De incendios y capitales

O fogo que agora está consumindo florestas na África central e Sibéria é resultado do impacto profundo que o aquecimento global produz no clima do planeta. Ou seja, é efeito do metabolismo que o sistema econômico capitalista impõe à Terra, extraindo riquezas até o paroxismo e produzindo detritos em escala nunca antes vista na história. Porém, os incêndios que ocorrem na selva amazônica são ação direta de grupos interessados em transformar área preservada em mercadoria.

Quais são esses grupos? Mineradores ilegais, madeireiros e “grileiros”. Estes últimos são o braço ilegal de proprietários de terra, que, depois de consumadas as queimadas, deixam as áreas disponíveis para fazer pastos, criar gado ou plantar soja.

No dia 10 de agosto, quando surgiram no estado amazônico do Pará vários focos de incêndios em áreas de conservação, uma corrente de whatsapp divulgava o “Dia do fogo” (1). Esta jornada, noticiada como campanha de “apoio ao presidente” Jair Bolsonaro, reproduzia os argumentos do mandatário contra os ambientalistas. O discurso executivo chamava as políticas públicas de defesa do ambiente e dos territórios indígenas de “obstáculos” à produção e ao desenvolvimento regional.

As declarações presidenciais vêm precedidas pelo desmonte dos órgãos estatais responsáveis pelo monitoramento através de satélite (INPE — que havia divulgado que o desmonte da Amazônia em 2019 era 82% maior que em 2018) e a fiscalização direta (IBAMA — instituto ao qual acusou de gerar uma “indústria de multas” ambientais), e também do órgão responsável pela demarcação das terras indígenas (FUNAI). Paralelamente, as associações de proprietários rurais pressionam por uma legislação que permita arrendar as terras indígenas para cultivo (2).

Se observamos o mapa dos mais de 70 mil focos de incêndio na Amazônia brasileira, percebemos que a maioria se localiza ao redor de unidades de conservação ambiental e de terras indígenas. Sendo que 40% destes focos destroem áreas de floresta úmida, de difícil combustão, e os outros 60% pressionam suas bordas. Os povos indígenas, sem fazer barulho, vêm desenvolvendo estratégias de proteção territorial contra madeireiros e mineradoras furtivos em seus territórios.

Há 20 dias, as mulheres do campo fizeram duas manifestações na capital, Brasília, contra estas políticas: a Marcha das Margaridas (3) das trabalhadoras rurais, que ocorreu em 14 de agosto, e a marcha das mulheres indígenas (4), com o lema “Território: nosso corpo, nosso espírito”, no dia 13 de agosto, em defesa da Amazônia e da demarcação de terras.

A Amazônia é a fronteira da expansão da exploração agropecuária e mineradora para a exportação de commodities. Quanto mais as políticas de Estado para a integração dos territórios às cadeias de acúmulo vinham aumentando, conforme a demanda por essas mercadorias crescia, essas políticas chocavam com o marco legal anterior, de regulação ambiental e indígena. Durante o governo da presidenta Dilma Roussef, o pressuposto dirigido à defesa ambiental se reduziu consideravelmente em benefício de incentivos à “produção sustentável”(5) e se levou adiante um programa de desenvolvimento de infraestrutura de energia e logística, o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), de apoio às invasões de capitais na região, mesmo a custo de impactos ambientais. Não esqueçamos que o rompimento da represa de detritos minerais de Mariana ocorreu em 2015, durante o último governo do Partido dos Trabalhadores.

Contudo, as políticas do governo de Jair Bolsonaro, sem dúvida, não são de desenvolvimento, mas sim, de destruição dos marcos legais e das bases materiais das economias tradicionais, dos povos preexistentes e das comunidades campesinas e pescadoras. Estas economias tradicionais são uma barreira material e espiritual para a integração dos territórios à cadeia de extração de riquezas. A destruição das bases materiais destas economias abre espaço à instalação de projetos espoliadores, em um momento posterior. As grandes operadoras das cadeias de acumulação não precisam nem possuem interesse em imobilizar seu capital comprando terra. Seu interesse é controlar o uso destas áreas de extração de riquezas por intermédio de produtores locais. Eles enxergam a oportunidade de fazer negócio ampliando a exportação de produtos primários ou semimanufaturados.

Esta pressão das cadeias é sobre toda a região amazônica, que está dividida entre Brasil (com 60% da área total) Peru, Colômbia, Equador, Venezuela, Guiana, Suriname e França (com sua província ultramarina: Guiana). A presença do Estado francês na região possibilitou ao presidente Emmanuel Macron que se apresentasse como parte diretamente interessada e ameaçasse desistir do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul. Na realidade, os produtores franceses vinham pressionando-o, já que há neste acordo uma desvantagem para suas vendas no mercado europeu. De qualquer forma, o efeito da ameaça de Macron foi o de colocar em alerta as grandes associações de exportadores agropecuários brasileiros. Justamente aqueles que seriam diretamente beneficiados pelo aumento das terras disponíveis para o agronegócio na Amazônia.

Entre a espada e a parede, o presidente Bolsonaro se viu obrigado a um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão no dia 23 de agosto, anunciando ações de combate às queimadas. Este pronunciamento, que ocorreu às 20h30, horário de Brasília, foi recebido com panelaços nas principais cidades do país. Ao mesmo tempo, se realizavam mobilizações nestas cidades contra a políticas anti-ambiental e anti-indígena do governo. Estas mobilizações foram organizadas em apenas dois dias, sem a presença dos grandes partidos de esquerda que possuem participação no parlamento e nem de centrais de trabalhadores ou grandes organizações sociais. Estes seguem um calendário próprio com estratégias de luta institucional, eleitoral, e não tem flexibilidade para responder rapidamente perante a situações como esta.

Por um lado, porque os partidos progressistas compartilham com os outros partidos da ordem a ideologia do desenvolvimento. Por outro lado, porque se protegem na fortaleza da governabilidade e da estabilidade, que exige que se continue exportando commodities. Por último, porque desenvolveram uma grande desconfiança nas forças sociais, apostando somente nas articulações e iniciativas de caráter institucional. Em grande medida, e ainda que não afirmem abertamente, culpam o povo pela ascensão da direita nas eleições. A desconfiança é mútua, o povo há tempos, pelo menos desde 2013, não confia nestas direções. Porém, outra razão pelo medo de intervir é a gravidade do momento. Temem que a ampliação do problema dê argumentos a quem defende a tutela da região por órgãos internacionais.

O próprio presidente Jair Bolsonaro, que há uma semana atrás propunha acabar com as áreas protegidas e que perante as primeiras notícias da semana tratou de minimizar os incêndios que ocorriam, em seu pronunciamento do dia 23 de agosto, admitiu o desastre. Apresentou as ONGs e os povos indígenas como suspeitos e acusou o governo francês de colonialista. Ao mesmo tempo, anunciou o uso das forças armadas para o combate aos incêndios e a repressão aos crimes ambientais. Sugeriu a aplicação da legislação de Garantia de Lei e Ordem, que permite a intervenção militar nos estados, a pedido dos governadores, como ocorreu no estado do Rio de Janeiro durante o governo de Michel Temer (para combater o crime organizado). E também adiantou que pediria ajuda ao governo dos Estados Unidos e Israel. Isto é, longe de defender a soberania nacional, abre as portas à ocupação militar do império. Contrariamente às acusações que lhe fazem, não esconde nada.

Não é o único crime ambiental que ocorreu em território brasileiro nos últimos anos. As rupturas das represas de detritos tóxicos de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) também alcançaram grandes áreas. Porém a destruição da floresta amazônica tem consequências que vão além da região. Possui impacto sobre o clima de todo o subcontinente. A nuvem de fuligem que se debruçou sobre o sudeste do país no dia 19 de agosto, as 15h30, que transformou rapidamente o dia em noite, tornou visível os rios aéreos que levam e distribuem a umidade da Amazônia ao resto dos territórios.

Não se trata de uma catástrofe natural, mas de uma transformação rápida resultante da ansiedade em fazer, de cada centímetro do planeta, valor de troca. A nova configuração do capital integra os territórios à cadeia de acumulação, consumindo toda a energia vital. O combate a esta nova configuração não admite “volta atrás” reformista: não há acordo possível com o capital. Ou colocamos a vida como único critério para as decisões, como fizeram os povos amazônicos, ou pereceremos.

Haverá uma mudança no ciclo das águas que impactará no clima do subcontinente. Porém, a floresta é resiliente, pode se recuperar. Precisará começar um novo ciclo. Dependendo do comprometimento da camada orgânica na queimada, o ritmo será mais ou menos lento. Não se terá em poucos anos o bosque maduro que havia antes do incêndio, mas sim uma mata densa. A condição para que isso aconteça é que não se use para qualquer monocultivo, que se detenham os projetos que interferem na rede hidrográfica (como as hidrelétricas), que se pare toda a sangria extrativista da região. Os povos da floresta sabem como fazer. Passo às suas formas de vida, fora o capital dos territórios!”

1 – https://revistagloborural.globo.com/Noticias/noticia/2019/08/grupo-usou-whatsapp-para-convocar-dia-do-fogo-no-para.html

2 — https://cimi.org.br/2019/08/projeto-ruralista-legaliza-arrendamento-terras-indigenas-pode-ser-votado-na-camara/

3 — https://www.brasildefato.com.br/2019/08/14/marcha-das-margaridas-se-encerra-com-mostra-de-forca-de-100-mil-mulheres-camponesas/

4 — https://exame.abril.com.br/brasil/fotos-em-1a-marcha-mulheres-indigenas-protestam-contra-governo-bolsonaro/

5 — https://infoamazonia.org/es/projects/brazilian-deforestation-policy/2ynbXYuflMw

Silvia Beatriz Adoue

Silvia Beatriz Adoue

Professora da Unesp e editora do Contrapoder

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