Democracia para quem, cara-pálida?

Lembro-me de um cientista político empertigado, num desses congressos científicos que fui dizendo que as únicas coisas que existem são o mercado e o Estado, seriam a máxima evolução da humanidade. Se quiséssemos mudar alguma coisa, teríamos que melhorá-los. Ponto final. Outra máxima, dessa vez ouvida em vários seminários e debates, é que a democracia que temos deveria ser mantida e protegida, pois por pior que fosse, jamais se compararia ao que foi vivido na ditadura empresarial militar de 1964. Hoje em dia, defender a democracia virou o mantra de todo os que não apoiam o atual governo. Há uma conclamação à formação de uma frente ampla para salvá-la, diante do desmantelamento das instituições, por parte do governo Bolsonaro.

Crescido em Vigário Geral, no Rio de Janeiro. Bairro proletário, se é que alguém lá foi um dia proletário, militando depois em Duque de Caxias, percorrendo a Baixada desde 1984, sempre me perguntei o que afinal é essa tão propalada democracia? Quem é o Estado que a garante? Quem é o mercado que floresce na liberdade da iniciativa desse regime? Vi os biônicos prefeitos e interventores impostos pelos militares se elegerem com a máquina deixada pela ditadura. Quando o regime autoritário se foi, assisti à grana dos grandes grupos econômicos impor seus interesses, à direita e à esquerda. Cartazes de campanha que de madrugada eu colava com cola de farinha de trigo nos postes foram empastelados por carros de som luminosos. Trabalho por paixão trocada por cabos eleitorais pagos. Testemunhei a compra de votos disfarçada pelo tapete de santinhos espalhados nas ruas e calçadas próximas às seções eleitorais. Lembro-me de quando fui ameaçado quando fazia boca de urna por matadores que controlavam um bairro. Pude mudar de rua. Hoje, nem campanha se pode fazer, a não ser que você seja o candidato do miliciano, ou o próprio miliciano candidato.

Quando Lula anunciou que iria conversar com o matador que detinha meio milhão de votos, pois além de ser prefeito, tinha irmão e esposa como prefeitos na Baixada e filha deputada federal, revoltei-me e mandei duzentos e-mails Brasil à fora, lembrem-se, não havia redes sociais. Disse que queimaria minhas bandeiras do PT na praça principal da cidade. Era um gesto desesperado. Ilusão de achar que iria impedir o jogo político que levaria à aliança com o então PMDB, de Sérgio Cabral e Michel Temer. A democracia desmoronou quando o matador/miliciano se transformou em personalidade política. Mas, na verdade, já havia desmoronado, desde sempre, ou melhor, nunca existiu. Indígenas e negros já tinham transformado seus corpos em longas avenidas que cortam o país, para o desfile das autoridades empoçadas em seus cargos eletivos. Militares desfilam com suas divisas e medalhas banhadas pelo sangue que os grupos de extermínio, hoje milícias, derramam ao prestar-lhes o serviço do genocídio de pretos, indígenas e pobres, pois assim a democracia se impõe pela urna manipulada. A esquerda aprendeu o caminho, silenciou-se achando que iria ser aceita no círculo dos notáveis. Acabou na cadeia pelo golpe jurídico-parlamentar-midiático.

A democracia nunca existiu porque aqueles que formam o povo jamais foram protagonistas de verdade. Seus anseios, suas percepções da realidade, sua capacidade criativa e imaginativa, sua integridade cultivada na partilha de um cotidiano desolador, mas recriado pela solidariedade nunca tiveram vez. Os arroubos tecnicistas e tecnocrático, as modelagens de políticas compensatórias, a violência nua e crua tomaram o seu lugar. Democracia é apenas um simulacro. Uma panaceia que propagaram qual cloroquina, ineficaz contra um vírus que dizima, mas defendida pelos curingas da vez. Lembro-me na campanha eleitoral de 2016, quando fui candidato a prefeito pelo Psol em Duque de Caxias. Sim, isso mesmo. Sempre tive esse instinto suicida. Mas até agora fui incompetente. Estou vivo. Decidi, junto com um amigo, percorrer a pé um dos principais redutos de milicianos da cidade. Era ou não era suicídio? Passei manhã e tarde conversando com pessoas, em suas casas e nas ruas. Percebi que havia diálogo, que se eu fosse mais vezes, conseguiria votos. Mas sabia que retornar ali poderia custar caro. Os donos do lugar não permitiriam. Por traz dos muros, em cada casa, havia uma história oculta, o domínio dos que vendiam terrenos, aterros, casas, água, gato net e uma lista crescente de bens e serviços para eles.

Democracia, assim, é para os caras-pálidas, com suas faces brancas não de maquiagem, mas de tanto lavarem o sangue daqueles que fuzilam diariamente a queima roupa. O curinga sentado em seu trono carregado pelo séquito, apenas corporifica o que sempre vivemos. Ele apenas revela o que sempre esteve lá. Não o suportamos, pois não queremos ver o que somos. O odiamos para não ver nosso inconsciente sanguinário que desfila no bloco de carnaval, pela manhã e, à noite, corta com facão a mulher indígena ao meio. O desprezamos para não lidar com a ideia de que quando a esquerda esteve no poder se igualou a ele. Trocou a vida dos mais pobres por colares e missangas de uma distribuição de renda que jamais ouviu os que eram prisioneiros de um Estado assassino e de um mercado financiador de matadores.

O sorriso largo, pintado de vermelho, na face branca maquiada, retorce o canto dos lábios, num singelo escárnio. Sabe que os que o colocaram lá o manterão: militares, judiciário e congresso. Nas ruas, a decomposição social alcança a putrefação da verdade que, insepulta, vaga morta-viva. As carnes mais baratas do mercado: indígenas, negros, mulheres e crianças caminham sob o sol da manhã, de uma luz intensa, em pleno inverno seco. Eles procuram os candidatos para se alistarem no exército eleitoral de suas campanhas. Em época de pandemia e de crise econômica, sabem que o preço do seu trabalho será reduzido. A venda do voto também renderá pouco. O candidato agencia suas vítimas como o abutre seleciona sua carniça. Empregos na prefeitura, asfalto, consultas médicas e exames em hospitais públicos, barraca de camelô na calçada do centro ou na feira, cesta básica, remédio, terrenos ilegais comprados a prestação, vagas em escolas públicas, promessas de contrato na prefeitura ou em gabinete, tudo isso se transforma na grande bacia das almas onde a democracia se afoga juntamente com a esperança. O curinga sorri enquanto de sua lapela uma flor esguicha água em nossos olhos. O que nos escorre na face não são lágrimas. É apenas a encenação de um sofrimento que não temos. Afinal, o picadeiro-Nação precisa de nós. O que seria do show sem nosso aplauso. Essa democracia desejada a qualquer ditadura que nos reconforta com leis justas e legítimas na alternância do poder. Nossas mãos limpas, nosso sono sagrado, por sobre os ossos enterrados nos porões da pátria livre. Nos alegramos com vitórias em votações no Congresso, quando curinga e seus malabaristas fazem piruetas e nos brindam com a manutenção de conquistas. Mas lá na ponta, essa conquista é apropriada novamente pelos que a concederam. Aquela moeda que some na mão do mágico e reaparece na orelha de alguém do público, retirada pela mão do prestidigitador. Aquele voto conquistado pela amabilidade do matador.

José Cláudio Souza Alves

Professor Universitário, doutor em Sociologia. Autor do livro: "Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense"

2 comentários sobre “Democracia para quem, cara-pálida?

  • 30 de julho de 2020 at 9:47 pm
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    Quem tem juízo, a muito deixou a “pátria amada mãe gentil”
    Obs: nunca existiu esquerda no Bra71l(ou seria Bra17l?)
    Como dizia Leonel: pt é uma galinha que cacareja pra esquerda, mas bota o ovo pra direita.

    Continue o bom trabalho meu caro…

    Att;

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    • 31 de julho de 2020 at 12:53 am
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      José Cláudio, sempre brilhante em suas reflexões.

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