Dialética da Sociabilidade, parte 1: A pequena “classe média” ilustrada

As relações entre pessoas, no Brasil, são marcadas a ferro por uma lógica própria. Mais que oscilação entre ordem e desordem, tal como disse Antonio Candido na “Dialética da malandragem”[1], ocorre um amálgama entre estas esferas e, consequentemente, não é nenhuma delas. Ordem e desordem perdem o sentido como categoria social na medida em que, entre nós, a sociabilidade é ímpar: a ordem é desordem e esta é regra totalizante, é ordem[2]. Há um desenrolar esquisito, de difícil compreensão a um observador externo que não tenha vivido e não tenha visto com lupa a produção histórica dos sujeitos brasileiros. Esquisito, pois não é inteligível por chave isolada: é a cordialidade, de Sérgio Buarque[3], mas a ultrapassa; é a malandragem e o jeitão deixado de herança pelas classes dominantes, tal como pensou Chico de Oliveira[4], porém nisso não se esgota; é o caráter dúbio, volúvel, como práxis cotidiana dos homens de bem[5] e da ralé[6] e também é a constância, tal que algum desinformado diria que de volubilidade não tem nada, já que é modus vivendi do brasileiro da elite ou dos subalternos – cada qual por motivos diversos, de classe e de estrato, é fato. O que é constante – e mais que nunca nossa época deixa evidente como nenhuma outra – é o interesse pessoal se sobrepondo a tudo e a qualquer coisa. Vale o lugar de destaque, custe o que custar – e, quase sempre, com o rebaixamento do outro e, finalidade perfeita, o esmagamento simbólico do outro[7]simbólico, sim, pois sem adversário-inimigo e sem plateia não há vencedor.

Nessa série de textos – na qual este é o primeiro – que tentam captar algo da “essência” da sociabilidade brasileira atual e de sua base inescapável, o sujeito, as chaves de compreensão serão, a cada vez, posicionadas em um ângulo diferente, apontadas para a “mesma coisa” – entre aspas, sim, pois cada ângulo revela uma coisa nova, até mesmo, em alguns casos, em oposição às anteriores. Tanto o mesmo “fato” pode aparecer diferente de si visto de outra perspectiva, como, quando se manifesta em outro estrato social, o “fato” pode se representar com outras diversas roupagens – às vezes fora de prumo e apertadas –, adaptadas aos costumes regionais, de classe, de estrato. A fundamentação teórica aparecerá embrenhada na crítica: ora explícita, ora somente visível aos entendidos. Isso, no fundo, pouco importa: a construção argumentativa deve dar conta de si mesma sem a necessidade de recorrência aos textos e autores aos quais se vale. Este primeiro texto servirá como porta de entrada, como um convite à viagem que se fará com anedotas, pequenas histórias, discussão teórica. Não tem exatamente um ponto fixo de início, tampouco de final – tal como a forma do ensaio desenvolvida por Theodor W. Adorno: começa onde quer, termina onde acha que deve[8]. Assim, não esperem a discussão teórica logo de início. A costura não é linear, nem pode ser.

Aqui, a primeira incursão é sobre um aspecto bastante curioso que envolve uma classe média “ilustrada” – de fato ou de aparência – e seus costumes; estrato social que habita ou se reproduz especialmente nas zonas centrais dos grandes centros, majoritariamente universitária. Comecemos por umas anedotas.

Certa vez, passando por uma rua na região da Consolação, em São Paulo, vi um lugar que, há muito abandonado, havia virado um bar. Não um bar comum. Era – ou é – um desses diferenciados, próprios da gente diferenciada. Bem, o lugar ainda parecia abandonado: um resto de escombros, térreo de algum prédio igualmente com aparência de abandono, com lâmpadas de filamento, dessas que iluminam pouco, mas fazem graça. Algumas tábuas como mesas. Ambiente todo aberto, ou melhor, rodeado de paredes de vidros pichados, sujos. Ar descolado, como parte da jovem classe média universitária gosta. Pela aparência das pessoas, todas longe da pobreza. A lousa preta com escrita em giz – costume dos lugares diferenciados – dava à vista a exclusividade do local: os preços eram populares para aquela fração de população. As atrações: cervejas industrializadas com rótulo de artesanal, lanches e porções mequetrefes com nomes pomposos. O título das coisas, nesses lugares, determina o preço e o público. Um toque de palavras estrangeiras, preferencialmente inglesas, ainda que deslocadas de sentido, agregam valor. Não muitas pessoas no ambiente, também não muito espaçoso, davam o espírito de exclusividade, de diferenciação. Quem frequenta esses ambientes recebe, de pronto, um atestado de seu caráter (em sentido amplo, não moral). Mesmo que tal caráter não perdure para além da “experiência” – é assim que nomeiam a vivência dessas bizarrices, que de experiência, veremos nos outros textos, não tem nem o sopro –, o estar em um lugar como este confere ao indivíduo um selo de distinção. Claro que o selo tem a ver com a sociabilidade brasileira, bem mais ampla e antiga do que imaginam os não entendidos[9].

Em outro caso, o antigo prédio da Sete de Abril que já foi sede da Telesp e depois da Telefônica e da Vivo, em São Paulo, virou recentemente – mesmo que momentaneamente – lugar de “experiência gastronômica sensorial”. Prédio abandonado, com show de jazz, cada frequentador podendo fazer a sua própria pizza, com visita guiada. Na época, primeiro semestre de 2023, 180 reais para ver exposição de lixo em lugar sujo[10].

Quem aceita frequentar lugar sujo e pagar caro? E por quais motivos? A resposta não é simples e é muito possível que as pessoas que se dispõem a isso não tenham consciência clara sobre os meandros de sua produção como indivíduo. Mesmo assim, podemos arriscar um início de resposta. Quando falta capacidade de definição subjetiva, qualquer coisa que diferencie, para o alto, um indivíduo dos demais, daqueles que não fizeram parte da tal “experiência”, vira mote para um cartesianismo de botequim: eu sou porque consumo. E mais: não consumo qualquer coisa. A “experiência” limitada aos seletos, bizarra ou não, faz destacar, ser alguém para si mesmo e para os outros. O indivíduo se forma por essas vivências que grudam, aderem a ele como a farda de alferes que dá lugar social, status, pompa e subjetividade ao personagem machadiano em O espelho[11]. Ao mesmo tempo, perde-se, pois é volúvel: tudo e qualquer coisa pode definir sua individualidade movente: cada caso, um caso; cada momento, um eu sou, ajustado ou desajustado, que confere qualquer coisa que possa ser timbrado como um eu diferenciado e superior a alguém[12].

O consumo não é de qualquer coisa. Consome-se mais que objetos, coisas, mercadorias. Ele é produção do indivíduo[13], aspecto central de sua formação sem experiência formativa. Consomem-se coisas, modos, jeitos enlatados, produzidos para aqueles que estão em determinado nível. Aqui, todos de fato se igualam e, em aparência, se diferenciam. Vale ser diferente sendo igual, contanto que a igualação diferencie. Ao mesmo tempo, essas coisas somente existem e são comercializadas porque há contexto. A sociabilidade é via de mão dupla, como no ciclo de oferta-demanda, nenhuma delas fixas. A demanda é produto, resultado de um processo social e não seu início absoluto. A oferta é movente, ainda que se venda sempre a mesma coisa, mesmo que com aparência diferenciada em cada ambiente. Isso não é novidade, nem é exclusivamente brasileiro: Adorno e Horkheimer já haviam desvendado os meandros desse movimento no famoso ensaio de 1944[14]. O que não se diz quando os interpretam, é que não se trata de formação pelo consumo simples, de objetos externos que agregam valor ao indivíduo, mas de produção de algo mais inefável, imaterial: alguma subjetividade – ou seja lá o que for. É claro que, no que diz respeito ao Brasil recente, exponencialmente se incentivou essa prática. Os indivíduos, todos, de alguma forma, deveriam entrar na roda do consumo para ser alguém, para adquirir seu status de sujeito. Não por acaso políticas de governo jogaram todos no mesmo balaio, cada qual consumindo coisas destinadas a gente de seu nível, formando-se como indivíduo autônomo, emancipado. Todos se tornaram um sujeito de tipo kantiano, só que no lugar da razão, a imbecilidade universal, incapacidade de reflexão para além de sua deformação como sujeito. Inclusive, em alguns casos, alteraram-se profundamente as formas tradicionais de alimentação, por exemplo, dos povos da floresta pela entrada massiva de ultraprocessados: as novas gerações já não querem mais nem os saberes tradicionais, nem sua alimentação[15]. Ou, como outro exemplo, o surgimento do leite condensado no Brasil, a formatação e a padronização de gostos e formas de ser e cozinhar, e a morte das receitas tradicionais de doces[16]. É o Progresso do Desenvolvimento! Os “sujeitos” não só consomem, formam-se, reproduzem-se, reformam-se pelo consumo. Considerar o consumo como algo externo à psique e à subjetividade é não o compreender como tal.

Uma das manifestações da indústria cultural, relacionada ao consumo supérfluo e à satisfação pela diferenciação do sempre-igual, é formativa, isto é, mais que satisfaz pessoas momentaneamente. Ela forma ao substituir as possibilidades de experiências por vivências com produtos de segunda mão, padronizados e que padronizam os indivíduos ao conformarem-nos[17]. Essa manifestação precisa ser cada vez mais sensacional, mais “exclusiva”, colorida, excitante, extravagante, bizarra[18]. A indústria cultural precisa ser mais excitante para atrair e engolir as pessoas. É o tédio[19] que leva as pessoas a serem engolidas, a procurarem no bizarro a satisfação. O tédio “mata” o tempo; o consumo, no sentido aqui explanado, substitui a experiência e se superpõe ao tédio. Mata, igualmente, a capacidade de se fazer experiências, de ter memória, de lembrar, de refletir sobre si mesmo, voltar-se a si para se pôr no mundo diferenciado, diferente, inclusive, de si mesmo – como na saga de Wilhelm Meister[20]. Não é qualquer tédio, portanto. E mesmo a experiência formativa clássica, como no romantismo alemão, já não é mais possível, ainda menos no Brasil com todas suas idiossincrasias[21].

A privatização da esfera pública dá conta de explicar esse movimento em moto-contínuo? A malandragem? A dominação de classe? Parecem muito pouco, ainda que de grande valia para se pensar – e, de fato, são dessas categorias que partimos. 

Uma última anedota. Quando fazia graduação, nos idos da primeira década deste século, em uma universidade privada da elite paulistana, situada na entrada de um bairro “nobre” da cidade, na região central, vi algo que, naquele momento, me deixou confuso. As pessoas iam à universidade de chinelo e roupa esgarçada. Não era, nem de longe, o tipo de coisa com que estava acostumado. Chinelo e roupa amarrotada, por aqui, era sinônimo de vida caseira, desleixo ou pobreza extrema. Quem é pobre o que mais quer na vida social é não parecer pobre. A aparência de pobreza denuncia miséria material. Bem diferente dessa classe média e média alta ilustrada, universitária, que, por diferentes motivos, quer se diferenciar de si mesma ao parecer… pobre! Apesar da confusão, para não julgar sem conhecimento de fato, fiz um única vez, em quatro anos e meio, a “experiência” ir à universidade de chinelo. Só posso dizer o que já sabia: pés suados, com marca de sujeira sob as tiras do chinelo “de dedo”, pés sujos de incomodar. Ônibus e metrô, mais de uma hora de percurso. De fato, não fazia sentido. Qualquer tipo de ascensão social, ou pelo menos de sua aparência, para quem é pobre, vem necessariamente ligada a não andar publicamente, fora da casa ou do bairro, com roupas e calçados surrados. Qualquer deslocamento é um evento: a melhor roupa, ainda que não seja boa à vista da classe média, o melhor tênis. Isso não quer dizer que há qualquer vantagem, purismo ou forma correta nos modos de vida dos subalternos. Veremos isso com maior cuidado em outro texto.

A percepção é que qualquer diferenciação do grupo de origem, para essa classe que não passa necessidades cotidianas e imediatas, se dá pela aparência. Parecer não pertencer para pertencer com ainda mais critério; ser, no sentido forte do termo, um indivíduo único, não mais do mesmo. Ainda que isso também ocorra com os pobres, acontece de maneira invertida. Há uma luta de classes, mais ou menos silenciosa, que se manifesta também nas diversas formas de concepção de mundo – isso Gramsci já tinha desvendado[22].

Se as possibilidades de experiência formativa se esgotaram quase completamente, resta seu simulacro. É nessa sociabilidade enviesada, maltrapilha, de vidas danificadas que o indivíduo se forma, pelo menos em parte. Do mesmo modo, é da capacidade – seja qual for – de interação entre esses indivíduos que as relações sociais vão ganhando forma, mesmo que uma bastante disforme. Se é preciso se sentir parte, estar, em qualquer ambiente, como em local familiar e (quase) todos serem não pessoas públicas, sujeitos em si mesmos, mas indivíduos de convivência íntima, partes de uma grande família, igualmente é indispensável se situar no jogo: ser diferente ao ser igual. E esse igual não é sempre um “ser igual aos do meu grupo”. Aqui, vale a bricolagem da formação do sujeito: elementos bizarros, elementos próprios de pobres (ainda que adaptados e vendidos não para pobres), elementos da elite… Todos amalgamados formando algo peculiar: a postura social e os modos de relação dessa classe média ilustrada, progressista, descolada e, em aparência, antirreacionária. É uma espécie de fusão entre jeitinho e volubilidade, entre culpa moral e alguma luta contra o status quo, mesmo que para reproduzi-lo. Um tipo peculiar de luta por reconhecimento.


[1] CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: ___. O discurso e a cidade. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, p. 17-47, 2015.

[2] Cf. OTSUKA, Edu Teruki. Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias. Revista do IEB, n. 44, p. 105-24, fev. 2007. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/34564/37302. Acesso em: 15 ago. 2023; XAVIER, Vinicius dos Santos. Um quê a mais: uma proposta interpretativa da subjetividade brasileira a partir da Dialética da malandragem, de Antonio Candido. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 73, p. 248-66, ago. 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/161919/155867. Acesso em: 15 ago. 2023

[3] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Prefácio de Antonio Candido. 10ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, cap. V, p. 101-12, 1976.

[4] OLIVEIRA, Francisco de. Jeitinho e jeitão. In: ___. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, p. 137-46, 2018.

[5] SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 5ª ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012.

[6] SOUZA, Jessé. Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: LeYa, 2018; SOUZA, Jessé. (Não) reconhecimento e subcidadania, ou o que é “ser gente”? Lua Nova, n. 59, p. 51-74, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/p4F65RZgPJHSGXn4BTkvPyr/abstract/?lang=pt. Acesso em: 14 ago. 2023.

[7] OTSUKA, op. cit.; XAVIER, op. cit.

[8] ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: ___. Notas de literatura I. Trad. e Apresentação: Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, p. 15-45, 2003. Além de Adorno, a forma ensaio, esse texto simples, errante, sobre fatos “secundários” – do ponto de vista da “grande” teoria – deve-se à escrita magistral e às escolhas temáticas de Montaigne. Cf. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1972 (Coleção Os Pensadores).

[9] A título de exemplo, veja a passagem em que Machado de Assis descreve a “satisfação” de Mateus ao ser notado: constrói uma casa suntuosa e toda dissonante – mobília da Hungria e da Holanda na casa de um fazedor de selas de cavalo de carga: “Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde” (p. 31). ASSIS, Joaquim Maria Machado de. O Alienista. In: ___. Papéis avulsos. São Paulo: Martins Fontes, p. 5-83, 2005. Sobre isso, cf., também, XAVIER, op. cit., p. 260. Como mais um exemplo sobre esse comportamento objetivo do brasileiro de elite – ou que se achava como tal –, Luiz Felipe de Alencastro fala sobre as contradições brasileiras em meados do século XIX e sua “resolução” com a moda do piano. Contrapondo-se à onipresença de ritmos afro-brasileiros na música, e também tentando se aparentar à Europa do trabalho livre, fugindo ao estigma da escravidão que era massiva no país em meados daquele século, “Uma virada na música e nas danças imperiais sucede nos anos 1850 com o aumento das importações de pianos.” (p. 36). “Nas estatísticas inglesas, a exportação de ‘instrumentos musicais’ para o Império atinge na década de 1850 o seu patamar mais alto. Erard, o maior fabricante de pianos da França, abre uma filial no Rio” (p. 38). O piano se torna moda no Rio de Janeiro escravista visando exclusivamente “purificação” do sentimento de rebaixamento em relação à Europa, especialmente à França, e um símbolo de status: “Se não precisava, por que comprou? Porque dava status, porque era moda” (p. 37). Assim, na Corte, “Desenvolve-se um importante mercado para esse instrumento.” (p. 36). A representação da elite na Corte Imperial era deslocada de sua realidade fática: um país escravista, “atrasado”, que almejava entrar no concerto das nações modernas sem abrir mão de sua base social e de sociabilidade, isto é, uma ideia fora do lugar. “(…) o piano apresentava-se como o objeto de desejo dos lares patriarcais. Comprando um piano, as famílias introduziam um móvel aristocrático no meio de um mobiliário doméstico incaracterístico e inauguravam – no sobrado urbano ou nas sedes das fazendas – o salão: um espaço privado de sociabilidade que tornará visível, para observadores selecionados, a representação da vida familiar.” (p. 37). ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In: ___. (org.). História da vida privada no Brasil, v. 2: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia de Bolso, p. 12-72, 2019.Veja-se o impasse: enquanto por aqui se enaltecia a vida privada, familiar, “espaço privado de sociabilidade” – que na verdade é o único espaço em que se desenvolve seriamente a sociabilidade brasileira, mas não o sujeito social –, na Europa, no mesmo século XIX, se desenvolve a esfera pública, com discussões públicas sobre literatura, em um primeiro momento, e sobre política, posteriormente, compondo uma distinção, mais ou menos objetiva, entre esferas privada e pública. Sobre isso, cf. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa.Trad. Denilson Luís Werle. São Paulo: UNESP, 2014, especialmente os capítulos iniciais. Sobre a nossa “esfera familiar” e sua constituição quase totalizante, cf. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49ª ed. São Paulo: Global, 2004; HOLANDA, op. cit. Ainda sobre a moda de pianos na Corte e a incapacidade em ser europeu por parte dos brasileiros, por um descompasso (não-musical), cf. ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Um homem célebre. In: ___. Várias histórias. São Paulo: Martins Fontes, p. 55-72, 2004.  

[10] Cf. com seus próprios olhos: https://www.instagram.com/reel/CtIKA4KAlIA/?igshid=MzRlODBiNWFlZA==

[11] ASSIS, Joaquim Maria Machado de. O espelho. In: ___. Papéis avulsos. São Paulo: Martins Fontes, p. 219-33, 2005. Igualmente, cf.  XAVIER, op. cit., p. 258-61. Aliás, a mesma farda de alferes da Guarda Nacional, que não servia para nada além de conferir status a alguém, é o que “salva” Leonardo (filho) no romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. Cf. ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Prefácio de Ruy Castro. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013. Cf., também, CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: ___. Vários escritos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 24.

[12] Cf.  XAVIER, op. cit., p. 257 e ss.

[13] Sobre a dialética da produção do sujeito em sua relação com o objeto, cf. ADORNO, Theodor W. Sobre sujeito e objeto. In: ___. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Trad. M. H. Ruschel. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 181-201, 1995.

[14] ADORNO, Theodor W.; HORKHIEMER, Max. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: ___. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 113-56, 1985.

[15] PRATO Cheio (Podcast). Peixe, farinha e miojo, 05 out. 2021. Disponível em: https://spotify.link/w7aPxdwM5Cb.

[16] PRATO Cheio (Podcast). A moça da lata, 06 abr. 2021. Disponível em: https://spotify.link/FSy3VLRd6Cb. A título de comparação, para saber algumas das receitas de doces tradicionais “pré-leite condensado”, cf. FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. 5ª ed. São Paulo: Global, 2007. Tome cuidado: caso for ler o livro de Freyre, não esteja de barriga vazia…

[17] Cf. ADORNO, Theodor W. Teoria da semiformação. In: PUCCI, Bruno; ZUIN, Antônio A. S.; LASTÓRIA, Luiz A. C. Nabuco (orgs.). Teoria crítica e inconformismo:novas perspectivas de pesquisa. Campinas, SP: Autores Associados, p. 7-40, 2010.

[18] A Título de exemplo, em um bairro “nobre” da cidade de São Paulo há um restaurante, para a elite, chamado “Senzala”. No centro histórico da cidade de Itu, interior do estado de São Paulo, tem, ou tinha, uma loja com o mesmo nome. É bem possível que existam coisas semelhantes espalhadas pelo Brasil. Outro exemplo: é bem comum no Oeste Paulista, na região do Café, fazendas que recebem visitação, na Casa Grande e nas Senzalas. Algumas até oferecem a “experiência” de se passar a noite à escolha do cliente: na parte de cima, na Casa Grande, ou embaixo, na Senzala. Não se pode esquecer, também, das festas da elite que reproduzem o mote da escravidão, com tudo a caráter – roupas, jeitos, até açoites. A mais famosa deve ter sido uma ocorrida em 2019, da diretora da Vogue. Por fim, é interessante lembrar um fato histórico importante: em 1972 foi inaugurado, no Recife, um Hotel de luxo chamado “Casa-Grande e Senzala”, em “homenagem” ao livro de Gilberto Freyre, com todo o figurino de época. Na inauguração, Freyre esteve presente. Cf. Casa Grande & Senzala. Suplemento Social do Diário de Pernambuco. Recife, 24 dez. 1972, p. 03.

 “O Recife vai ganhar o primeiro hotel típico do Nordeste, com a inauguração do Casa Grande e Senzala, cuja arquitetura e decoração recompõe o nosso mundo colonial. Na decoração, inclusive, todos os instrumentos de suplício dos escravos e os hóspedes serão servidos por mucamas e escravos trajados ao rigor da época colonial. A decoração deste hotel, que fica em Boa Viagem, tem trabalhos de Brennand, Corbiano e outros artistas, sendo tudo baseado no grande livro do mestre Gilberto Freyre.” (ALBERTO, João. Hotel. Diário de Pernambuco. Recife, 16 de abr. 1972, Segundo Caderno, p. 06).

O mau gosto e a bizarrice fazem saltar os nervos.

[19] Cf. ADORNO, Theodor W. Tempo livre. In: ___. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Trad. Maria Helena Ruschel. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 70-82, 1995.

[20] GOETHE, Johann Wolfgang von. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. 3ª ed. Trad. Nicolino Simone Neto. São Paulo: Ed. 34, 2006. Cf., também, BOLLE, Willi. A ideia de formação na modernidade. In: GHIRARDELLI Jr., Paulo (org.). Infância, escola e modernidade. São Paulo: Cortez; Curitiba: Editora da Universidade Federal do Paraná, p. 9-32, 1997.

[21] Sobre a formação “clássica”, desenvolvida especialmente no romantismo alemão no século XVIII, cf. MAZZARI, Marcus Vinicius; MARKS, Maria Cecilia (orgs.). Romance de Formação: Caminhos e Descaminhos do Herói. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2020; MORETTI, Franco. O romance de formação. Trad. Natasha Belfort Palmeira. São Paulo: Todavia, 2020. Para o caso brasileiro do ciclo “consumo-formação subjetiva-sociabilidade”, referindo-se ao século XX, cf. o belo texto de Fernando Novais e João Manuel: NOVAIS, Fernando A.; MELLO, João Manuel Cardoso de. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In:  NOVAIS, Fernando A.; SCHWARCZ, Lilia Moritz (orgs.). História da vida privada no Brasil, v. 4: contrates da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, p. 559-658, 1998.

[22] Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v. 1. 4ª ed. Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho; coedição: Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006 – especialmente, p. 93 e ss.


Este texto não passou pela revisão ortográfica da equipe do Contrapoder.

Vinicius dos Santos Xavier

Militante marxista desde o início dos anos 2000, Professor de filosofia da rede estadual de São Paulo, integrante do grupo de estudos “Repensando o Desenvolvimento”, do LABIEB-USP no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

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