Derrotar o neofascismo e a conciliação de classes

Vamos em um grupo cerrado por um caminho íngreme e difícil, de mãos fortemente dadas. Estamos cercados de inimigos e temos de caminhar sob seu fogo. Estamos unidos por uma decisão tomada livremente, justamente para lutar contra os inimigos e não cair no pântano vizinho, cujos habitantes desde o início nos condenam por termos constituído um grupo à parte e por termos escolhido o caminho da luta e não o caminho da conciliação.

Lênin, em O que fazer?

Estamos sediados em um período histórico marcado por uma profunda derrota estratégica. As massas populares e a classe trabalhadora não conseguem desvelar a cena política da atual quadra histórica e sucumbem diante do projeto da direita e até do neofascismo, que, em última instância, se apresenta ridiculamente como antissistêmico. Existe no tempo presente uma sedução neofascista sobre a classe trabalhadora (que foi devastada pelos ajustes fiscais) e setores empobrecidos da população.

Em grande parte da Europa, Índia, EUA etc., o neofascismo tem crescido e fincado raízes obscurantistas e nefastas para se contrapor a qualquer cultura progressista, que, de forma ainda muito tímida, postula defender os direitos da classe trabalhadora, levando em consideração seu novo perfil: populações negras, periféricas, mulheres, povos originários e comunidades LGBTs. Isso se comprova quando a direita e o neofascismo ganham espaço político diante da capitulação de setores progressistas e sociais-democráticos à lógica do Estado mínimo.

Mas não é tão somente nesses territórios anteriormente citados que a direita e o neofascismo ameaçam aquilo que definimos como progressista para a humanidade. No Brasil, após a derrota eleitoral do bolsonarismo, mesmo com o mínimo patamar de votos, o governo da coalizão burgo-petista segue o trágico caminho da capitulação à ideologia neoliberal da austeridade fiscal. Essa política sabota o avanço das lutas populares e proletárias, trazendo reforço ao discurso da extrema direita de perfil neofascista ou não.

Com o fim do primeiro ano do terceiro governo Lula, as indicações da luta política afirmam que nem a tradicional mediação da conciliação de classes lulista teve espaço em 2023. O projeto burguês venceu sem a mínima presença de qualquer contenção da social-democracia tardia ou de qualquer ato mais sério do governo petista. É relevante citar, para que não paire dúvidas, que não é o governo que vai representar os interesses da classe trabalhadora. Contudo, no discurso difuso ejaculado pelo PT, PC do B e segmentos importantes do PSOL perpassa a noção de que o governo de Lula teria também esse papel.

A coalizão burgo-petista conformou-se serenamente no poder. Por um lado, as forças da centro-direita e a direita no parlamento estão muito confortáveis com a postura do governo e sua forma inerte de fazer política. No outro canto do governo, forças sociais democráticas fingem que o país está avançando e que o principal é ganhar eleições. Mas também consideram, para efeito de informação na esquerda da ordem, que determinantes políticas minimamente focalizadas são importantes para o desenvolvimento de seus projetos político-eleitorais e suas relações com o povo…

A forma inerte com que o governo do PT manuseia o fazer política e sua incapacidade de se dirigir ao povo para questionar os entraves feitos pela direita aliada no parlamento têm provocado enormes desgastes no conjunto da população. A opção tática da base social-democrática é não fazer a disputa. Portanto, o que tem sido a política do governo da coalizão burgo-petista? Vamos analisar alguns poucos pontos. 

O governo Lula avançou na oferta de espaços para controle da direita dentro da estrutura do Estado (ministérios, CEF, autarquias, cargos comissionados em profusão). No entanto, essa condescendência fisiológica no balcão de negócios do parlamento não tem garantido ao governo qualquer apoio mais forte nas votações. O papel de primeiro-ministro de província exercido pelo presidente da Câmara dos Deputados, diante da incapacidade do governo, tem colocado em risco o país e facilitado a ação política do neofascismo. 

Através do aliado Artur Lira, o projeto burguês das contrarreformas tem avançado no parlamento (reforma administrativa, possibilidade de nova reforma da previdência, etc.). Toda uma operação articulada de ataques aos interesses públicos tem avançado (marco temporal, política de agrotóxicos, etc.). Algum muro de contenção, organizado pelos instrumentos do PT, CUT, CTB, PC do B e segmentos governistas do PSOL, foi levantado?

A relação do governo com a direita no parlamento (vulgarmente chamada de Centrão) tem imposto derrotas à classe trabalhadora e ao povo em geral. O melhor exemplo dessa relação é o orçamento aprovado para 2024, que, para preservar os interesses do Centrão, sofreu profundos cortes.

A violência dos cortes fortalecerá o discurso da extrema direita e o neofascismo quando o caos social se apresentar. Foram cortados 6,3 bilhões nas obras do PAC; 4,1 bilhões no projeto Minha casa, Minha vida; 4,9 bilhões no geral do orçamento dos ministérios. O salário mínimo desceu do projetado R$ 1.421,00 para R$ 1.412,00, como se R$ 9,00 não fizesse diferença para essa faixa de trabalhadores/as.

A saúde perdeu 851 milhões, dos quais 336, 9 milhões eram para a farmácia popular. Em um país de vida urbana caótica e acidentada, o ministério das cidades perdeu 336 milhões, dos quais 49 milhões eram para a defesa civil (mesmo com os desastres climáticos que estamos assistindo regularmente pela televisão).  

A educação foi atingida em 320 milhões, dos quais 40,3 milhões para bolsas no ensino superior e 25,9 milhões para os livros didáticos foram cortados. Tudo isso mesmo com o rotineiro discurso do presidente de que educação não é gasto e sim investimento.

Toda essa lógica de corte social e humanitário, em completo desrespeito ao conjunto dos interesses nacionais e as necessidades do povo em geral, o orçamento contemplou – destinando, pasmem, 53 bilhões para emendas parlamentares (foco ad infinitum de corrupção e em ano de eleições municipais) e quase 5 bilhões para o fundo eleitoral deste ano (cujo maiores beneficiados são o PL e o PT). 

Mas, no quadro da atual política do governo, ainda existem cenários de muitas preocupações. Apesar de os militares, enquanto burocracia de Estado, serem historicamente golpistas no Brasil, o governo Lula, mesmo após o 08/01/2023, começou a premiá-los com cargos no governo e benesses. 

Existe um golpismo encastelado nas forças armadas. A forma como a memória do golpe burgo-militar de 1964 é tratada pelo governo estimula a ação subterrânea dos golpistas. Não existe enfretamento ao rebotalho militar golpista. São necessárias ações que modifiquem essa realidade. Precisamos mudar nomes de prédios e logradouros públicos, devemos recriar a comissão de mortos e desaparecidos, é urgente rever a lei da anistia. Por fim, em última instância, é necessário enfrentar o neofascismo nas forças armadas.

As últimas informações sobre a relação do neofascismo bolsonarista com a ABIN, e a cumplicidade desta última com o GSI, devem servir de exemplos para sérias medidas do governo. As forças da esquerda revolucionária, dos segmentos progressistas e democráticos devem denunciar no Brasil e no mundo o papel dos neofascistas dentro dos órgãos de segurança. E, para além disso, é importante que o governo Lula corte relações com os setores de segurança de Israel, que estimulam os serviços de espionagem no Brasil. Esses segmentos sempre estão a serviço do neofascismo e da extrema direita.

Enfrentar nas ruas o neofascismo é a lógica que deve mobilizar a esquerda revolucionária, suas organizações e aliados. Hoje, se faz necessário constituir um amplo instrumento de frente única desses setores político-sociais. Mas não podemos deixar de compreender que, onde a social-democracia capitula à ordem da ideologia neoliberal da austeridade fiscal, a classe trabalhadora e segmentos populares são seduzidos pelo projeto da extrema direita e do neofascismo. 

O mapa da desmobilização da classe trabalhadora e dos setores populares deve ser a preocupação das forças políticas e sociais que querem colocar em movimento a classe que vive da venda de seu trabalho. Ter palavras de ordem que atinjam a subjetividade dos subalternos, organizar um programa mínimo que consiga derrotar o neofascismo e superar a conciliação de classes, esse deve ser o papel fundamental da vanguarda, para que, a partir de dentro da contrarrevolução, possa construir os caminhos da revolução brasileira.

Milton Pinheiro

Cientista Político, professor de história política da UNEB, integra os conselhos editoriais de várias revistas marxistas, é pesquisador na USP. Autor/organizador de oito livros, entre eles: "Ditadura: o que resta da transição"

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