A validação da ocupação dos Estados de Argentina e Chile

por: Valéria Becerra1 e Silvia Adoue
A ideologia que Espanha utilizou para justificar a invasão baseava-se em argumentos geológicos: “os índios infiéis” teriam ou não teriam alma? Se a igreja dirimiu o impasse em 1551, durante o debate conhecido como Controvérsia de Valladolid, entre Fray Bartolomé de las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, os argumentos que haviam servido durante as Cruzadas para justificar a luta contra os mouros tiveram força prolongada para validar a dominação destas terras e suas gentes, e também para a espoliação de sua força de trabalho e a dos africanos e seus descendentes no que chamaram de América. Porém, no caso específico do povo Mapuche, chamado de “araucano” pelos espanhóis, já na crônica de Índias La araucana (2022), de Alonso de Ercilla e Zúñiga, os mapuches são apresentados como valentes e abnegados. É no século XIX, e no contexto de uma segunda onda de invasão, que a burguesia [diz que]nacional utilizou o ideologema que opõe civilização e barbárie, qualificando de bárbaros os povos destas terras. Assistimos a um novo assalto do capital sobre as terras do sul do continente, acompanhado do discurso ideológico que constitui a figura do terrorista projetada sobre os povos que resistem à pilhagem extrativista.
As primeiras décadas depois do fim da colonização espanhola neste sul do mundo estiveram marcadas por disputas interburguesas. O que estava em questão não eram diferentes projetos de nação. Brigavam para dirimir quem ficaria com o grosso do lucro das exportações de matérias primas. O aumento da demanda de insumos propiciada pela segunda revolução industrial na Europa e nos Estados Unidos criou novas oportunidades de negócios que exigiam o fim dessas disputas, o ordenamento jurídico, a ampliação do território de extração de matérias primas, o disciplinamento da força de trabalho, obras de infraestrutura para o fluxo regular dessas mercadorias… Tais desafios exigiam a consolidação do aparato do Estado, o que aconteceu durante a segunda metade do século XIX. Os novos Estados [dizque]nacionais de Argentina e Chile fundaram-se a partir da formação de exércitos profissionais que avançaram sobre territórios que, ainda que figurassem como próprios na quase totalidade de seus mapas, não tinham sido explorados durante o período colonial, já que os povos preexistentes à invasão apresentaram uma brava resistência. Além do mais, a invasão colonial espanhola havia se concentrado nas planícies tropicais e subtropicais, nas que as condições geográficas podiam ser melhor aproveitadas com menor dispêndio de esforço. Processos semelhantes aconteceram em todo o continente, incluído Estados Unidos. O militar argentino Júlio Argentino Roca estudou minuciosamente os procedimentos de Estados Unidos para usurpar o território Sioux, como modelo a ser imitado na assim chamada “Campanha do Deserto”, no território Mapuche-Ranquelche.

A ocupação, anexação e pilhagem do Wallmapu2 a partir da segunda metade do século XIX, foram acompanhadas de grandes discursos no congresso e pelo peso comunicacional do jornal El Mercurio na sociedade chilena. No processo de construção do Estado, Chile debateu a propósito das formas em que se devia anexar o Gulumapu3 ao território chileno. Diversas figuras políticas e intelectuais falavam dos mapuches de maneira favorável, como Vicente Pérez Rosales, que se referia a “um povo de agricultores que deixaram atrás o pastoreio para viver de um modo estável em casas construídas com madeira. Cultivam trigo, batata e milho (…) trabalham com muita destreza rédeas e laços, não rejeitam a instrução (…) em total são homens traquilos” (PINTO, 2000, p. 64);o ou Ignacio Domeyko, geólogo enviado pelo Estado chileno para desenvolver uma expedição no Gulumapu, explicando que o mapuche é “afável, honrado, susceptível das mais nobres virtudes, hospitaleiro, amigo da quietude e da ordem, amante de sua pátria e por conseguinte da independência de seus lares, circunspecto, sério, enérgico: parece nascido para ser um bom cidadão” (DOMEYKO, 1846, p. 56). Ambos personagens destacados da sociedade chilena, Rosales e Domeyko atribuem, de uma forma ou de outra, ao povo Mapuche as características de qualquer nação, tendo um desenvolvimento político sólido que se reafirma com as relações de vizinhança e econômicas que desenvolveram com o império espanhol; o que mantinha, inclusive, a admiração de alguns políticos da época, devido ao chamado “valor araucano”. No entanto, essa situação se reverte precipitadamente devido aos interesses por territorializar o Estado chileno no território ancestral mapuche, através da ocupação, a anexação e a pilhagem.

O primeiro instrumento legal da violência foi a lei de 2 de julho de 1852, que cria a província de Arauco num lugar onde ainda o Estado não existia. Várias foram as disposições legais para a ocupação e a pilhagem, mas essas foram acompanhadas pelo argumento que legitimaria a violência: a suposta disputa entre civilização e barbárie. Num discurso no Congresso Nacional, em 1868, Benjamín Vicuña Mackenna declamou: “que o índio não é outra coisa que um bruto indomável, inimigo da civilização, porque apenas adora os vícios nos quais está mergulhado, a ociosidade, a bebedeira, a mentira, a traição e todo esse conjunto de abominações que constrói a via do selvagem (…). É verdade que o índio defende o solo, mas o defende porque odeia a civilização, odeia a lei, o sacerdócio, o ensino” (CORREA, 2021). Por sua vez, a política editorial do jornal El Mercurio de Valparaíso respaldava a política genocida do Estado, através de diferentes artigos e manchetes que acusavam constantemente o mapuche de bárbaro e inimigo da civilização, tal como aparece na manchete do dia 1º de novembro de 1860 (ver fac-símile embaixo), que, entre muitas coisas, aponta os mapuches como “malfeitores selvagens que incendeiam as propriedades das famílias de colonos”.
Era necessário justificar a ocupação, anexação e pilhagem das terras ancestrais em todos os ámbitos possíveis, com a finalidade de gerar divergências na sociedade chilena. A narrativa de “civilização e barbárie” sustentou-se na ideia do bem, o saber e o desenvolvimento nas terras dos selvagens. Em 1861, Cornelio Saavedra Rodríguez propôs e executou um plano de ocupação do Gulumapu que foi batizado com o eufemismo de “Pacificação da Araucania”. Durante a aplicação desse plano, o povo Mapuche perdeu 95% das terras ancestrais (MARIMAN, 2006), ficando não apenas relegado a terras com pouca fertilizade para a agricultura, senão também empobrecido e com uma fragmentação evidente de sua identidade e cultura. As tentativas por reverter essa situação foram uitos, se levantando diferentes organizações ao longo do século XX, com o propósito de reivindicar os direitos dos mapuche num contexto ideológico anti-indígena.
Na obra considerada fundante da literatura argentina e primeira obra romântica em castelhano, o poema épico La cautiva (2003), de Esteban Echeverría, os Mapuche-Ranquelche são apresentados como bárbaros. A obra, publicada em 1837, inspira-se num episódio relatado na crônica de Rui Diaz de Gusmán La Argentina manuscrita (2012), escrita em 1612. O relato de Gusmán já foi estudado e reconhecido como uma operação ideológica no contexto da conquista do Paraguai (IGLESIA, 1987), que mobiliza a hagiografia dos santos cristãos. Vemos como tem uma certa continuidade entre a ideologia colonial espanhola e a das burguesias [dizque]nacionais: o olhar colonial sobre os povos da terra.

Em 1845, durante seu exílio no Chile, o argentino Domingo Faustino Sarmiento publicou o ensaio Facundo ou civilização e barbárie (1955). Com esse texto, o autor, depois ministro de Educação e Presidente da República Argentina, instalou a matriz ideológica que hegemonizaria o pensamento burguês na região, associando a barbárie com o mundo rural e suas gentes. Se imporia a teoria climática, o racismo científico e o darwinismo social que justificam a estratificação social racializada.
A obra de Echeverría e a de Sarmiento precedem a assim chamada “Campanha do Deserto (1878-1885), preparada e comandada por Julio Argentino Roca, contra os territórios ranquelche, mapuche e tehuelche. Antes da ação de Roca, em 1867, o Congresso Nacional Argentino aprovou a Lei 215, que estabelece unilateralmente a fronteira sul junto aos rios Negro e Neuquén. Uma série de combates correm a fronteira, mas o avanço decisivo começa com a formação de um exército profissional e equipado com tecnologia armamentista de ponta. O extermínio, o deslocamento forçado, a colonização do território e a escravização dos povos da terra foram fundantes do Estado argentino.
Os nomes com que se conhecem essas ações genocidas dos Estados chileno e argentino, “Pacificação da Araucania” e “Campanha do Deserto”, respectivamente, são, em si mesmos, operações ideológicas. Porém, os povos são teimosos. Usam suas astúcias e silêncios para retornar, para recuperar suas práticas no Wallmapu. Reduzidos a pequenas áreas, insuficientes para restaurar sua forma de vida ancestral. Às vezes, sob a aparência do pião rural, do criador de ovelhas, da ñaña, do jovem trabalhador da periferia das cidades, da empregada doméstica, bate o coração dos povos da terra. Às vezes, sem consciência precisa de sua origem, se organizando aqui e ali para demandar as terras usurpadas, passaram décadas e mais décadas. Foi na de 1990, no contexto dos 500 anos da primeira invasão, quando assistimos ao levantamento do povo Mapuche em toda sua fisionomia. A ocasião dos 500 anos da invasão coincidia com uma expansão das cadeias extrativas no Wallmapu. Uma nova onda colonial de maior intensidade destrutiva contra o território: as cadeias da celulose, as cadeias da exploração mineira, as salmoneiras, o negócio imobiliário, as obras de infraestrutura logística e energética para a pilhagem.

Na atualidade não estamos longe do tipo de narrativas ideológicas da burguesia do século XIX, e das políticas genocidas por parte dos Estados [diz que]nacionais. O governo Gabriel Boric se autodenominou “primeiro governo ecologista de Chile”, com ampla abertura para gerar diálogos de gênero e plurinacionais, mas, na prática, está sendo completamente o oposto. Durante seu mandato aprovou-se uma série de peças legais que atentam contra estas premissas: a ratificação do TPP-114, legislação que impulsiona o capitalismo energívoro propiciando políticas extrativistas; o plano nacional de recuperação de sementes e raças, e muitas outras. No que se refere a legislações que afetam especificamente o Wallmapu, a qualificação de “bárbaros” mudou pela de “terroristas”, criando e reformulando leis para combater o “inimigo interno” de Chile: a lei de usurpação; a lei do “gatilho fácil” ou a nova lei antiterrorista. Circularam também os comentários da ministra do Interior, Carolina Tohá, que vincula os incêndios ocorridos no sul com as reivindicações territoriais do povo Mapuche, negando a responsabilidade das empresas florestais na propagação do fogo. Todas essas condicionantes legitimam o atual estado de exceção constitucional no Wallmapu, militarizando o território, criminalizando a luta mapuche e prendendo pessoas que habitam territórios recuperados.
O governo argentino fez o próprio. No contexto dos incêndios que começaram em janeiro de 2025, provocados pela seca pronunciada, o vento e, provavelmente, pelo interesse de destruir os bosques para forçar a mudança no uso do solo do Puelmapu5, acusa-se o povo Mapuche de terrorista, apontando para ele como agente dos incêndios intencionais dos bosques. Em 3 de fevereiro, a ministra de Segurança Patricia Bullrich denunciou o Lonko6. Facundo Jones Huala como responsável pelas queimadas. Em 8 de fevereiro, o porta-voz presidencial Manuel Adorni anunciou a inclusão da Resistência Ancestral Mapuche (RAM) na lista das organizações terrorista. Inclusão feita no marco do Decreto 918, de 2012, que regulamentou a Lei Antiterrorista de 2011, proposta pelo governo Cristina Fernández. No domingo 9 de fevereiro, as forças conjuntas do Comando Unificado realizaram 12 batidas a Lov localizados na província de Chubut. O governador dessa província, em coletiva de imprensa cuidadosamente encenada7, apresentou as batidas como parte de uma grande operação contra organizações terroristas mapuche.
O combate ao terrorismo e a designação de “terrorista” correm por conta do que o governo de Estados Unidos iniciou depois do atentado às Torres Gêmeas, no dia 11 de setembro de 2001. Os diferentes Estados replicaram a legislação antiterrorista e, particularmente no caso de Chile e Argentina, a utilizou para a construção de um “inimigo interno”, que é o obstáculo para o avanço do extrativismo. Patricia Bullrich vem impulsionando para isso um pacote de leis e ações repressivas que ela chamou e Programa de Segurança Produtiva. O governo Gabriel Boric impulsionou uma série de leis que blindam com repressão a instalação de empreendimentos extrativos e de infraestrutura logística e energética a serviço deles, como a Lei Antitomas, contra a ocupação de terrenos. O atual governo chileno intensificou a militarização do Gulumapu, enquanto o governo argentino põe em ação o Comando Unificado, dispositivo criado durante o governo Alberto Fernández e utilizado para combater as recuperações de terra mapuches, combinando forças repressivas provinciais e nacionais para agir no Puelmapu.
De “bárbaro” a “terrorista”, os estigmas projetados sobre o povo Mapuche precedem, validando ideologicamente, a ação material e violenta contra os territórios. A operação ideológica consiste em isolar, dividir os mapuches. E também separá-lo das outras gentes com quem os mapuches compartilham o território. Dessa maneira, pretendem desarmar àqueles que resistem à pilhagem operada pelas cadeias do capital
Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.
Referências Bibliográficas
CORREA, Martín. La historia del despojo. Niebla: Pehuen e Ceibo, 2021.
DOMEYKO, Ignacio. La Araucanía y sus habitantes. Santiago: Francisco de Aguirre, 1977 (primeira edição 1845).
ECHEVERRÍA, Esteban. “La cautiva”. In: El matadero. La cautiva. Buenos Aires: Plaza Dorrego, 2003.
GUSMÁN, Rui Díaz. La Argentina manuscrita. Buenos Aires: Jorge Sarmiento, 2012.
IGLESIA, Cristina. “Conquista y mito blanco”. In: __________ e SCHAVARTZMAN, Julio. Cautivas y misioneros. Mitos blancos de la conquista. Buenos Aires: Catálogos, 1987, p. 13-92.
MARIMAN, Pablo., CANIUQUEO, Sergio., MILLALEN, José, Levil, Rodrigo. Escucha Winka, cuatro ensayos de historia nacional Mapuche y un epílogo sobre el futuro. Santiago: LOM, 2006.
PINTO, Jorge. De la inclusión a la exclusión. Formación del Estado, la nación y el pueblo Mapuche. Santiago: Universidad de Chile, 2000.
SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo o civilización y barbarie. Buenos Aires: Peuser, 1955.
ZÚÑIGA, Alonso de Ercilla y. La araucana. Madrid: Espasa, 2022.
Referências
- Valeria Becerra Sepúlveda, faz parte da organização Yaguel Lavkenche do território Lavkenche no Wallmapu (territorio Mapuche). Além disso é Graduada em História pela Universidade Arcis de Chile, mestranda do Programa de Desenvolvimento Territorial de América Latina e Caribe ( TerritoriAL).
- Território Mapuche.
- Território Mapuche ao oeste da cordilheira dos Andes.
- Assinado em 2018, esse tratado de livre comércio é o terceiro de maior alcance do mundo. Determina baixa de tarifas de importação para 11 países do oceano Pacífico e interfere na legislação trabalhista, de gênero e ambiental.
- Território mapuche ao leste da cordilheira dos Andes.
- Literalmente, “cabeça”. Autoridade mapuche
- Ver https://www.youtube.com/watch?v=XWSweXkaqXQ