Desafios da extensão universitária em tempos de barbárie educacional

A resolução do MEC que afirma que as atividades de extensão devem compor, no mínimo, 10% do total da carga horária curricular estudantil dos cursos de graduação foi uma vitória dos movimentos sociais e pesquisadores-extensionistas. Lembro que na época que foi discutida foi realizada uma grande movimentação pelos professores extensionistas e pró-reitores, e em menor medida pelos movimentos sociais para tentar colocar a extensão de fato na agenda das universidades públicas. 

A brecha aberta na disputa pelo Estado e consequentemente no projeto de universidade pública de alguma forma colocou com mais força na agenda decisória a necessidade de pensar com mais carinho o papel da extensão. 

Ao mesmo tempo que abriu uma brecha, nós os mais desconfiados e céticos percebíamos que, na ausência de grandes transformações concomitantes no mundo do trabalho, aquela pequena vitória formal poderia perder o seu sentido. 

Dentro dos muros das universidades a resolução viria a se tornar um “abacaxi” para reitores, pró-reitores, coordenadores de curso, servidores técnico-administrativos e docentes, principalmente em universidades com pouca tradição extensionista e concursos congelados.

Isso porque a resolução exige uma reformulação parcial ou radical da grade curricular, que poderá ser acomodada de forma burocrático-formal, apenas para embutir a carga horária de extensão, produzir transformações medianas ou induzir a uma reformação radical na grade curricular e no papel da universidade numa sociedade extremamente desigual e separada por classes como a brasileira. 

Em Universidades como USP, UNESP e UNICAMP, tradicionalmente voltadas para a pós graduação e com o peso da gigante FAPESP nas costas, a implementação da lei é uma bela oportunidade para mudar nossas universidades e de fato estimular o pé manco da extensão a andar. 

Em geral os coordenadores de curso “chiam” – e com certa razão – porque muitos professores se aposentam, poucos são contratados e a carga horária dos cursos está cheia, no seu máximo. Chiam também porque não sabemos fazer extensão, porque nossos cursos são mais teóricos e porque o contato com a prática já se dá via estágios e outras atividades. 

Muitos desses acreditam que já existe extensão suficiente e que não é preciso mudar. Também temos aqueles que não se preocupam muito “com quem estender”, isto é, quem são nossos interlocutores, se empresas privadas ou movimentos sociais e sistemas públicos de saúde, educação, etc.

Para piorar, as universidades tendem a ser inerciais, acomodando negativamente as alterações que vem do governo federal ou estadual. Ao mesmo tempo, é preciso destacar que o avanço do neoliberalismo e do negacionismo asfixiam nossa existência e o ambiente para o florescimento de pesquisa engajada na resolução radical de problemas.

O distanciamento cada vez maior entre países centrais e dependentes, o aumento da concentração de renda, a explosão da miséria social com a Covid-19, onde desemprego, subemprego chegam em níveis estarrecedores e nos obrigam, enquanto pesquisadores públicos, a mudar radicalmente a nossa agenda de ensino, pesquisa e extensão, sem deixar de nos protegermos às investidas neoliberais e negacionistas. Some-se a isso a exportação de commodities e produção de alimentos envenenados, a multiplicação de sem teto, analfabetismo e destruição das parcas conquistas do sistema público de saúde. Problemas clássicos do Brasil, que foram potencializados pela barbárie neoliberal e pelo irracionalismo que reina em Brasília. Todas essas questões sociais colocam para o complexo público de ensino superior e pesquisa desafios hercúleos num ambiente de barbárie social e educacional. 

Certamente as universidades não podem sozinhas resolver estes problemas, mas podem sinalizar a melhor forma de solução dos mesmos, a partir de respostas radicais que são dadas em pequena e média escala.

Para isso, a extensão deve se diferenciar do assistencialismo e do paternalismo. Deve escapar da “prática pela prática”, do “botar a mão na massa” sem um propósito muito bem definido. 

Na sua essência a extensão resgata a velha unidade entre teoria e prática que em algum momento foi quebrada pelo pensamento pós-moderno. Lembremos que a unidade entre teoria revolucionária e ação radical está na raiz do pensamento materialista e de correntes teóricas à esquerda (Novaes, 2019).

Como a extensão é orientada pela resolução de problemas, sua forma de juntar teoria com prática necessariamente é “interdisciplinar”, envolve a construção de um conhecimento por excelência totalizante, sem caixinhas, sem fragmentação, típicas dos currículos vigentes em nossas universidades (Novaes, 2018). 

A extensão nos “balança” – tanto professores como alunos – e nos instiga a deixar de lado o conhecimento especializado e esquartejado. Ela pode nos levar a apreensão da essência dos fenômenos sociais e portanto ao abandono da percepção da realidade tal como ela aparece. 

A forma mais simples que alguns pesquisadores-extensionistas têm adotado (e raríssimas universidades) é a fórmula da  “Universidade Balcão”: pergunta-se aos movimentos sociais e a sociedade civil em geral o que ela “precisa” e a universidade “atende”. Algumas universidades-balcão conseguiram resultados satisfatórios, quando trabalharam para os movimentos sociais, para a melhoria dos serviços públicos de saúde, educação, planejamento urbano, em pequena ou média escala.

Mas é preciso lembrar que a própria concepção de Universidade Balcão é pouco dialógica, é unidirecional, e de alguma forma paternalista, pois cai na visão simplista: “o povo demanda, as prefeituras demandam e nós damos as respostas”. A universidade balcão corre o grande risco de se tornar paternalista, estando acima do povo, e não ao lado do povo. A própria palavra extensão foi questionada por Paulo Freire, que completaria 100 anos. Estender é levar de um lugar para outro (Freire, 1983).

São inúmeras as experiências extensionistas na América Latina que podem ser destacadas como experiências avançadas ou exemplares. Experiências ligadas à questão agrária, a questão urbana, a questão de gênero, a questão ambiental, étnica e sanitária, dentre tantas outras (Novaes, 2018).

Elas incidem radicalmente na formação dos alunos e obviamente nas pesquisas. Aquilo que as pedagogias do capital – especialmente a pedagogia das competências defende – isto é, a formação de jovens com atitudes “pró-ativas”, que saibam “trabalhar em equipe”, levantar problemas, resolver problemas, num mercado de trabalho cada vez mais instável e com diplomas menos rígidos e delimitados, é feito pela extensão. E melhor, é feito pela extensão com uma perspectiva crítica, pois leva os alunos a conhecer melhor a realidade, de forma totalizante –  e com uma atuação intencional, planejada e consciente na realidade tendo em vista a sua radical transformação. 

Adicionalmente, a extensão ajuda a quebrar todos os preconceitos que alunos das camadas médias (que em geral tiveram casa, energia elétrica, pais com renda estável) têm em relação ao povo-massa. A extensão também ajuda alunos das camadas populares que conseguiram seu lugar ao sol a quebrar seus preconceitos com o povo que não teve “oportunidades”. Nesse sentido, ela pode ajudar nossos alunos a deixar de ser coxinhas e se engajar nas lutas pela emancipação do povo. 

Referências

FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 8ª edição.

NOVAES, Henrique Tahan. Palestra proferida em homenagem aos 100 anos da Reforma de Córdoba. Córdoba, Universidade de Córdoba, 2018.

NOVAES, Henrique Tahan. Reatando um fio interrompido – a relação universidade movimentos sociais na América Latina. Marília: Lutas anticapital, 2019. 2ª edição. 

NOVAES, Henrique Tahan. Da universidade necessária à universidade para além do capital. Marília: Oficina Universitária/Cultura Acadêmica/Lutas anticapital, 2021, no prelo.

Henrique Tahan Novaes

Professor da FFC e do PPGE Unesp, autor de “O fetiche da tecnologia - a experiência das fábricas recuperadas” entre outros títulos, pesquisado da área produção destrutiva, cooperação, autogestão, agroecologia e escolas de agroecologia.

Um comentário sobre “Desafios da extensão universitária em tempos de barbárie educacional

  • 27 de março de 2024 at 11:05 am
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    o texto oferece uma análise profunda e critica sobre o papel da extensão universitária no contexto brasileiro, especialmente após a resolução do MEC que estabeleceu uma carga horária mínima obrigatória para atividades de extensão nos cursos de graduação.

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