Desventuras da Unidade Popular e dilemas da revolução na América Latina

“Quem luta pode perder, quem não luta, já perdeu”.
B. Brecht

O trágico desfecho do governo da Unidade Popular (UP) liderado por Salvador Allende constitui um divisor de águas na história das sociedades latino-americanas. A destruição do movimento socialista mais vigoroso e organizado do continente colocou uma pá de cal na política de reformas que visava a superação das bases econômicas, sociais e culturais que perpetuavam o subdesenvolvimento e a dependência externa na região. A derrota da revolução chilena conjuga-se com transformações de grande envergadura provocadas pela crise estrutural do capital, que encerrou o longo ciclo de desenvolvimento capitalista do pós-guerra e deu início ao processo de globalização dos negócios impulsionado pelas grandes corporações transnacionais. A exaustão do fordismo, a crise do Estado de Bem-Estar Social e a falência do keynesianismo inauguraram um período de ofensiva permanente do capital contra o trabalho e as políticas públicas.[1]

O novo momento histórico encerrou definitivamente a possibilidade de uma solução positiva, de caráter democrático, republicano e soberano, para o processo de formação dos Estados nacionais latino-americanos que se arrastava desde a independência. Ao instalar o terrorismo de mercado como razão de Estado, a ofensiva neoliberal em escala global – que teve na ditadura militar do general Augusto Pinochet um laboratório macabro – condenou os povos da região às agruras de um processo de reversão neocolonial que solapou o projeto de industrialização nacional, reforçou a segregação social e comprometeu irremediavelmente a soberania dos Estados nacionais. A cristalização do poder burguês como uma contrarrevolução permanente consolidou a relação inextrincável entre acumulação de capital e barbárie na América Latina.

Chile é parte de um todo

Posto em perspectiva, com o privilégio de meio século de distância, o mito da “excepcionalidade” da sociedade chilena no contexto latino-americano, difundido tanto pelos que defendiam a revolução com “vinho tinto e empanada” quanto, posteriormente, pelos arautos da contrarrevolução neoliberal, dissipa-se no turbilhão do movimento histórico.

A fé inabalável dos socialistas chilenos na solidez das instituições democráticas revelou-se uma quimera. Na hora decisiva, quando a luta de classes alcançou o ponto de ebulição, as forças armadas, convocadas pela burguesia, seguiram a cartilha de suas congêneres do Cone Sul com requintes de violência e crueldade. Renegando as juras de lealdade ao presidente eleito, rasgaram a Constituição sem pestanejar e impuseram o terrorismo de Estado como meio de ajustar a sociedade chilena aos imperativos do neoliberalismo.

Décadas depois, no início dos anos 1990, o esforço dos dirigentes da “Concertación” de diferenciar o Chile como paraíso do grande capital, fadado a um destino único na ordem global, também se verificou uma pretensão infundada, útil apenas para racionalizar os crimes da ditadura e justificar a continuidade do modelo econômico e político herdado de Pinochet. Com o avanço da globalização, o padrão de acumulação liberal-periférico espraiou-se por todos os rincões, aprofundando a especialização regressiva da América Latina na divisão internacional do trabalho e levando a mercantilização da vida ao paroxismo.[2]

Ao fim e ao cabo, a particularidade chilena ficou reduzida ao fervor com que parcela significativa da sociedade aderiu, primeiro, ao projeto reformista que colocava a necessidade da revolução democrática e nacional na ordem do dia e à crença supersticiosa na capacidade de impulsionar o desenvolvimento nacional e o bem-estar social pela ação do Estado, e, em seguida, após a derrota da revolução chilena, assumiu a posição simetricamente oposta de adesão incondicional à contrarrevolução neoliberal e à fé cega nas leis do mercado como panaceia para os problemas econômicos e sociais da população.[3]

Para além das especificidades de cada formação social, a história da incorporação da América Latina ao circuito de acumulação de capital em escala mundial revela que a lei do desenvolvimento desigual e combinado condena – para o bem ou para o mal – os povos da região a um destino comum. As épocas históricas encadeiam-se, sincronizando o movimento de todas as formações sociais latino-americanas com o desenvolvimento do sistema capitalista mundial. As ondas históricas que condicionaram a penetração do capitalismo na região são conhecidas: acumulação primitiva de capital, mercantilismo e colonização; revolução industrial, capitalismo concorrencial, liberalismo e independência nacional; expansão do mercado mundial, capitalismo monopolista, imperialismo e neocolonização; imperialismo total, keynesianismo, internacionalização dos mercados internos e dependência; crise estrutural do capital, neoliberalismo e reversão neocolonial. Desvinculada do todo, a história do Chile perde sentido.[4]

A revolução chilena deve ser vista, portanto, como um capítulo da revolução latino-americana, e esta, por sua vez, como um ato da revolução internacional. Pelo elevado grau de organização e mobilização dos trabalhadores, pela força dos partidos que impulsionavam a Unidade Popular, pela relativa estabilidade das instituições do Estado, pelos contornos bem definidos da luta de classes, com destaque para o modo particularmente agudo e apaixonado de manifestação das diferentes correntes ideológicas, assim como pelo desfecho trágico que sepultou as enormes esperanças suscitadas pela via pacífica para o socialismo, o Chile destaca-se no contexto latino-americano com um caso emblemático das armadilhas e dos desafios da luta dos trabalhadores contra a barbárie capitalista em sociedades de origem colonial presas ao circuito de ferro do capitalismo dependente.

A queda de Allende

A derrota da revolução chilena consumou-se no dia 11 de setembro de 1973, quando, com o palácio de La Moneda em chamas, a população tomou conhecimento da morte do companheiro presidente.[5] A sorte do governo Allende, porém, já havia sido definida anteriormente, quando a “revolução vinda de cima”, liderada pela Unidade Popular, estritamente dentro da ordem e da lei, foi atropelada pela “revolução vinda de baixo”, impulsionada pela iniciativa auto-organizada de trabalhadores do campo e da cidade, da população pobre das periferias e dos indígenas mapuches do sul do Chile.[6]

As ações de ocupação de latifúndios, terrenos urbanos ociosos e fábricas, começadas espontaneamente no final dos anos 1960, como reação às promessas fraudadas da “revolução com liberdade” de Eduardo Frei, ganharam ímpeto avassalador após a vitória de Allende em 1970. Em meados de 1972, quando o governo da UP já se encontrava em franca defensiva, decidido a arrefecer o processo de reformas, a formação de cordões industriais territoriais organizados por trabalhadores, por fora das estruturas sindicais tradicionais, com o objetivo de acelerar a socialização das fábricas, aprofundou o descompasso entre os dois processos. Os métodos revolucionários do poder popular em plena expansão solapavam as premissas do reformismo radical do governo da UP.[7]

O temor da plutocracia chilena de que o salto de qualidade na organização e mobilização dos trabalhadores pudesse imprimir ritmos e intensidades às transformações sociais que ultrapassassem as fronteiras da institucionalidade burguesa levou a polarização da luta de classes a extrapolar os limites do pacto social que sustentava a democracia das elites que perdurava – não sem importantes contratempos – por quase quatro décadas.[8] A via chilena para o socialismo enfrentava sua hora da verdade. A disputa política deslocava-se das negociações partidárias e dos salões parlamentares para o confronto direto e aberto nas ruas.

A guerra civil, com suas leis próprias de extermínio do inimigo, instalava-se definitiva e irreversivelmente como a lógica de resolução da crise política que polarizava a sociedade. O choque entre as classes antagônicas passava às vias de fato, sem qualquer anteparo legal que pudesse conter a violência da força bruta no inevitável ajuste de contas entre revolução e contrarrevolução. Premida pela urgência de evitar a autonomização do poder popular, a burguesia unificou-se em torno da necessidade inescapável de lançar mão de um golpe de Estado como único meio de frear o avanço da revolução.[9]

A controvérsia sobre as causas da derrota

Ao explicitar a teoria e a prática que orientaram a Unidade Popular, o debate sobre as causas da derrota da via chilena para o socialismo adquire uma importância decisiva para a reorganização da luta dos trabalhadores contra a barbárie capitalista em todas as partes do globo. Sob o impacto político e ideológico do golpe militar, as interpretações polarizaram-se fundamentalmente em torno das razões táticas que orientaram a política da Unidade Popular e as ações do governo Allende.

A ala moderada da UP, liderada por Allende, com o apoio do Partido Comunista, do Partido Radical e do MAPU-Gazmuri, atribuiu a derrocada a um problema de engenharia política. Sem questionar a arquitetura da via pacífica para o socialismo, esses setores imputaram a queda do governo aos equívocos da própria UP. A responsabilidade política foi jogada nas costas dos esquerdistas. A radicalização “excessiva” das reformas teria tensionado o sistema político para além do permitido pela correlação de forças, interna e externa, e provocado desequilíbrios econômicos desnecessários, com consequências desastrosas sobre o cotidiano da população e sobre o grau de vulnerabilidade do país diante das pressões do imperialismo. O sectarismo de setores da UP teria bloqueado a possibilidade de acordo com o Partido Democrata Cristão. O terrorismo verbal teria fomentado infantilmente o pânico entre as classes médias e a burguesia, acirrando as animosidades políticas. A guerra fratricida entre os partidos da UP teria prejudicado a unidade de ação do governo e sua capacidade de responder aos desafios da conjuntura econômica e política com a agilidade e a flexibilidade exigidas pela situação. Por fim, a incapacidade da UP de subordinar as mobilizações que brotavam espontaneamente de baixo para cima às exigências do processo de negociação parlamentar, muitas com o apoio de setores mais radicalizados da própria UP, teria comprometido a quinteessência da estratégia da transição para o socialismo com “vinho tinto e empanada” – a necessidade de adequar o ritmo e a intensidade das reformas ao equilíbrio de forças no parlamento.[10]

Sem contestar os fundamentos programáticos que embasavam a via chilena para o socialismo, a ala radical da UP, composta pela direção do Partido Socialista, pela Esquerda Cristã e pelo MAPU-Garretón, fez a avaliação oposta. A responsabilidade da derrota foi atribuída aos setores moderados da coalisão. O problema fundamental da UP não teria sido o de ter impulsionado as transformações sociais para além do que as instituições democráticas suportavam, mas o de ter ficado muito aquém do que seria necessário para as exigências de uma situação revolucionária que polarizava a luta de classes entre polos inconciliáveis. Para além de eventuais sectarismos que pudessem ter dificultado as negociações com os partidos de centro, das querelas inevitáveis que envolvem toda disputa política e dos exageros inevitáveis em todo processo de transformação social, o equívoco fatal do governo Allende teria sido sua fé inabalável na solidez das instituições democráticas. Presa a um arraigado cretinismo parlamentar, a UP não teria tido a flexibilidade necessária para abandonar uma tática que se revelava absolutamente inviável nem a ousadia indispensável para improvisar a defesa do governo por meios extrainstitucionais – única alternativa que poderia ter dado alguma possibilidade de vitória às forças populares. A incapacidade de fundir a “revolução vinda de baixo” com “a revolução vinda de cima” e de organizar uma insurreição preventiva que barrasse a ofensiva golpista teria sido o pecado capital que explicaria o desfecho calamitoso da via chilena para o socialismo. A desconfiança do governo Allende em relação à expansão do “poder popular”, pelo temor de que o vendaval revolucionário pudesse atropelar as instituições e constituir-se como poder paralelo, teria fraturado o movimento revolucionário no momento em que a contrarrevolução se unificava. A insistência obsessiva numa solução institucional para a crise política, quando eram gritantes as evidências de que a burguesia e o imperialismo conspiravam abertamente para o golpe de Estado, deixava as forças populares totalmente impotentes para enfrentar a contrarrevolução.[11]

Não obstante a virulência da derrota sofrida, os partidos que compuseram a Unidade Popular não questionaram o programa e a interpretação histórica que fundamentavam o caminho pacífico para o socialismo.[12] Entre moderados e radicais prevaleceu o senso comum de que, em linhas gerais, a teoria da revolução chilena era correta. O espírito reinante foi sintetizado de forma lapidar por Sergio Bitar, ex-ministro da Mineração de Allende: “afirmar que o fracasso da experiência vivida no Chile já estava predeterminado, em virtude da impossibilidade de caminhar pela via institucional, tira todo o interesse da análise, além de ser inexato. Não explica, também, nem a vitória eleitoral, nem os três anos de governo. Nossa afirmação inicial é de que o golpe de Estado no Chile não estava predeterminado e, portanto, o desenlace não era inevitável. Mais ainda: no início as condições eram favoráveis para implementar o programa da UP em suas linhas gerais. Ao iniciar-se, o processo era, indubitavelmente, viável”.[13]

Mesmo reconhecendo importantes lacunas no programa, como, por exemplo, a leitura equivocada sobre a natureza do Estado chileno e a ausência de uma reflexão concreta sobre o papel da violência na revolução, e admitindo o absoluto despreparo da UP para enfrentar a ofensiva contrarrevolucionária que avassalou os trabalhadores e as organizações de esquerda, Carlos Altamirano reivindicou o acerto da via gradual para o socialismo sem maiores ponderações. Em sua interpretação sobre as razões do fracasso, ele afirma: “Hasta el advenimiento del Gobierno Popular en 1970 el problema de las vías de acesso al poder parecía tener un carácter más bien adjetivo. El desenvolvimiento seguro y constante del movimiento popular en los marcos de una institucionalidad liberal, aparentemente amplia y flexible, tendia a hacer irrelevante y académica una discusión profunda del tema”.[14]

Inadequação de meios e fins

O balanço crítico da via chilena para o socialismo permanece, entretanto, incompleto. O mito da transição pacífica para o socialismo, por dentro das instituições do Estado burguês, perdura sem questionamentos pelas principais forças políticas herdeiras da Unidade Popular. O enigma da derrota não foi decifrado. Transformado em prócer da pátria, com direito a estátua em praça pública na frente do palácio onde foi imolado, Salvador Allende foi convertido em herói nacional. Um herói improvável. Seu legalismo a qualquer prova é reivindicado e enaltecido pelo establishment como um exemplo a ser seguido, enquanto sua radicalidade permanece como anátema que não pode sair da penumbra.[15]

Ainda que o desfecho trágico da via pacífica para o socialismo tenha sido diretamente condicionado pelas ações e omissões das classes sociais, movimentos sociais, partidos políticos e dirigentes de carne e osso que se digladiavam no terreno concreto da guerra do Chile, com destaque para a impotência das forças populares diante da ação conspirativa do imperialismo norte-americano e da felonia das forças armadas lideradas pelo General Pinochet, a derrota da revolução chilena não pode ser reduzida aos problemas táticos que condicionaram a ação do governo Allende nem à mera falta de um dispositivo militar para combater o golpe de Estado.

Posta em perspectiva, a tragédia da revolução chilena originou-se muitas décadas antes da chegada de Allende ao poder, quando as organizações políticas e sindicais da esquerda socialista foram enredando o programa, o método, a estratégia e os instrumentos de luta dos trabalhadores inextrincavelmente à institucionalidade burguesa, restringindo o horizonte do movimento socialista aos marcos do parlamentarismo e ao senso comum da opinião pública.[16] Na ausência de uma interpretação histórica baseada nas contradições que impulsionavam a transição do Chile colonial de ontem para o Chile nação de amanhã, o programa da UP subestimou as dificuldades e superestimou as possibilidades da revolução chilena.

Buscando soluções que não estavam inscritas na realidade, o governo popular ficou muito aquém do exigido pelos desafios históricos. A generosa experiência da revolução chilena liderada por Allende demonstrou da pior maneira possível que a transição harmônica para o socialismo com vinho tinto e empanada era um projeto romântico inalcançável.

Rejeitando de antemão a possibilidade da guerra civil como desdobramento inexorável da polarização da luta de classes, a UP ficou completamente impotente para enfrentar a contrarrevolução. Contra o predicado de que a violência é a parteira da história, na contramão das lições dadas pela trágica experiência da Comuna de Paris, ignorando os exemplos da Revolução Russa, da Revolução Chinesa e da Revolução Cubana, desconsiderando os recorrentes massacres das rebeliões populares na história do Chile e abstraindo as características particularmente violentas do imperialismo de seu tempo, a via chilena para o socialismo imaginava que seria possível uma formação social subdesenvolvida, de origem colonial, passar incólume pela prova de fogo de uma revolução democrática e nacional, de conteúdo fortemente anticapitalista, em plena guerra fria, no quintal dos Estados Unidos, desarticulada de um movimento socialista internacional, com a União Soviética já em avançado estado de entropia.

O limite da práxis que orientava a via chilena para o socialismo fica evidente na negação do papel estratégico do poder paralelo como único meio de sobrepujar o Estado burguês e garantir a conquista do poder pelas classes subalternas. A fé inabalável na possibilidade de conduzir o processo de transformação social a partir das instituições estabelecidas fica patente na concepção da UP de que o poder popular que se auto-organizava deveria subordinar-se às razões de Estado do governo Allende. Nisso, moderados e radicais coincidiam. A UP não poderia abrir mão do controle absoluto sobre as rédeas do processo de mudança. Os dirigentes não poderiam ser atropelados pelas massas insurrectas. Aos trabalhadores da fábrica Yarur, tomada pelos funcionários em abril de 1971, Allende explicitou sua dificuldade em aceitar o caráter relativamente espontâneo das grandes viradas históricas: “Los processos (revolucionários) exitosos se hacian con una dirección férrea, no al lote. Las masas no podian sobrepassar a los dirigentes, porque estos tenían la obligación de dirigir y no dejarse dirigir por las masas”.[17] A formulação de Carlos Altamirano é essencialmente a mesma: “Pero si el doble poder exhibe plena legitimidad en la Rusia de 1917, es porque el poder estatal, en términos absolutos, era instrumento de la burguesia. (…) No era, por cierto, el caso de Chile. Ver al Gobierno Popular como enemigo, prescindir del hecho de que éste se había constituido la principal palanca de poder de la clase trabajadora y del campesinato, era un error, y un inexcusable subjetivismo”.[18] Em completa inversão do sentido de determinação que deveria presidir o método revolucionário, a resolução das massas que se levantavam contra o poder burguês não poderia se sobrepor aos cálculos políticos que condicionam as negociações parlamentares. A reboque dos imperativos da transição para o socialismo com vinho tinto e empanada, o poder popular – um embrião de governo revolucionário – ficava impedido de autonomizar-se e cumprir seu desiderato.

O programa da Unidade Popular pecou não apenas pela inadequação da relação necessária entre meios e fins, mas também pela definição de objetivos que estavam muito além do campo de possibilidades. As principais metas da política econômica, por exemplo, eram inalcançáveis.

Desvinculada de uma mudança radical na estrutura produtiva – processo que exige longo prazo de maturação –, sem a imposição de um draconiano sistema de racionamento, a ousada política de aumento salarial não teria como evitar uma acelerada crise de desabastecimento.[19] Por razões materiais incontornáveis, relacionadas com o baixo desenvolvimento das forças produtivas, o combate à segregação social e à concentração de renda é incompatível com a continuidade do padrão de consumo baseado na cópia dos estilos de vida e padrões de consumo das economias centrais.[20] Uma política consistente de distribuição de renda exigiria, portanto, drástico rebaixamento do nível tradicional de vida das classes médias e altas, fenômeno subestimado no programa da UP, que tinha como um de seus pressupostos a possibilidade de uma transição relativamente harmoniosa do subdesenvolvimento para o desenvolvimento nacional, condição necessária para que se pudesse contar com o apoio de parcela das classes médias – premissa política fundamental da via chilena para o socialismo.[21]

O projeto de conquista da autonomia econômica pelo aprofundamento da industrialização por substituição de importações, com medidas de nacionalização das riquezas nacionais e estatização dos meios de produção, estava na contramão das tendências da divisão internacional do trabalho. Não tinha a menor possibilidade de se transformar em realidade. Por melhor que fosse o esforço para evitar desequilíbrios macroeconômicos, a súbita elevação na capacidade de consumo da sociedade não poderia deixar de resultar, como de fato não deixou, senão na acelerada desorganização do sistema econômico. Enquanto o patrimônio tecnológico e financeiro da humanidade permanecer monopolizado pelas potências imperialistas e pelas grandes corporações transnacionais, o raio de liberdade das economias subdesenvolvidas para impulsionar o desenvolvimento nacional é limitadíssimo. O máximo a que os países do elo fraco do capitalismo podem aspirar é resgatar o controle sobre os fins que orientam a incorporação de progresso técnico e socializar pelo conjunto da população os padrões de vida material e cultural que lhe são acessíveis, tendo em vista o grau de desenvolvimento de suas forças produtivas e as possibilidade de acesso às tecnologias dos centros desenvolvidos – questão que depende em última instância da capacidade de contornar as retaliações do imperialismo.[22]

O socialismo, entendido como processo de transição do capitalismo para o comunismo estava muito além do horizonte de possibilidades da sociedade chilena. O salto do subdesenvolvimento para o desenvolvimento, inspirado na social-democracia europeia, tampouco estava ao alcance das sociedades capitalistas de origem colonial, cujas burguesias vivem da superexploração do trabalho. As bases objetivas e subjetivas que condicionavam a luta de classes deixavam a sociedade chilena diante de duas alternativas efetivas: a solução que supera os dilemas da formação da sociedade chilena contemporânea – a revolução democrática e anti-imperialista controlada por um governo dos trabalhadores com a tarefa de erradicar a segregação social e conquistar a soberania nacional; e a solução reacionária – a contrarrevolução neoliberal baseada na aliança da plutocracia com o imperialismo com a missão de levar ao paroxismo a exploração do trabalho, a pilhagem das riquezas naturais, as taras da modernização dos padrões de consumo e a mercantilização de todas as dimensões da vida. 

A contrarrevolução e necessidade da revolução

De nada adiantou o esforço de Allende para evitar os sacrifícios da guerra civil. Como a UP não destruiu o Estado burguês, o Estado burguês destruiu a UP. O custo humanitário do golpe de Estado liderado por Pinochet foi dantesco. A transição pacífica para o socialismo terminou numa carnificina.

A burguesia tirou as lições da Batalha do Chile e fez tudo que estava a seu alcance para consolidar as bases econômicas, sociais, políticas e ideológicas da contrarrevolução reacionária. Aproveitou os anos de terror de Pinochet para levar a revolução capitalista neoliberal ao paroxismo, massacrar impiedosamente os adversários políticos, destruir as organizações políticas e sociais dos trabalhadores e inculcar a fé no fim da história no imaginário da população.[23] Na transição do Estado de exceção para o Estado de direito, o regime militar conseguiu institucionalizar o padrão de acumulação liberal-periférico e, com a colaboração das forças de oposição, parcela importante da quais composta por ex-quadros da UP recém convertidos ao credo neoliberal, logrou imprimir um verniz democrático a um padrão de dominação hermético à participação das classes subalternas. A “democracia controlada” funciona como um circuito político restrito, monopolizado pela plutocracia, totalmente avesso à mobilização do conflito social como forma legítima de conquista de direitos coletivos.[24] Exploração, dominação e alienação tornaram-se assuntos malditos, que deveriam ser evitados pelos homens de Estado. Tudo foi feito para evitar a abertura de brechas democráticas que pudessem recolocar a luta por mudanças estruturais, contra e dentro da ordem, na agenda nacional. A revolução chilena foi banida do debate público. A política foi reduzida a mera administração da ordem neoliberal.[25]

A contrarrevolução neoliberal sufocou as reivindicações do movimento popular e abafou o protesto social, mas não eliminou contradições sociais e políticas que impulsionam a revolução chilena. O padrão de acumulação liberal-periférico imposto pela ditadura militar e aprofundado pelos governos civis que a sucederam agravou e potencializou o antagonismo social. Cinco décadas de neoliberalismo tornaram a sociedade chilena um barril de pólvora. Reprimida pela violência do Estado, a necessidade histórica da revolução continuou avançando espontânea e silenciosamente, sem rumo definido, nas entranhas da sociedade. A hostilidade contra o status quo acumulada nas placas tectônicas que sustentam a vida social manifestou-se recorrentemente. O crônico sentimento de mal-estar social nos bairros populares e os recorrentes protestos e revoltas sociais contra a progressiva deterioração das condições de vida da população eram evidências da precariedade da paz social. Finalmente, em outubro de 2019, detonada por um protesto de estudantes secundaristas contra o aumento da tarifa do metrô, num processo inédito na história do Chile, a rebelião popular voltou às ruas com a fúria de uma erupção vulcânica. As manifestações multitudinárias pareciam indicar que o vaticínio de Allende, finalmente, viraria realidade, abrindo “as grandes avenidas por onde passariam os homens livres para construir uma sociedade melhor”. Em aberto estado de desobediência civil, com palavras de ordem contra o modelo econômico e o modelo político, o “Estallido social” recolocou a necessidade histórica da revolução chilena como único meio de interromper o avanço da barbárie capitalista.[26]

Com as peculiaridades que imprimiram ao protesto social chileno um caráter particularmente épico, desafiando abertamente o poder instituído, o desdobramento do “Estallido social” seguiu basicamente o mesmo padrão do ciclo de rebeliões congêneres que, desde as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, se espraiaram pela quase totalidade dos países latino-americanos. Depois de um início improvável, provocado por um conflito social de menor importância, o protesto social se generalizou numa ascensão meteórica aparentemente irrefreável, até que a onda de protestos atingiu um auge e entrou em refluxo, regredindo após um tempo para a letargia social. No final, apesar da virulência da convulsão social e política, as bases do Estado não foram abaladas. Contando com a falta de orientação e organização das ruas, as classes dominantes apostaram na exaustão do protesto social. Administraram a crise política com repressão policial brutal e deslavada manipulação ideológica, enquanto manobraram as alavancas do poder para viabilizar a reciclagem da contrarrevolução neoliberal.[27]

O abismo entre as esperanças de mudança despertadas pelo vigor, contundência e massividade das manifestações populares e a surpreendente incapacidade das classes subalternas de realizar as utopias de que são portadoras evidencia a absoluta atualidade da reflexão sobre o caráter, as tarefas e os desafios da revolução chilena. A transformação da energia das ruas em força efetiva capaz de transformar a realidade requer sua condensação na forma de práxis política capaz de incidir sobre os elementos determinantes do poder. Para sobrepujar a ordem estabelecida, o “partido das ruas” está obrigado a superar o fracionamento, ultrapassar o caráter indeterminado de suas bandeiras e vencer a falta de organização para atuar como força monolítica, com métodos revolucionários à altura dos desafios históricos.

As derrotas da classe trabalhadora nunca são definitivas. O sacrifício dos que tombaram na busca de um mundo melhor nunca é em vão. As gerações futuras carregam a obrigação existencial de honrá-los e vingá-los. O conhecimento adquirido pelos trabalhadores chilenos em experiências vividas no calor das lutas é patrimônio de todo o movimento socialista internacional. Fazer o balanço das batalhas passadas e tirar as lições dos reveses é o primeiro passo para a organização das vitórias futuras.

A inesgotável disposição de luta dos trabalhadores chilenos inspira todos que se batem pela construção de uma sociedade baseada na igualdade substantiva. Compromisso, coragem, ousadia para buscar caminhos desconhecidos, dedicação e dignidade – atributos que não faltaram aos generosos combatentes da via chilena para o socialismo – são condições indispensáveis na luta para a superação da miséria dos povos, mas são insuficientes. A utopia descolada da realidade não é uma boa conselheira da revolução. A ilusão de que a ordem burguesa pode ser superada por dentro das instituições constituídas com o objetivo precípuo de garantir sua autopreservação é uma quadratura do círculo. Sem programa revolucionário, os trabalhadores não conseguem ultrapassar o horizonte da ordem estabelecida. Sem partidos revolucionários, as classes subalternas ficam impotentes para enfrentar as burguesias que as exploram.


[1] Para uma interpretação estrutural sobre as mudanças no padrão de desenvolvimento capitalista e suas implicações, ver Mészáros, I. Beyond Capital: Towards a Theory of Transition, London,1995.

[2] Em reunião do FMI, Banco Mundial e Departamento do Tesouro dos Estados Unidos em 1989, as medidas de liberalização da economia latino-americana foram sistematizadas pelo economista John Williamson num receituário que ficou conhecido como “Consenso de Washington”.

[3] O transformismo da sociedade chilena é examinado em detalhe no livro de Tomás Moulian, Chile Actual: Anatomia de un Mito, Santiago, LOM Ediciones, 1997.

[4] Para um sintético panorama histórico da formação da economia latino-americana da colônia até meados do século XX, ver Celso Furtado, A Economia Latino-Americana, São Paulo, Ed. Nacional, 1986; e Tulio Halperin Dongui, História Contemporanea de América Latina, Madrid, Alianza Editorial, 1997.

[5] O livro de Ignácio Gonzáles Camus, El dia que murió Allende, Santiago, CESOC, 1988, narra com detalhes os últimos momentos de Allende no fatídico 11 de setembro de 1973.

[6] As noções de “revolução vinda de cima” e “revolução vinda de baixo” foram desenvolvidas em Peter Winn, A Revolução Chilena, São Paulo, Ed. UNESP, 2009.

[7] Ver Peter Winn, Tejedores de la revolución: los trabajadores de Yarur y la via chilena al socialismo, Santiago, LOM, 2004.

[8] A especificidade do pacto político que sustentava a democracia chilena é o objeto do livro de Enzo Faletto, Eduardo Ruiz y Hugo Zemelman, Genesis Histórica del Processo Político Chileno, Santiago, Editora Nacional Quimantu, 1972.

[9] Peter Winn, A Revolução Chilena, São Paulo, Ed. UNESP, 2009, cap. 6 e 7.

[10] A interpretação dos “moderados” encontra-se em: Sérgio Bitar, Transição, Socialismo e Democracia – Chile com Allende, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980; Luis Corvalán, El Govierno de Salvador Allende, Santiao, LOM, 2003; e Juan Garcés, Allende y la experiência chilena: las armas de la política, Barcelona, Ariel, 1976.

[11] A interpretação da ala radical da UP é sistematizada em Carlos Altamirano, Dialéctiva de una Derrota, México, Siglo XXI, 1977.

[12] Entre as organizações políticas que participaram da revolução chilena, apenas o Movimento de Esquerda Revolucionário – o MIR -, que se manteve à margem da Unidade Popular, ressaltou o erro estratégico que significava ignorar o papel inexorável da violência na história. Contudo, ao não questionar o protagonismo da UP junto às massas e não oferecer um programa alternativo, o MIR não conseguiu superar sua posição de ator coadjuvante da revolução chilena. A análise que fundamentava as ações do MIR e sua insistência na necessidade inelutável de construção do duplo poder como condição da vitória da revolução socialista encontra-se sistematizada em Rui Mauro Marini, El reformismo y la contrarrevolución (Estudios sobre Chile), México, Ediciones Era, 1976. Ver também, Mário Maestri, “‘Volveremos a la montaña!’ – Sobre o foquismo e a luta revolucionária na América Latina”, in: História: Debates e Tendências – v. 10, n.1, jan./jun. 2010, p. 96-121.

[13] Sergio Bitar, S. Transição, Socialismo e Democracia, Chile com Allende, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 26.

[14] Carlos Altamirano, Dialéctiva de una derrota, México, Siglo XXI, 1977, p. 26.

[15] O legado do governo da Unidade Popular e o significado Salvador Allende no Chile contemporâneo são examinados em Tomas Moulian, El Gobierno de la Unidad Popular – Para Comenzar, Editorial Palinodia, 2021.

[16] Julio Faúndez, Marxism and Democracy in Chile: From 1932 to the Fall of Allende, Yale University Press, 1988.

[17] A reação de Salvador Allende à exigência de nacionalização da Yarur, maior fábrica têxtil do Chile, aconteceu no dia 28 de abril de 1971. Peter Winn, A Revolução Chilena, São Paulo, Ed. UNESP, 2009, p. 103.

[18] Carlos Altamirano, Dialéctiva de una derrota, México, Siglo XXI, 1977, p. 116.

[19] Aníbal Pinto, “Notas sobre a distribuição da renda e a estratégia da distribuição”, in: Distribuição de Renda na América Latina e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1976.

[20] Celso Furtado, Pequena Introdução ao Desenvolvimento: Enfoque Interdisciplinar, São Paulo, Editora Nacional, 1981.

[21] Como quadro histórico da CEPAL, Pedro Vuskovic, ex-ministro da economia do governo Allende, responsável pelo programa econômico da UP, tinha plena consciência da relação indissociável entre distribuição de renda e padrão de desenvolvimento. No entanto, mesmo reconhecendo que uma política redistributiva implica necessariamente alguma redução no padrão de vida das classes altas, Vuskovic acreditava que seria possível atenuar seus efeitos pelo aprofundamento da industrialização por substituição de importações, estratégia preconizada pelo estruturalismo latino-americano. Sua concepção encontra-se sistematizada em: Pedro Vuskovic Bravo, “A distribuição da renda e as opções de desenvolvimento”, Cuadernos de la Realidad Nacional, nº 5, Santiago, septiembre 1970, in: José Serra (org.), América Latina – Ensaios de interpretação económica, Paz e Terra, 1976.

[22] Plínio S. de Arruda Sampaio Júnior, Entre a Nação e a Barbárie: Dilemas do Capitalismo Dependente em Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Celso Furtado, Petrópolis, Vozes, 1998, cap. 5 e 6.

[23] Para exame da economia política da ditadura militar e seus efeitos desastrosos sobre a sociedade chilena, consultar Aníbal Pinto S.C., El Modelo Económico Ortodoxo y la Redemocratización, Vector – Centro de Estudios Económicos y Sociales, 1982; y Joseph Collins e John Lear, Chile’s Free-Market Miracle: A Second Look, Oakland, 1995.

[24] A noção de “democracia controlada” foi elaborada por Tomás Moulian, no livro Chile Actual: Anatomia de un Mito, Santiago, LOM Ediciones, 1997.

[25] As profundas mudanças sociais e culturais provocadas pela revolução neoliberal são examinadas em Tomás Moulian, Chile Actual: Anatomia de un Mito, Santiago, LOM Ediciones, 1997.

[26] Para um detalhado estudo da revolta social chilena ver, Pierre Dardot, La memoria del futuro: Chile 2019-2022, Gedisa Editorial, 2023.

[27] A rebelião social que abalou o Brasil em 2013 é o objeto de análise do livro organizado por Plínio de Arruda Sampaio Júnior, Jornadas de Junho: A revolta popular em debate, São Paulo, ICP-Instituto Caio Prado Jr., 2014.


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

Plínio de Arruda Sampaio Junior

Professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor do livro Crônica de uma Crise Anunciada: crítica à economia política de Lula e Dilma.

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