultura interessada, o que pode conduzir a perigosas revoltas. Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte e de seus participantes depende da opressão da outra parte, parte esta talvez maior — e este é o caso em todas as culturas atuais —, é compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que uma quota mínima. Em tais condições, não é de esperar uma internalização das proibições culturais entre as pessoas oprimidas. Pelo contrário, elas não estão preparadas para reconhecer essas proibições, têm a intenção de destruir a própria cultura e, se possível, até mesmo aniquilar os postulados em que se baseia. A hostilidade dessas classes para com a civilização é tão evidente, que provocou a mais latente hostilidade dos estratos sociais mais passíveis de serem desprezados. Não é preciso dizer que uma civilização que deixa insatisfeito um número tão grande de seus participantes e os impulsiona à revolta não tem nem merece a perspectiva de uma existência duradoura.

Freud admite, entretanto, que “as classes oprimidas podem estar emocionalmente ligadas a seus senhores; apesar de sua hostilidade para com eles, podem ver neles os seus ideais”.

E conclui que,“A menos que tais relações de tipo fundamentalmente satisfatório subsistam, é impossível compreender como uma série de civilizações sobreviveu por tão longo tempo, malgrado a justificável hostilidade de grandes massas humanas.”

Num ensaio de 1930, Freud nos falou do “mal-estar na civilização”. Mas, o que produz esse mal-estar?

O agravamento da exploração capitalista é uma tendência do capitalismo em crise estrutural. A crise estrutural é quando fica claro que a burguesia perdeu as condições históricas para unificar a sociedade em torno de um programa universalizante, ou, dito de outra forma, de elevar seu ponto de vista a uma perspectiva totalizante. Isso provoca um profundo e disseminado mal-estar na sociedade, que atinge os trabalhadores, mas pode atingir os capitalistas também.

A concorrência desenfreada no seio da burguesia, a disputa entre os próprios capitalistas movidos pela busca do lucro máximo, expulsa os derrotados (os mais fracos) do mercado e concentra o capital nas mãos dos vencedores (os mais fortes), que assim formam os monopólios. Por isso, o mercado, que funciona em proveito da classe burguesa em seu conjunto, pode ser também uma ameaça devastadora para os burgueses considerados individualmente.

A totalidade

Hegel sublinhou: “A verdade é o todo”. Essa pequena frase do filósofo é fundamental no pensamento dialético. Nesse sentido, Georg Lukács destacou: “Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade. A categoria da totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre as partes, constitui a essência do método que Marx recebeu de Hegel e transformou de maneira original no fundamento de uma ciência inteiramente nova.”

Mas, o que é a totalidade? Lukács esclarece:

A concepção dialético-materialista da totalidade significa,

• primeiro, a unidade concreta de contradições que interagem (…);

• segundo, a relatividade sistemática de toda a totalidade tanto no sentido ascendente quanto no descendente (o que significa que toda a totalidade é feita de totalidades a ela subordinadas, e também que a totalidade em questão é, ao mesmo tempo, sobredeterminada por totalidades de complexidade superior (…)

• e, terceiro, a relatividade histórica de toda totalidade, ou seja, que o caráter de totalidade de toda totalidade é mutável, desintegrável e limitado a um período histórico concreto e determinado.

Nos Grundrisse, Marx exemplifica:

O resultado a que chegamos não é que produção, distribuição, troca e consumo são idênticos, mas que todos eles são momentos de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade. A produção estende-se tanto para além de si mesma na determinação antitética da produção, como sobrepõe-se sobre os outros momentos. É a partir dela que o processo sempre recomeça. É autoevidente que a troca e o consumo não podem ser predominantes.  Da mesma forma que a distribuição como distribuição dos produtos. No entanto, como distribuição dos agentes da produção, ela própria é um momento da produção. Uma produção determinada, portanto, determina um consumo, uma troca e uma distribuição determinados, bem como relações determinadas desses diferentes momentos entre si. A produção, por sua vez, certamente é também determinada, em sua forma unilateral, pelos outros momentos. Por exemplo, quando o mercado se expande, isto é, com a concentração do capital, com diferente distribuição da população entre cidade e campo etc. Finalmente, as necessidades de consumo determinam a produção. Há uma interação entre os diferentes momentos. Esse é o caso em qualquer todo orgânico.

Em O Capital (vol. 2), Marx esclarece:

É uma condição necessária ao processo total de produção, especialmente para o capital social, que ele seja simultaneamente processo de reprodução e, assim, ciclo de cada um de seus momentos. Diferentes frações do capital percorrem sucessivamente os diversos estágios e formas funcionais. Cada forma funcional, embora nela se expresse sempre outra parte do capital, percorre seu próprio ciclo ao mesmo tempo que as outras. Uma parte do capital, que muda e se reproduz sem cessar, existe como capital-mercadoria, que se converte em dinheiro; outra parte existe como capital monetário, que se converte em capital produtivo; a terceira, capital produtivo, se converte em capital-mercadoria. A existência constante dessas três formas é mediada justamente pelo ciclo do capital total que percorre essas três fases.

Como totalidade, o capital se encontra, então, simultaneamente e em justaposição espacial de suas diferentes fases. Mas cada parte passa constantemente, por turnos, de uma forma funcional a outra, e assim funciona sucessivamente em todas as formas. As formas são, portanto, fluidas, e sua simultaneidade é mediada por sua sucessão. Cada forma segue a outra e a antecede, de modo que o retorno de uma parte do capital a uma forma é condicionado pelo retorno de outra parte a outra forma. Cada parte percorre continuamente seu próprio curso, mas é sempre outra parte do capital que se encontra nessa forma, e esses percursos especiais formam apenas momentos simultâneos e sucessivos do percurso total.

István Mészáros, explica:

O Capital de Marx culmina com o volume III: ‘O Processo de Produção Capitalista como um Todo’. Só em termos da necessária inter-relação estrutural entre o capital social total e a totalidade do trabalho é que as tendências e leis da autoexpansão e da desintegração final do capital, tal como reveladas por Marx, adquirem significação real, ao mesmo tempo em que também levam plenamente em conta as tendências contrárias e as determinações estruturais que tendem a deslocar as contradições do capital e, dessa forma, a prolongar o período de sua viabilidade social e histórica. Em uma época histórica posterior das confrontações sociais, Lenin preocupou-se em especial com a identificação da alavanca objetiva ou do estratégico ‘elo da cadeia’, historicamente específico e necessariamente variável, por meio do qual uma totalidade social dada é controlada de maneira mais efetiva sob forma de ação social/política organizada, desde que uma agência coletiva, adequada e consciente, exista para implementar a concepção estratégica global.

Sobre a totalidade, Carlos Nelson Coutinho observa:

A dialética não pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstraindo do todo. Ela pensa tanto as contradições entre as partes (a diferença entre elas: o que faz uma obra de arte algo diferente de um panfleto político) como a união entre elas (o que leva a arte e a política a se relacionarem no seio da sociedade enquanto totalidade).

A contradição e a mediação

A contradição dialética não é uma contradição lógica. O filósofo marxista francês Henri Lefebvre (1901-1991) escreveu: “Não podemos dizer ao mesmo tempo que determinado objeto é redondo e é quadrado. Mas devemos dizer que o mais só se define pelo menos, que a dívida só se define pelo empréstimo”.

O método marxista vai do abstrato ao concreto, do simples ao complexo. Marx diz sobre o método:

Se começo pela população, portanto, tenho uma representação caótica do conjunto; depois, através de uma determinação mais precisa, por meio de análises, chego a conceitos cada vez mais simples. Alcançado tal ponto, faço a viagem de volta e retorno à população. Dessa vez, contudo, não terei sob os olhos um amálgama caótico e sim uma totalidade rica em determinações, em relações complexas.

Ele concluiu então: “O concreto é concreto porque é a síntese de várias determinações diferentes, é unidade na diversidade”.

É importante identificar no complexo que enforma uma totalidade as contradições entre as suas partes e as mediações através das quais elas se relacionam.  Por exemplo, o modo de produção capitalista é uma totalidade formada por capital e trabalho. Estas são realidades relacionadas que se confrontam. Entre elas estabelecem-se mediações. O vínculo entre capitalistas e trabalhadores é mediado pelas relações trabalhistas que regem o processo produtivo.

Leandro Konder explica:

As conexões íntimas que existem entre realidades diferentes criam unidades contraditórias. Em tais unidades, a contradição é essencial: não é um mero defeito do raciocínio. Num sentido amplo, filosófico, que não se confunde com o sentido que a lógica confere ao termo, a contradição é reconhecida pela dialética como princípio básico do movimento pelo qual os seres existem. A dialética não se contrapõe à lógica, mas vai além da lógica, desbravando um espaço que a lógica não consegue ocupar.

Para desbravar esse novo espaço, a dialética modifica os instrumentos conceituais de que dispõe: passa a trabalhar, frequentemente, com determinações reflexivas e procura promover uma ‘fluidificação’ dos conceitos.

A “fluidificação” dos conceitos

A fluidificação dos conceitos é própria da dialética, porque o conceito deve dar conta de uma realidade que está em movimento, em permanente transformação.

Para Hegel, no processo global da realidade, a Ideia Absoluta assume a instabilidade da matéria e desdobra-se numa série de movimentos que vão no sentido da imperfeição à perfeição, retornando finalmente a si mesma. Temos aí uma concepção do movimento numa totalidade fechada, redonda ou circular, vale dizer, na qual conhecemos de antemão seu início (ponto de partida) e seu fim (ponto de chegada), que coincidem.

Para Marx, o movimento da matéria se dá numa totalidade aberta, a qual pode ser representada por uma espiral. O conhecimento, por mais avançado que seja, está sempre em dívida com a realidade, a qual é inesgotável e está sempre se modificando. Por isso, o conceito dialético, para ser dialético, não pode ser estático, pois precisa ser fluido, acompanhar a instabilidade da matéria, o movimento gerado por suas contradições.

O conceito de “natureza humana”, por exemplo. Marx, em A Miséria da Filosofia (1847), diz que a história “não é outra coisa senão uma transformação contínua da natureza humana”. E a natureza humana se transforma fisicamente: “ao atuar sobre a natureza exterior, o homem modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”. Dessa forma, a evolução da natureza humana tem uma base natural insuprimível: “A formação dos cinco sentidos é trabalho de toda a história passada”.

Para Marx, nenhum aspecto da natureza humana está situado acima ou fora da história, mas determinados aspectos podem perdurar na história. Nesse sentido, a gênese de um fenômeno é muito importante, mas o fenômeno pode não estar prisioneiro das condições que o geraram. Exemplificando, Marx refere-se, num escrito famoso de 1857, à arte grega do século V a. C. Não se pode ignorar as condições históricas de sua gênese em Atenas, mas sua validade artística, seu efeito estético permanece vivo em nossos dias.

Leandro Konder esclarece:

A “fluidificação” dos conceitos destinados a tratar dos dois lados dessa realidade só pode ocorrer através da determinação reflexiva: os conceitos funcionam como pares inseparáveis. Por isso a dialética não pode admitir contraposições metafísicas, tais como mudança/permanência, ou absoluto/relativo, ou singular/universal, etc. Para a dialética, tais conceitos são como ‘cara’ e ‘coroa’: duas faces da mesma moeda. 

As leis da dialética

Marx, em carta de 1875, ao filósofo alemão radicado nos EUA Joseph Dietzgen (1828-1888), anunciou a intenção de escrever um tratado sobre a dialética. Mas, ocupado com a redação de O Capital, não levou a cabo seu projeto. Engels, no entanto, estimulado por Marx, redigiu o polêmico Anti-Dühring (1878), livro no qual trata de importantes questões relativas à dialética.

Engels pretendia fazer uma defesa da dialética materialista, tal como ele e Marx a concebiam. Para ele, uma dialética materialista da história humana pressupunha uma dialética da natureza. Ele foi buscar então as leis gerais da dialética na dialética da natureza. Essas leis seriam três:

  1. lei da passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa);
  2. lei da interpenetração dos contrários;
  3. lei da negação da negação.

Para exemplificar a passagem da quantidade à qualidade, Engels cita a água, que, ao atingir cem graus centígrados, ferve e passa do estado líquido ao gasoso.

A segunda lei diz que tudo está relacionado e se expressa como unidade e luta dos contrários.

A terceira lei indica que o movimento geral da realidade não é absurdo, pois faz sentido, não se esgotando em contradições irracionais. Toda tese tem uma antítese, mas a negação é superada por uma síntese (a negação da negação).

Em O Capital (vol., I), Marx explica a negação da negação:

O modo de apropriação capitalista, que deriva do modo de produção capitalista, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, fundada no trabalho próprio. Todavia, a produção capitalista produz, com a mesma necessidade de um processo natural, sua própria negação.  É a negação da negação. Ela não restabelece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre a base que foi conquistada na era capitalista, isso é, sobre a base da cooperação e da posse comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho.

Essas leis já se encontravam disponíveis em Hegel, mas Engels tratou de resgatá-las numa perspectiva claramente materialista.

Um exemplo extremamente bem-sucedido de passagem da quantidade à qualidade na história humana Engels o encontrou numa arguta observação militar do imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821): “Dois mamelucos derrotavam seguramente três franceses; cem mamelucos enfrentavam, em igualdade de condições, cem franceses; 300 franceses venciam 300 mamelucos; e mil franceses derrotavam, inevitavelmente, 1500 mamelucos”.

No caso da água, a passagem de um estado a outro é um fenômeno físico, não depende da subjetividade humana. Aliás, a mudança de estado é uma alteração física que não implica mudança na composição química. No caso do confronto entre as duas cavalarias, a subjetividade humana é o que conta – a capacidade de organização –, pois o processo depende de decisões e escolhas humanas, comportando alternativas e iniciativas.

Como se pode ver, a dialética da história não pode ser reduzida à dialética da natureza, que é uma pré-dialética.  Por outro lado, não se pode reduzir a dialética da história a três leis gerais. A dialética, por sua complexidade, não pode ser codificada.

O sujeito e a história

Marx morreu em 1883 e, doze anos depois, Engels, em 1895. Após a morte dos dois fundadores do materialismo histórico, o socialista alemão Eduard Bernstein (1850-1932), pretextando que o capitalismo estava mais vigoroso do que nunca e que as previsões de Marx e Engels haviam falhado, propôs uma revisão do marxismo. O revisionismo de Bernstein considerava que a dialética era “o elemento pérfido na doutrina marxista, o obstáculo que impede qualquer apreciação lógica das coisas”. Ele propunha, em consequência, o abandono da herança hegeliana do marxismo e um retorno a Kant.

Karl Kaustky (1854-1938) opôs-se às teses do revisionista Bernstein e saiu vitorioso no confronto que se deu no interior do Partido Social-Democrático Alemão. Mas Kautsky tampouco era um autêntico dialético. Ele tendia a confundir a dialética com o evolucionismo do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), autor de A Origem das Espécies (1859).

Outro socialista, o cubano Paul Lafargue (1842-1911), genro de Marx, autor de O Direito à Preguiça (1883), escreveu também O Determinismo Econômico de Karl Marx, que, como o próprio título indica, mostrou que ele não havia compreendido a dialética, substituindo-a pelo determinismo econômico.

Contra os desvios desse marxismo vulgar, Rosa Luxemburg (1871-1919) e Lenin (1870-1924) reagiram em defesa da dialética.

Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), em 1915, Rosa Luxemburg estava presa. Do cárcere, inspirando-se em Engels do Anti-Düring, não hesitou em proclamar “socialismo ou barbárie”. Com essa famosa proclamação, contrapôs-se ao

marxismo vulgar que, então, grassava nas hostes socialistas. Para Rosa, o mundo não caminhava espontaneamente do capitalismo para o socialismo. Deixado à sua sorte, o capitalismo caminhava para a barbárie (como, aliás, os horrores da guerra prenunciavam). O socialismo era uma alternativa que dependia do sucesso da intervenção ativa do sujeito humano.

Lênin, por sua vez, estava empenhado em valorizar a intervenção do sujeito revolucionário, como fica claro em Que Fazer? (1902).

Ele estudou Hegel em 1914 e chegou à conclusão de que era preciso conhecer A Ciência da Lógica (1812-1816), de Hegel, para entender O Capital de Marx.

O húngaro Georg Lukács e o italiano Antonio Gramsci (1891-1937) são duas expressões do revigoramento da dialética no movimento socialista após Lênin.

Luckács dizia que somente o ponto de vista da totalidade permite enxergar, para além da aparência das coisas, os processos e inter-relações que compõem o “jorrar ininterrupto de novidade qualitativa” da realidade.

Walter Benjamin (1892-1940), outro filósofo marxista alemão, deu uma importante contribuição à restauração dialética do marxismo. Benjamin denunciava: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”.  Por isso, a tarefa que se coloca é a de “escovar a história a contrapelo”.

Para Benjamin, “nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente”.

O georgiano Josef Stálin (1879-1953), sucessor de Lênin na direção do PCUS e do Estado Soviético, foi o principal expoente do pensamento antidialético que grassou no movimento socialista mundial.

Stalin considerava Hegel uma expressão sociológica do atraso da Alemanha na época da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas.

Stalin ‘corrigiu’ Engels. Em vez das três leis da dialética citadas no Anti-Düring, ele postulou em Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico (1938) que a dialética tinha “quatro traços fundamentais”:

  1. a conexão universal e a interdependência dos fenômenos;
  2. a passagem de um estado qualitativo a outro;
  3. o movimento, a transformação e o desenvolvimento;
  4. e a luta dos contrários como fonte interna de desenvolvimento.

Para Stalin, a “negação da negação”, expressão empregada por Engels, devia ser descartada por ser muito hegeliana.

Stalin não tinha apreço pela formulação teórica. Não considerava a teoria necessária para criticar a prática nem considerava a necessidade do retorno da prática sobre a teoria para corrigi-la. Tampouco reconhecia a necessidade da autocrítica.

Para estabelecermos um paralelo, em determinados momentos, Zinoviev, Kamenev, Trótsky e Bukhárin (e o próprio Stalin) divergiram de Lênin em questões importantes. Nem por isso Lênin os liquidou, como fez Stalin com seus contraditores.

O indivíduo e a sociedade

O indivíduo isolado não tem força para influenciar a sociedade. Organizando-se com outros indivíduos que comunguem os mesmos propósitos, ganha potencial para influenciar nos rumos da sociedade. Quanto maior e mais coesa for essa organização, tanto mais forte será o potencial da ação coletiva para influenciar a sociedade.

O filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) escreveu: “A dialética, como lógica viva da ação, não pode aparecer a uma razão contemplativa”. Sartre explica: “No curso da ação, o indivíduo descobre a dialética como transparência racional enquanto ele a faz, e como necessidade absoluta enquanto ela lhe escapa, quer dizer, simplesmente, enquanto os outros a fazem”.

Na atualidade, o capitalismo esta enrascado em uma grave crise estrutural. Não obstante, as forças do socialismo estão muito debilitadas e dispersas. Esse processo de debilitamento e dispersão vem desde a dissolução da Internacional Comunista (1919-1945) e o colapso do “socialismo real” com a implosão da União Soviética (1917-1991).

As crises sempre prenunciaram grandes transformações. No curso da Primeira Guerra Mundial, por exemplo, ocorreu a vitória da Revolução Bolchevique na Rússia de 1917. No entreguerras, a ascensão do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha.

A teoria política gramsciana aponta as tarefas que devem ser cumpridas para que as crises configurem conjunturas de transformações progressivas ao invés de regressivas.

A primeira lição gramsciana é a que rompe com o economicismo e descarta que a crise econômica se transforme automaticamente em crise de hegemonia.

Pode-se excluir que, por si mesmas, as crises econômicas imediatas produzam acontecimentos fundamentais; elas podem criar apenas um terreno mais favorável à difusão de certos modos de pensar, de colocar e resolver as questões que envolvem todo o desenvolvimento ulterior da vida do Estado.

A transformação da crise econômica em política “é essencialmente um processo que tem por atores os homens e a vontade e a capacidade dos homens”. Se as forças populares permanecem inoperantes, o mais certo é que “a velha sociedade resiste e se dá o tempo de ‘respirar’, exterminando fisicamente a elite adversária e aterrorizando as massas de reserva”.

A segunda lição é a que alerta para a necessidade de se estar preparado para o surgimento do que se poderia chamar de conjuntura favorável.

O elemento decisivo de toda situação é a força organizada permanentemente e preparada desde muito tempo, e que se pode fazer avançar quando se julga que uma situação é favorável (e ela só é favorável na medida em que uma tal força exista e esteja plena de ardor combativo); assim a tarefa essencial é a de se dedicar sistemática e pacientemente a formar, desenvolver, tornar sempre mais homogênea, compacta, consciente de si mesma esta força.

Enfim, por mais grave que seja a crise do capitalismo, uma coisa é certa: o poder do capital não cairá de podre por si mesmo. Ainda que apodrecido, ele só desabará se for demolido por uma força social mais poderosa que constitua um novo bloco histórico.

A práxis

A práxis é um conceito central da dialética marxista. Não por acaso, nos Cadernos do Cárcere (1926-1937), Gramsci se refere ao marxismo como a filosofia da práxis.

A práxis expressa a unidade da teoria e da prática. O homem realiza essa unidade contraditória em suas atividades prático-críticas, no metabolismo social, quer dizer, no trabalho e na política. A práxis é a articulação do pensamento voltado para a ação, com a ação estimulada pelo pensamento.

A crítica e a autocrítica

A crítica e a autocrítica são dimensões insuperáveis da dialética. A dialética nos incita a revisitar o passado à luz do que está acontecendo e a considerar o presente – como diria o alemão Ernst Bloch (1885-1977), o filósofo do “princípio esperança” –, em função do que “ainda não é”.

Para o dialético, tudo, absolutamente tudo, merece ser submetido ao crivo da crítica. E, ao submeter tudo ao crivo da crítica, o dialético submete a si mesmo: eis aí a autocrítica.

Sugestões de leitura

O que é dialética?, de Leandro Konder, é um livro cuja leitura é indispensável a quem deseja ser apresentado à dialética. Leandro escreveu-o para a Coleção primeiros passos.

Anti-Dühring, de Engels, é um clássico que todo marxista deveria conhecer.

Dialética do concreto, de Karel Kosic, é uma coletânea de ensaios excepcionais que aprofundam a discussão da dialética.

O Conceito de dialética em Lukács, de István Mészáros, é outro livro que enriquece as abordagens sobre a dialética.

Bibliografia:

ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Boitempo.

KONDER, Leandro.  O que é dialética.  São Paulo, Abril Cultural/Brasiliense, 1985.  (Coleção Primeiros Passos)

KOSIC, Karel.  Dialética do concreto.  Paz e Terra.

MÉSZÁROS, István. O Conceito de dialética em Lukács. Boitempo.

Sergio Granja

Carioca de 1948. Iniciou sua militância em 1965, no PCB. Foi da ALN e exilado político. É mestre em Literatura Brasileira e professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro.

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